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A vedação ao discurso do ódio na Constituição Federal de 1988

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26/03/2013 às 15:39
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3. A dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1°, ao consagrar entre os  fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político, traz um importante elemento que direciona a interpretação dos direitos e garantias fundamentais, contemplados a partir do seu artigo 5º, dos quais não pode o intérprete se desvincular.

Lecionando acerca da dignidade da pessoa humana, erigida a fundamento constitucional dos direitos ali assegurados, traço que assinala o constitucionalismo na pós-modernidade, Carlos Roberto Siqueira Castro destaca que “pode-se afirmar que o Estado Constitucional Democrático da Atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano”.[9]

Na lição de Jorge Miranda, após ressaltar a unidade axiológica do texto da Constituição Portuguesa, “a Constituição, confere uma unidade de sentido (...) ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, (...), ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”.[10]

Independentemente de qualquer concepção que se adote no que tange à origem dos direitos fundamentais, não se pode deixar de reconhecer que os mesmos não podem deixar de ser considerados como autênticos produtos inerentes à dignidade da pessoa humana, decorrentes do status superior do homem em relação a todos os demais seres vivos, salientando a doutrina cristã, a respeito, que o homem teria sido criado à imagem e semelhança do seu próprio criador.

Superada a concepção de origem metafísica dos direitos fundamentais, as diversas lutas travadas pelo homem ao longo dos séculos resultaram no reconhecimento de um mínimo necessário de direitos para que possa se desenvolver enquanto tal, pelo que se pode afirmar que os mesmos têm sede axiológica precisamente na dignidade do homem, tornando-o diferenciado em relação a todos os bens jurídicos tuteláveis pelo ordenamento. Sobre o tema, leciona Fábio Konder Comparato:

Na perspectiva da antropologia filosófica, a dignidade humana está ligada, como foi visto, à sua condição de animal racional, nas diferentes manifestações da razãoespeculativa, técnica, artística e ética, e à consciência, individual e coletiva, dessa sua singularidade no mundo.

Se a dignidade da pessoa humana, como acabamos de ver, é o fundamento de toda a vida ética, desse fundamento ou raiz mais profunda decorrem, logicamente, normas universais de comportamento, as quais representam a expressão dessa dignidade em todos os tempos e lugares, e têm por objetivo preservá-la.[11]

Destaca-se que, por se tratar de conceito jurídico indeterminado, os quais permeiam os textos constitucionais, como a própria dignidade, justiça social, entre outros, por vezes resultantes da necessidade de serem firmados compromissos políticos, com inegáveis reflexos jurídicos, demandando do intérprete uma autêntica complementação de significado, indispensável à sua aplicabilidade, em um processo do qual não se pode afastar a valoração na hermenêutica.

Assim, para que se aplique a norma, dando concreção à linguagem adotada pelo legislador, sempre exigir-se-á do intérprete seu preenchimento, a partir da pré-compreensão do texto normativo. Segundo Germana de Oliveira Moraes, “as características de imprecisão e contextualidade do significado das palavras, presentes na linguagem comum, projetam-se na linguagem jurídica e geram dificuldades no processo de interpretação e aplicação dessas normas”.[12]

Embora se trate de conceito de valor, será fácil, embora se apresente revestido de subjetividade, constatar uma série de situações nas quais o direito à dignidade será claramente violado, afirmando que determinadas condutas praticadas pelos particulares e pelo Estado se apresentam frontalmente ofensivas. A abertura do conceito não poderá ser utilizada, dessa forma, para ocultar ou dissimular sua violação.

Após assinalar traduzir o mesmo o valor fundamental da pessooa humana, Edilsom Pereira de Farias registra que “o princípio em epígrafe é um princípio semântico e estruturalmente aberto, de 'abertura valorativa', o que faz com que o mesmo seja em grande parte colmatado pelos agentes jurídicos no momento da interpretação e aplicação das normas jurídicas”.[13]

 Não obstante se revista de forte carga axiológica, não se pode deixar de associar à dignidade da pessoa humana o reconhecimento do homem como destinatário do Direito, elemento basilar da sociedade. Desse modo, a violação a tal direito elementar do homem atingirá de forma violenta toda a humanidade, razão pela qual deve o jurista buscar sua incessante tutela, o fazendo através de medidas concretas, inclusive quando da promoção, aplicação e interpretação de todos os direitos fundamentais. Extrai-se da doutrina:

A dignidade da pessoa humana, hoje, não é mais um conceito transcendental, expressão de uma necessidade metafísica. Expressa isso sim, uma imprescindibilidade da condição humana. A sua concretização é uma imposição dos tempos atuais do grau de desenvolvimento das sociedades, do nível de aprofundamento da investigação cientifica a que se propõe a nascente dogmática dos direitos fundamentais.

Isto posto, resta claro que a dignidade da pessoa humana, sobre ser limitadora da ação do Estado, juntamente com os direitos fundamentais se apresenta como um dos pilares do moderno, pós-positivista e por conseguinte, concretizador, direito constitucional.[14]

A relevância do tema sob compreensão pode ser evidenciada quando se constata que, imediatamente após e em reação às atrocidades cometidas na 2ª Guerra Mundial, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, no preâmbulo da Declaração Universal  dos Direitos Humanos, assentou que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

Importante ainda destacar que, dada sua positivação no texto constitucional, com o status de fundamento da República Federativa do Brasil, juntamente com valores como a soberania e a cidadania, todos os demais direitos deverão ser interpretados segundo suas disposições, sob pena, em caso de exegese que a olvide ou mesmo contrarie, ter-se a prática de ato inconstitucional.

Seu campo de atuação, seja através da efetivação do direito, seja por ocasião da hermenêutica dos direitos fundamentais, estender-se-á à proteção dos interesses das minorias, de grupos sociais marginalizados e, inclusive, para evitar que, a pretexto do exercício de um direito de forma abusiva, se atinja a esfera mínima de proteção na qual se podem abrigar todos os indivíduos. A liberdade de manifestação de pensamento, assim, deverá se orientar segundo o príncípio da dignidade da pessoa humana.

Cabe salientar ainda que o atual quadro fático que atravessamos no Brasil, vivendo em um país plenamente democrático, no qual se observam valores como o pluralismo político e existência de grandes grupos midiáticos, com pouca ou nenhuma restrição estatal, não autoriza sejam considerados como atos de censura as restrições ao discurso que venham a ser impostas em decorrência da tutela a outros direitos fundamentais, notadamente se fundamentada em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A dificuldade acerca da compreensão do tema emerge da absoluta impossibilidade de estabelecer, a priori, um método ou mesmo a edição de uma norma, ainda que de status constitucional, que venha a resolver os problemas emergentes, exatamente porque estarão em choque normas com estrutura principiológica, imbuídas de forte conteúdo axiológico. A respeito, colhe-se da doutrina que “somente o exame meticuloso e casuístico da hipótese poderá fornecer o caminho a seguir”.[15]


4. O discurso do ódio

Prescreve a lei fundamental a necessidade de observância a outros dispositivos também igualmente relevantes, como a honra, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, sem que se possa falar, no caso brasileiro, da existência de qualquer direito fundamental superior aos demais. No dizer de Dimoulis e Martins,  o constituinte brasileiro, seguindo uma prática geral, não desejou criar direitos 'superiores' ou 'absolutos'. Todos são proclamados no mesmo texto, havendo equivalência normativa”.[16]

A existência de restrições ao direito à livre manifestação de pensamento, ainda que se trate de medida excepcional, decorre da própria natureza das relações jurídicas, caracterizadas pela bilateralidade, com a assunção de deveres e os direitos que daí emergem. Assim, ao titular do direito não serão conferidas apenas direitos, ao mesmo tempo que o exercício de deveres não impõe ao obrigado uma perspectiva necessariamente negativa.

O Direito representa elemento indispensável ao convívio em sociedade, já que, através das normas jurídicas, se compartilham direitos e deveres, bem como liberdades e responsabilidades. Sendo o homem um ser social, no exercício de seus direitos não poderá agir de forma abusiva, sob pena de grave ofensa às normas jurídicas. Assim é que, na lição de Arnaldo Vasconcelos, existir implica coexistir, ou seja, limitação recíproca de liberdade, apontando ainda que “a norma jurídica objetiva o propósito histórico de conciliar o individual com o social”.[17]

Nos termos do artigo 34 do Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, reconhecendo a necessária conciliação entre os direitos fundamentais no mesmo previstos, “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática”.

Sob essa perspectiva, e considerando a inexistência de normas constitucionais dotadas de hierarquia superior às demais, atuando o princípio da dignidade humana como elemento de unidade axiológica entre a liberdade de manifestação de pensamento, de um lado, e a proteção a valores como honra, imagem e privacidade, de outro, tem-se por inadmissível, à luz do ordenamento jurídico pátrio, a proteção ao discurso do ódio.

O discurso do ódio pode ser conceituado como o ataque a grupos étnicos, raciais, religiosos, minorias sexuais ou a qualquer outro grupo vítima de preconceito, inclusive em decorrência de origem territorial, caracterizado por pregar a intolerância em relação aos discriminados, buscando ou propondo, direta ou indiretamente, sua exclusão da sociedade, eliminação física, remoção do lugar em que vivem, etc.

Trata-se de discurso em geral apto a provocar repulsa em qualquer homem, por afrontar de forma violenta convicções solidamente estabelecidas na sociedade (ao menos em tese), inclusive em decorrência de violências historicamente infligidas a determinados grupos, como a necessidade de combate ao racismo e de punição aos líderes do regime nazista pela matança de judeus. Questiona-se, assim, acerca da aceitação a esse discurso, ainda que apenas para fins de debate sobre os temas propostos.

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A resposta a esse questionamento se apresenta bastante distinta, caso se observe a orientação da jurisprudência norte-americana e o entendimento adotado nos tribunais pátrios. De fato, no caso dos Estados Unidos da América, país sob forte orientação de um constitucionalismo eminentemente liberal, tem sido tolerado o discurso do ódio, sendo propagada a ideia de que devem ser toleradas inclusive as manifestações mais odiosas, ao passo que, no Brasil, tem se firmado orientação em sentido oposto.

Segundo a 1ª Emenda à Constituição norte-americana, limitando o Poder Legislativo, tem-se por vedado ao mesmo editar leis “a respeito do estabelecimento de uma religião, ou a proibir seu livre exercício, diminuir a liberdade de expressão ou de imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente ou de peticionar ao governo para a reparação de ofensas”.

A tradição liberal norte-americana ensejou a construção de jurisprudência robusta no sentido da admissibilidade de qualquer discurso, ainda que odioso, sob o fundamento de que ideias, mesmo reputadas como gravemente equivocadas, deveriam ser combatidas mediante debate público, em processo de construção dialética. Aplicam-se aqui os dizeres de Norberto Bobbio, para quem “responder ao intolerante com a intolerância pode ser formalmente irreprochável, mas é certamente algo eticamente pobre e talvez também politicamente inoportuno”.[18]

O século XX observou a formação de jurisprudência sólida, passando por casos os mais diversos, como Schenk vs. United States, Abrams vs. United States, Whitney vs. California, New York Times vs. Sullivan, Paul Robert Cohen vs. California e Brandenburg vs. Ohio, nos quais se assentou tradição fortemente liberal, no sentido acima exposto, de proteção ao discurso, não obstante odioso, independentemente de seu conteúdo. O último caso acima referido se apresenta emblemático da tradição dos Estados Unidos da América.

Em 1964, Clarence Brandenburg, líder da conhecida organização racista denominada Ku Klux Klan, promoveu discurso gravado por repórteres de rede de televisão local, no qual, além de realizar críticas aos governantes norte-americanos, os quais estariam a afrontar a superioridade da raça caucasiana, bem como realizar atos típicos como a queima de uma cruz por homens usando a vestimenta tradicional, inclusive encapuzados, proferiu afirmações como “o negro deve ser devolvido à África”, e “o judeu deve ser devolvido a Israel”. Propôs o mesmo ainda a vingança contra negros e judeus, bem como a seus apoiadores, inclusive lideranças políticas.

Brandenburg foi condenado pela Corte do Condado de Hamilton com base em lei do Estado de Ohio a uma pena de multa, no valor de US$ 1,000.00 (mil dólares americanos), bem como a pena privativa de liberdade de 1 (um) a 10 (dez) anos, sob o fundamento de haver, com seu discurso, incitado ao crime contra negros e judeus, em decisão posteriormente confirmada pelo 1º Distrito de Apelações de Ohio e pela Suprema Corte do Estado.

Ante a condenação, foi interposto recurso por Brandenburg, acolhido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 09 de junho de 1969 (395 US 444 1969), sob o fundamento de que não seria admissível, à luz da 1ª Emenda à Constituição, a punição ao ilícito de incitação ao crime de forma meramente abstrata, desvinculada de qualquer perigo concreto, usando a corte a expressão “perigo real e imediato”, em doutrina que subsiste até a presente data, como teste para a criminalização do discurso.

Considerou a Suprema Corte, de forma unânime, a inexistência de qualquer prova no sentido de que o réu estivesse de fato disposto a agir, de forma imediata, concretamente contra negros, judeus ou lideranças políticas que os apoiassem, pelo que, ao condená-lo, os órgãos judiciários inferiores teriam criminalizado o discurso, e não ações concretas, afrontando a já referida norma constitucional.[19]

No caso brasileiro, situação fática semelhante, embora não tenha partido de agente engajado em atividades racistas ou atuante em organizações dedicadas a esse propósito, ocorreu no ano de 2010, no que tange a fatos relacionados às eleições presidenciais ocorridas naquele ano. Na ocasião, considerando que a maioria dos votos atribuídos à então candidata Dilma Roussef seriam provenientes de eleitores da região nordeste, a estudante de Direito Mayara Petruso postou, no dia 31 de outubro de 2010, a seguinte mensagem na rede social Twitter, em fato amplamente divulgado: “Nordestisto (sic) não é gente. Faça um favor a Sp: mate um nordestino afogado”.

Embora o caso tramite em segredo de justiça, atualmente perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, após a propositura de ação penal pela Procuradoria da República no Estado de São Paulo, pode-se afirmar apresentar o mesmo algumas semelhanças fáticas no que tange aos fatos relatados em Brandenburg vs. Ohio. Em ambos os casos, pode-se afirmar não haver intenção, ao menos imediata, de realização do mal que se afirmava em face de uma minoria étnica (nordestinos, no caso brasileiro, negros e judeus, no caso norte-americano).

Considerando o alcance universal da internet, a veiculação da mensagem ganhou repercussão inimaginável, fazendo emergir uma série de manifestações em sentidos os mais diversos, tanto para apoiá-la, também pregando o ódio a nordestinos, quanto para refutá-la, inclusive, em alguns casos, pregando o ódio em sentido oposto, de nordestinos para com paulistas.

Foi proposta pelo Ministério Público Federal ação penal com fundamento no artigo 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89 (“praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”), por intermédio de meio de comunicação social, a qual foi julgada procedente, resultando na condenação da ré a pena de 1 (um) ano, 5 (cinco) meses e 15 (quinze) dias de reclusão, substituída por duas penas restritivas de direito, nos autos do Processo nº 0012786-89.2010.403.61.81. Extrai-se da sentença:

“Mayara pode não ser preconceituosa; aliás, acredita-se que não seja. O problema é que fez um comentário preconceituoso. Naquele momento a acusada imputou o insucesso eleitoral (sob a ótica do seu voto) a pessoas de uma determinada origem.

A palavra tem grande poder, externando um sentimento ou um pensamento e produz muito efeito, como se no caso em tela, em que milhares de mensagens ecoaram a frase da acusada.

Ocorre que a mesma ideia, de irresignação em face do resultado eleitoral, poderia ter sido veiculada, inclusive para efeito de atribui-lo aos nordestinos, como autores de voto em sentido contrário ao que acreditava correto a autora, de forma distinta, pelas mais variadas razões, sem que se fizesse necessário, para tanto, adotar atitude que instigasse, ainda que não na forma de um perigo concreto e imediato, o ódio contra os egressos da região nordeste.

Quais as razões, então, teriam levado a uma radical diferença de resultados, pelo menos até essa oportunidade, no julgamento realizado perante a Suprema Corte dos Estados Unidos e aquele realizado perante a Justiça Federal em Sâo Paulo, considerando a semelhança entre as situações fáticas? (Assinala-se que no primeiro caso os fatos se afiguravam ainda mais graves, já que, embora o alcance tenha sido menor, foi proferido por líder de organização racista, que se utilizava de métodos sabidamente violentos e intimidatórios). Reforçando a exegese adotada nos Estados Unidos, leciona Ronald Dworkin:

“É muito importante que a Suprema Corte confirme que a Primeira Emenda protege até mesmo essas formas de expressão; que ela protege, como disse Holmes, até mesmo as expressões que odiamos. Isso é importantíssimo pelo motivo sublinhado pela justificação constitutiva da liberdade de expressão: porque somos uma sociedade liberal comprometida com a responsabilidade moral individual, e nenhuma censura de conteúdo é compatível com esse compromisso”.[20]

Destaca-se ainda  não ser a jurisprudência brasileira isolada, já que, seguindo a tradição jurisprudencial européia, em especial da Alemanha, na qual se criminaliza inclusive o discurso de megação do holocausto, tem decidido no sentido da relatividade do direito à liberdade de expressão, sem lhe conferir caráter absoluto, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal no conhecido caso Ellwanger, no julgamento do Habeas Corpus nº 82.424.

Nos referidos autos, em que se buscava afastar a condenação de editor gaúcho responsável pela edição de livros com forte conteúdo antissemita, em que se sustentavam, entre outros fatos, a inexistência do extermínio de judeus em câmaras de gás durante a 2ª Guerra Mundial, o Supremo Tribunal Federal assentou a existência de limitação externa à liberdade de expressão, afastando seu caráter absoluto, já que indispensável ao seu resguardo a necessária e imprescindível observância ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, dentro do qual se exerce tal liberdade.

Embora uma das principais questões de fundo discutidas no acórdão tenha se relacionado à condição das vítimas, posto que sustentado no voto do relator, Min. Moreira Alves, tratarem-se os judeus de povo, e não raça, questão superada no voto condutor do Min. Maurício Corrêa, o tema atinente à liberdade de expressão, invocado pelo réu para afastar sua condenação, também veio a baila, tendo proferido brilhante voto sobre o tema o Min. Celso de Mello, do qual se podem extrair, entre outras, as seguintes passagens:

“Com efeito, há, na espécie, norma constitucional que objetiva preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana, buscando inibir, desse modo, comportamentos abusivos que possam, impulsionados por motivações racistas, disseminar, criminosamente, o ódio contra outras pessoas, mesmo porque a incitação – que constitui um dos núcleos do tipo penal – reveste-se de caráter proteiforme, dada a multiplicidade de formas executivas que esse comportamento pode assumir, concretizando assim, qualquer que tenha sido o meio empregado, a prática inaceitável do racismo.

Presente esse contexto, cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dignidade pessoal dos seres humanos constituem  limitações externas à liberdade de expressão, que não pode e não deve ser exercida com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas, tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e de ódio público”.

A solução adotada pelo sistema norte-americano, de condicionar qualquer punição ao discurso do ódio à prova do surgimento de um perigo real e imediato causado pela mesma manifestação, não se apresenta como suficiente à garantia de paz social, na medida em que possibilita sejam propagadas ideias cuja difusão busca única e exclusicamente a destruição de outros grupos políticos, étnicos e sociais, caracterizando-se situação fática contrária aos propósitos do surgimento da liberdade de expressão, que era exatamente a garantia de tolerância e pluralismo. A respeito, sustenta Daniel Sarmento:

Mas este ambiente é simplesmente inviabilizado pelo hate speech, que está muito mais próximo de um ataque do que de uma participação num debate de opiniões. Diante de uma manifestação de ódio, dois comportamentos prováveis da vítima: revidar com a mesma violência, ou retirar-se da discussão, amedrontada e humilhada. Nenhum deles contribui minimamente para 'a busca da verdade'.

Portanto, não é só porque as ideias associadas ao hate speech são moralmente erradas que o Estado deve coibir esta forma de discurso. O fato de uma ideia ser considerada errada não é base suficiente para a sua supressão da arena de discussão. Este é o pilar fundamental da liberdade de expressão, que não deve ser ameaçado. Mais relevantes do que o erro é a constatação de que as expressões de ódio, intolerância e preconceito manifestadas na esfera pública não só não contribuem para um debate racional, como comprometem a própria continuidade da discussão. Portanto, a busca da verdade e do conhecimento na justifica a proteção ao hate speech, mas, pelo contrário, recomenda a sua proibição”.[21]

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Sobre o autor
Rômulo Moreira Conrado

Procurador da República. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional e em Direito e Processo Tributários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONRADO, Rômulo Moreira. A vedação ao discurso do ódio na Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3555, 26 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24047. Acesso em: 19 abr. 2024.

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