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Considerações sobre a nova lei do mandado de segurança

09/06/2013 às 09:58
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O mandado de segurança, garantia constitucional fundamental que deveria ser tratada de forma a assegurar a sua máxima eficácia, nos termos da Lei nº 12.016/09, privilegia os interesses da máquina estatal em detrimento dos direitos fundamentais do cidadão.

O mandado de segurança, uma das mais importantes ações constitucionais brasileiras, passou recentemente por uma considerável transformação. Seu regramento foi alterado através da Lei nº 12.016/09, que veio a substituir a Lei nº 1.533/51, o diploma legal que deu ao referido instituto o seu perfil, no plano infraconstitucional, por mais de meio século. O novo diploma legal, contudo, está sendo fortemente criticado pela doutrina, face às parcas inovações que trouxe, bem como em razão de várias inconstitucionalidades manifestas.

Em linhas gerais, pode-se definir o mandado de segurança como uma ação constitucional destinada a resguardar o direito líquido e certo do cidadão contra a atuação ilegal do Poder Público. Ou, melhor explicando, uma via especial, muito mais célere e eficaz do que as vias ordinárias, posta à disposição do particular para combater os desmandos do Poder Público que venham a afetar sua esfera jurídica.

Trata-se de uma garantia fundamental, eis que prevista no inciso LXIX da Constituição da República Federativa do Brasil, nos seguintes termos: “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas-corpus’ ou ‘habeas-data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”. Tal dispositivo deve ser interpretado da forma que lhe dê a maior eficácia possível, em consonância com os pressupostos da força normativa da Constituição e do primado dos direitos fundamentais.

A expressão “direito líquido e certo”, uma das exigências de índole constitucional para o manejo do mandado de segurança, é tecnicamente inadequada: não é o direito que deve ser líquido e certo, mas sim os fatos que ensejam o exercício desse direito. Vale dizer, a veracidade das alegações deve estar demonstrada de plano. Não se admite, no mandado de segurança, prova a posteriori, ou seja, o proponente da medida deve instruir a inicial com os documentos de valor probatório que estiverem à sua disposição. A complexidade das questões jurídicas em debate, contudo, não inviabiliza a utilização da via do mandado de segurança, pois tal circunstância não tem o condão de afastar a liquidez e certeza do direito. É esse o entendimento consagrado na Súmula 625 do STF.

A impetração de mandado de segurança depende de um ato ilegal emanado de autoridade pública, aqui entendida em sentido amplo, para abranger, além dos ocupantes de cargo público, também os representantes ou órgãos de partidos políticos, os administradores de entidades autárquicas e os dirigentes de pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do Poder Público (art. 1º, § 1º da Lei nº 12.016/09). Não é necessário que o ato coator já tenha sido praticado; a medida pode ser utilizada também para prevenir que o ato lesivo venha a consumar-se, sendo, todavia, necessário que se demonstre o justo receio de sofrer a violação, através de dados objetivos que indiquem que a autoridade coatora está na iminência de cometer a ilegalidade. No primeiro caso, o mandado de segurança tem caráter repressivo; no segundo, caráter preventivo.

Dá-se o nome de “impetrada” à autoridade responsável pela prática do ato impugnado, e de “impetrante” à parte que propõe a medida. Pode figurar na condição de impetrante todo aquele que tiver sua esfera jurídica atingida pelo ato coator. Pessoas físicas, jurídicas e até mesmo entes despersonalizados, como o espólio, a massa falida e o condomínio de apartamentos, podem se valer dessa garantia.

Feitas essas considerações gerais acerca da configuração do instituto, passa-se agora a discorrer especificamente sobre os aspectos mais importantes da Lei nº 12.016/09.

É inegável que uma reforma legislativa não pode ser levada a cabo de maneira despropositada. Ora, pretendendo o legislador alterar o regramento de uma determinada matéria, não deve fazê-lo sem, com isso, trazer alguma novidade importante, que venha a contribuir definitivamente para sua compreensão e aplicação. Do contrário, estar-se-ia gerando insegurança jurídica, além, é claro, de uma indesejável e desnecessária perda de tempo aos operadores do direito.

Nesse sentido, a impressão deixada pela Lei nº 12.016/09, que deu ao mandado de segurança o seu (pretensamente) novo regramento, é extremamente negativa. A Lei nº 1.533/51, que vigeu por mais de meio século, estava, de fato, bastante defasada, e pode-se dizer que realmente merecia reforma, para que houvesse a adequação do importantíssimo instituto do mandado de segurança à nova ordem constitucional, surgida com a Constituição de 1988. A Lei nº 12.016/09 não atingiu, nem de longe, esse propósito. Muitos dos seus dispositivos são cópia literal – ou quase literal – da lei anterior, outros tantos são meras reproduções de entendimentos consolidados na jurisprudência e, das escassas inovações trazidas por ela, apenas algumas podem ser consideradas realmente positivas.

São muitos os exemplos que poderiam ser citados aqui; vamos fazer referência apenas aos que melhor ilustram o ponto de vista acima defendido.

Em primeiro lugar, a Lei nº 12.016/09 manteve, no seu art. 4º, a regra prevista no art. 4º da Lei nº 1.533/51, autorizando a impetração de mandado de segurança por meio eletrônico apenas em casos de urgência, o que claramente não se coaduna com a moderna sistemática do processo eletrônico; trata-se, portanto, de um arcaísmo incompreensível e injustificável.

Ainda, o art. 15 da Lei nº 12.016/09 manteve a esdrúxula possibilidade de ser requerida a suspensão da liminar ou da sentença pelo Poder Público, anteriormente prevista no art. 13 da Lei nº 1.533/51; há, aqui, uma inconstitucionalidade manifesta, na medida em que é conferida a apenas uma das partes (não respeitada a isonomia) a possibilidade de requerer a suspensão dos efeitos da decisão que lhe é desfavorável, apenas com base em alegações genéricas de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, mantendo-se, com isso, uma possível violação a direito fundamental do impetrante. Trata-se, sem dúvida, de uma das grandes aberrações do ordenamento jurídico brasileiro.

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Da mesma forma, a Lei nº 12.016/09 manteve, em seu art. 23, a previsão relativa ao prazo decadencial de cento e vinte dias para a impetração, regra que constava do art. 18 da Lei nº 1.533/51 e, até mesmo, das leis anteriores a ela. Trata-se de uma norma de constitucionalidade bastante duvidosa, para dizer o mínimo, já que ela representa um considerável obstáculo à utilização do mandado de segurança, obstáculo que não encontra amparo no texto constitucional.

Outro ponto que deve ser ressaltado consiste na manutenção, pelo art. 7º, § 2º da Lei nº 12.016/09, de uma série de restrições à concessão de liminares contra o Poder Público, anteriormente previstas em legislação esparsa. Tais restrições ferem o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição, sendo manifesta a sua inconstitucionalidade.

O art. 25 da Lei nº 12.016/09, que estabelece o descabimento da interposição de embargos infringentes e da condenação em honorários advocatícios no mandado de segurança, nada mais é que uma reprodução do entendimento jurisprudencial sumulado pelos tribunais superiores (Súmulas 597 do STF e 169 do STJ, sobre os embargos infringentes; Súmulas 512 do STF e 105 do STJ, sobre os honorários advocatícios). Contudo, é verdadeiramente absurda a vedação à condenação em honorários, soando tal regra como um desprestígio ao trabalho do advogado.

Dentre as raras inovações trazidas pela Lei nº 12.016/09, destaca-se a estranhíssima previsão do seu art. 7º, inciso II, relativa à necessidade de ser dada ciência da ação ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, a fim de possibilitar o seu ingresso no feito. É uma previsão sem sentido, já que a pessoa jurídica de direito público já está sendo “presentada” – na clássica definição de Pontes de Miranda – pela autoridade coatora no primeiro grau de jurisdição. A lei permite que a mesma pessoa figure duas vezes no mesmo polo da relação processual, o que é totalmente ilógico.

Enfim, são tantos os destaques negativos da nova lei que mesmo algumas inovações positivas trazidas por ela, como a supressão da vedação ao cabimento do mandado de segurança contra ato disciplinar, acabam por ficar irremediavelmente eclipsadas.

É ideia corrente, no moderno direito administrativo, que não há supremacia do interesse público quando houver direitos fundamentais em jogo; o Estado não pode valer-se de sua posição de pretenso garantidor da vontade geral para, com isso, vilipendiar os direitos fundamentais garantidos pela Constituição. A Lei nº 12.016/09, contudo, parece não estar de acordo com essa concepção. O mandado de segurança, garantia constitucional fundamental que deveria ser tratada de forma a assegurar a sua máxima eficácia, recebeu um tratamento legislativo que, ousamos dizer, privilegia os interesses da máquina estatal em detrimento dos direitos fundamentais do cidadão

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Sobre o autor
Ricardo Paz Gonçalves

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS; Advogado inscrito na OAB-RS sob nº 75.209; Extensão em Gestão Tributária Empresarial pela FEEVALE, Consultor externo do Sebrae-RS nas áreas de Políticas Públicas e Desenvolvimento de Metodologias; Membro ativo da Fundação Escola Superior de Direito Tributário (FESDT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Ricardo Paz. Considerações sobre a nova lei do mandado de segurança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3630, 9 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24652. Acesso em: 19 abr. 2024.

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