1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA
SÚMULA DE EFEITO VINCULANTE
O termo súmula deriva do latim summula, significando sumário ou índice de alguma coisa. Segundo De Plácido e Silva, a súmula seria algo "que de modo abreviadíssimo explica o teor, ou o conteúdo integral de uma coisa. Assim, a súmula de uma sentença, de um acórdão, é o resumo, ou a própria ementa da sentença ou do acórdão". (1)
Súmula, na acepção mais corrente que se lhe tem dado, consiste num enunciado sintético que contém a interpretação uniformizada de Tribunal sobre uma dada matéria. Nem todas as decisões dos Tribunais, entretanto, serão objeto de edição de súmulas, mas somente aquelas que, em virtude de sua repetição, conexão e coerência com outros julgados tornam-se jurisprudência e, posteriormente, súmulas. Vinculação implica na filiação obrigatória de uma decisão a outra, anterior, que a submete. Da conjugação de ambos resultou a denominação - hoje costumeira - de súmula vinculante, usada para designar o resumo da jurisprudência dominante de um determinado tribunal superior dotada de efeito vinculativo e eficácia erga omnes relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.
Se, por um lado, a adoção do instituto da súmula de efeito vinculante é vista por vários juristas com certa reserva, por outro constitui para muitas autoridades dos vários Poderes uma esperança plausível de solução para aquele que é talvez o principal problema das instâncias superiores do Judiciário nacional: o amontoamento incontido de causas repetitivas. O eminente Ministro Sepúlveda Pertence durante o biênio em que esteve á frente da presidência do STF (1995/1996), deu início ao debate em torno da súmula vinculante, empreendendo uma verdadeira cruzada em defesa da sua implantação como remédio para a chamada "crise dos recursos extraordinários" relativa áquela Corte. Esta multiplicação processual é particularmente sentida no STF , mas também no STJ, onde se aferiu que cerca de 70 a 90% das causas são iterativas, principalmente em matéria tributária, previdenciária, administrativa, acidentária e econômica. A maior parte dessas demandas é ajuizada contra ou pelo Poder Público, especialmente o Federal.
Dentre outros mecanismos sugeridos, exsurge a súmula vinculante como um remédio capaz de dotar de agilidade e eficácia a máquina emperrada da Justiça, evitando repetição inútil de causas, bem como dissenso de vários órgãos julgadores em instâncias inferiores, quando já houver uma decisão pacificadora em Corte Superior no mesmo sentido.
Longe de ser consenso, a introdução do efeito vinculativo tem sido desde sua propositura alvo de acesas controvérsias na comunidade jurídica. Nem mesmo os principais argumentos em favor do efeito vinculante, quais sejam os de reduzir a incerteza quanto ás decisões conflitantes de diversos julgadores, incrementar a celeridade e economia processuais, parecem sensibilizar juízes, promotores e advogados. Temem, muitos dentre estes últimos, as conseqüências de sua instituição para todo o aparato da Justiça e, principalmente, para os jurisdicionados. No que concerne aos membros do Poder Judiciário, a discussão precípua situa-se na órbita da afronta á independência funcional dos magistrados assim como á supressão de instâncias; já no caso dos jurisdicionados, a súmula vinculante prejudicaria, segundo aqueles, as garantias constitucionais do livre-acesso á Justiça e do devido processo legal (CF, art. 5º incs. XXXV e LIV).
A crise do excesso de feitos versando sobre matérias idênticas não é nova. Nos primeiros anos da década de 60, devido ao enorme congestionamento de processos distribuídos até então, os Ministros do STF reunidos, acataram proposta pioneira do Min. Victor Nunes Leal, de forma a criar em 28 de agosto de 1963 através de emenda ao regimento interno a "Súmula da Jurisprudência Dominante do Supremo Tribunal Federal". A formulação da súmula representava uma inovação para a época, e segundo seus defensores, visava introduzir uma metodologia de julgamento nos processos que abarrotavam o STF já naqueles tempos, proporcionando maior estabilidade á jurisprudência do Tribunal, na medida em que o novo instituto uniformizaria decisões que se repetiam reiteradamente em semelhantes julgados. Tal súmula tinha, como ainda tem, autoridade meramente persuasiva para os demais órgãos do Poder Judiciário, sendo passíveis de revisão pelo próprio tribunal. Após sua adoção pelo STF, os demais tribunais imitaram o seu exemplo formulando suas próprias súmulas. Desde então, lança-se mão profusamente deste instrumento nos principais tribunais do país. Saliente-se, entretanto, que nem todas as decisões dos tribunais, constituem objeto de súmulas, mas somente aquelas que, em razão de sua repetição, conexão e convergência com outros julgados firmem jurisprudência, ensejando a edição da súmula. Em seguida, o que antes era apenas matéria regimental dos tribunais, passou posteriormente a constar também expressamente do Código de Processo Civil, em seus arts. 476 a 479, que autorizam a emissão de súmulas pelos tribunais como efeito do incidente de uniformização de jurisprudência.
Quanto ao efeito vinculante propriamente dito, foi formalmente instituído em nosso ordenamento jurídico por ocasião da promulgação da Emenda Constitucional 03/93, cujo art. 1º alterou o art. 102 da Constituição para incluir o § 2º, criando a Ação Declaratória de Constitucionalidade de lei ou ato normativo, dotada de eficácia erga omnes e efeito vinculante. O modelo de inspiração imediato da forma vinculada remonta á regra do stare decisis ou precedente judicial vinculativo próprio do sistema common law, muito embora haja notórias discrepâncias entre aquele sistema e o nosso, de tradição romano-germânica, tendo o efeito vinculante no common law motivação e aplicabilidade bastante diversas das que se pretendem implantar aqui.
Existem atualmente duas propostas em discussão no Congresso Nacional acerca da súmula vinculante: uma, tramitando na Câmara dos Deputados, por meio do substitutivo apresentado pelo Deputado Jairo Carneiro (PFL/BA), que institui a súmula vinculante no bojo de um projeto maior de Reforma do Judiciário (Proposta de Emenda Constitucional n. 96/92); e a outra, Proposta de Emenda Constitucional n° 54/95, em curso no Senado Federal, de autoria do Senador Ronaldo Cunha Lima (PMDB/PB), específica sobre a súmula, que dá nova redação ao parágrafo 2º do art. 102 da Constituição Federal, implantando o efeito vinculante nas decisões definitivas de mérito do STF.
2) CRISE DO JUDICIÁRIO E ADOÇÃO DO EFEITO VINCULANTE.
A proposição de soluções com vistas a satisfazer a crescente demanda por prestação jurisdicional do Estado tem sido variada e numerosa nos últimos dez anos. Desde a promulgação da Constituição de 1988, a chamada constituição-cidadã, criou-se ou ampliou-se inúmeros mecanismos jurídico-institucionais de proteção e garantia aos direitos individuais e coletivos de modo a assegurar ao brasileiro melhores instrumentos de exercício livre e pleno de sua cidadania no regime democrático restabelecido. Aliado a isto, acrescente-se a demanda reprimida por sucessivos anos de regime totalitário, que emergiu com todo o ímpeto, batendo ás portas de um Judiciário despreparado para atender convenientemente tal despertar da cidadania. De fato, as estruturas do Judiciário brasileiro em seu eixo essencial persistem profundamente arcaicas e defasadas, datando várias delas do século passado. Eis o impasse: essa antiga e solene instituição, em plena era da globalização e da multimídia, viu-se subitamente defrontada com as exigências crescentes e prementes de uma prestação jurisdicional célere, eficaz e objetiva, sem que por si mesma pudesse em seu ritmo lento acompanhar o passo cada vez mais rápido das transformações sociais em curso.
Na raiz da propagação dos enunciados de caráter vinculante, concebidos pelos seus defensores como alternativa viável e eficaz para a solução do problema do abarrotamento de causas repetitivas no Supremo Tribunal Federal, está a chamada crise "dos recursos extraordinários" (extraordinário propriamente dito e especial), ás vezes também nomeada de crise "dos Tribunais Superiores". Embora tal problemática não se circunscreva apenas ao STF, sendo conhecida e enfrentada também pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Superior do Trabalho, é certo que ela é ali mais dramática devido ao parco número de ministros existentes.
A partir das estatísticas fornecidas pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário (BNDPJ), divulgados pela Assessoria Especial da Presidência do Supremo Tribunal Federal pode-se tentar compor um quadro amostrativo do cenário até aqui descrito. Os números falam por si mesmos: em 1994, o STF com apenas 11 magistrados recebeu 26.662 feitos e julgou 28.752 ao longo daquele ano; em 1995 foram mais 30.706 recebidos e proferidas 35.214 decisões; em 1996, foram distribuídos 30.706, e 29.000 julgados; em 1997, recebidos 33.963 processos e 40.615 julgados. Em 1998, houve um crescimento da ordem de 13% relativamente ao ano anterior, aproximando-se portanto da casa dos 48.000 feitos apreciados. O cotejo do quantitativo de causas submetidas a julgamento por ano na relação número de ministros/quantidade de feitos distribuídos desde 1940 no STF, descortina um dado estarrecedor: o mesmo número de integrantes do Supremo Tribunal onze - hoje julga um volume de processos 1856% maior que o levado a efeito há 59 anos. Em 1952, tome-se como exemplo, o STF julgou apenas 1807 processos. Ao passo que, somente de janeiro a outubro de 1998 foram julgados 38.204 processos, com expectativa de crescimento de 13% em relação ao mesmo quantitativo de feitos apreciados no ano anterior.
No Superior Tribunal de Justiça, que possui em seus quadros 33 ministros, recebeu 14.087 processos em 1990, em 1996 foram distribuídos 53.993 feitos, em 1997 a cifra aumentou para 103 mil, e em 1998 a marca ficou um pouco aquém da anterior: 101.000 julgados. No Tribunal Superior do Trabalho, recebeu-se 14.087 causas em 1990, cinco anos depois o número saltou para 93.484 processos. E, assim como no caso do Supremo Tribunal, a tendência nos dois casos supramencionados é de franco crescimento. O mais curioso e inquietante fato, todavia, decorre da amostragem realizada a partir dos feitos sobre quais são sua principal clientela de recorrentes: quase 61% dos recursos em tramitação no Supremo partem da União, a seguir vem o INSS com 21,94%, em terceiro o Estado de São Paulo com 11,59%. Uma vez somados implica dizer que quase 95% de todos os feitos ingressos no STF, na média, são originários do Poder Público. Além disso, estima-se que cerca de 80% das ações abordam matérias decididas anteriormente, várias das quais já sumuladas, inclusive. Donde se deflui necessariamente que, sendo o Poder Público o maior "cliente" dos Tribunais Superiores, esta repetição irracional e inútil de causas nestas instâncias se dá por insistência dos entes públicos em não se submeterem á jurisprudência dominante das Altas Cortes, onde em muitos casos as decisões lhe são desfavoráveis, e cuja probabilidade de êxito, portanto, é mínima. Sem embargo, assim mesmo, insiste-se no abuso dos permissivos legais para se ensejar a procrastinação inútil e desgastante dos feitos, prolongando ao máximo a inevitável e tardia derrota até estes desembocarem nos Tribunais Superiores.
O sistema recursal existente viabilizou a configuração das quatro instâncias judiciárias atuais (juízo monocrático, tribunais estaduais ou federais, STJ e STF), de tal sorte que em muitos casos temos não um duplo grau de jurisdição, mas na prática um quádruplo grau recursal. O excesso de recursos possibilita o abuso na procrastinação dos feitos, uma vez tomado o hábito de se rediscutir indefinida e inutilmente matéria já sumulada até a última instância, com o óbvio viso de retardar pagamento de débitos ou atrasar o cumprimento de garantias e compromissos assumidos com a sociedade. O caso do Supremo Tribunal Federal é bastante notório devido ao seu dúplice papel de quarto grau de jurisdição cumulado com o de guardião da Constituição Federal. A substancial pormenorização da Carta Magna, a partir de 1988, prossegue permitindo praticamente sejam rediscutidas em sede do Supremo quaisquer matérias que direta ou indiretamente afetem á Constituição, mesmo remotamente.
Para efeito comparativo, a Suprema Corte dos Estados Unidos possui 9 juízes que julgam cerca de 160 recursos por ano, posto que os juízes gozam da prerrogativa de selecionar dentre as milhares de causas a eles submetidas apenas em torno de 350 feitos tidos como mais importantes para exame e posterior decisão, com base no critério da relevância (writ of certiorari). A Corte de Cassação italiana, por seu turno, se compõe de 352 magistrados que julgam algo em torno de 35.200 processos por ano (cabendo a cada um 97 causas). Quanto á França, a Corte de Cassação francesa integrada por 135 magistrados decide anualmente cerca de 10.000 feitos, o que confere uma média de 75 para cada juiz. Diferentemente da Suprema Corte americana, é de se notar que nem na França nem na Itália, tal como ocorre no Brasil, se possui o poder discricionário para escolher os recursos relevantes que irão a julgamento.
O problema criado pelo excesso de recursos acerca de matérias já sumuladas integra e está na base da "crise dos Tribunais Superiores". Neste contexto, muitos dos ilustres membros destas Cortes acreditam que a adoção da súmula vinculante seja um remédio não só adequado como necessário, apesar dos efeitos colaterais e da resistência que possa trazer junto consigo para o resto do corpo judiciário, principalmente para os juízes de instâncias inferiores.
Se, por seu turno, a crise do Judiciário passa pela crise do excesso de recursos, é certo que ela não se esgota aí; compreendendo uma gama ampla de dificuldades e questões fundamentais que também pedem por solução. Dentre elas temos: o pequeno número de magistrados recrutados nos concursos públicos, o desaparelhamento e anacronismo dos órgãos auxiliares, excesso de formalismos, a demora na entrega da prestação jurisdicional, problemas relativos á assistência judiciária, descoordenação entre a polícia judiciária e o Ministério Público nas investigações, as reiteradas ilegalidades cometidas pelo Poder Executivo.
3) RAZÕES FAVORÁVEIS E CONTRÁRIAS ÁS DECISÕES VINCULANTES.
Pretende-se implantar no Brasil com a súmula vinculante, um sucedâneo "tupiniquim" para o stare decisis do sistema jurídico da common law, aplicável notadamente nos EUA e na Grã-Bretanha. Tenciona-se com ela atribuir ás decisões jurisprudenciais num sistema legalista e codificado qual o nosso, uma força e obediência que são próprias de um outro sistema de primado jurisprudencial e caráter consuetudinário. Derivando assim um instituto de feição nitidamente híbrida, pelo qual adotar-se-ia entre nós uma figura jurídica inspirada no stare decisis do sistema norte-americano com as devidas adaptações, de forma a moldá-lo com alguma coerência ás exigências e finalidades típicas de nosso ordenamento jurídico.
Acontece que, na contramão dos fatos de nossa alçada, verifica-se uma tendência progressiva tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra rumo a uma flexibilização ainda maior na aplicação do stare decisis (rule of precedent). Os juízes do sistema anglo-americano examinam um grande número de precedentes, valendo-se de um ou outro dos diversos métodos de hermenêutica (gramatical, histórico, teleológico, sistemático, etc.) para formar sua convicção de quais precedentes ou pontos relevantes dos mesmos deverão ser aplicados á espécie. Além disso, o magistrado poderá deixar de obedecer ao precedente quando este incorrer em erro manifesto, contrariando expressa disposição de lei.
O sistema anglo-americano possui reconhecidas virtudes, principalmente neste campo da estabilidade e respeito á autoridade jurisprudencial. E são exatamente elas que inspiraram e continuam inspirando juristas nacionais a importar e adaptar aspectos de seus institutos de modo a conferir maior autoridade ás decisões dos Tribunais Superiores. A súmula vinculante constituiria precisamente essa vinculação dos juízes e do Poder Público a um entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores firmado em um enunciado.
À parte do direito anglo-saxônico, podemos ainda consignar a valiosa experiência portuguesa - um país tão próximo culturalmente do nosso quanto a Grã-Bretanha dos Estados unidos, e sobretudo da mesma família de tradição romanística - com um instituto similar á súmula vinculante: os prefalados "assentos". Valiosa porquanto a experiência local com este remédio, iniciou-se desde a sua primitiva construção pela Casa de Suplicação, nos tempos do império, como elemento balizador da jurisprudência, perdurando com modificações no ordenamento lusitano até a reforma processual de 1995, que os revogou. Estes "assentos" constituíam enunciados com as decisões do Supremo Tribunal de Justiça para dissídios jurisprudenciais, estabelecidos com maioria qualificada de pelo menos 4/5 dos seus membros, segundo disposição do art. 2º do Código Civil português. A observância compulsória do referido instituto naquele país praticamente erigiu a jurisprudência firmada pela sua Corte Máxima em enunciados de caráter normativo, vinculando a tudo e a todos, inclusive o próprio Tribunal editante, de forma que só se poderia alterá-los ou revogá-los por intermédio de lei. Com o passar dos anos, intensa e acalorada discussão se estabeleceu na comunidade jurídica local sobre a eventual inconstitucionalidade dos referidos assentos, que ao ver de muitos estariam invadindo a área de competência do Poder Legislativo, em virtude de sua feição geral e obrigatória tipicamente legiferante. As mudanças então se seguiram: num primeiro momento, o Tribunal Constitucional (1994) declarou a inconstitucionalidade do citado art. 2º do Código Civil, ainda que apenas na parte concernente ao seu caráter geral compulsório; num segundo momento, o decreto-lei nº 329-a de 1995, "revogou totalmente não só o art. 2º do Código Civil, como todos os artigos do CPC que disciplinavam a matéria (arts. 763 a 770)" (2). No vetor inverso ao atual momento brasileiro de avaliações e estudos em torno da conveniência ou não se implantar a súmula vinculante para os Tribunais Superiores, em Portugal a tendência majoritária, por sua vez, parece ser no sentido de se destituir até mesmo o resíduo de vinculatividade dos acórdãos editados pelo Supremo Tribunal de Justiça para os tribunais inferiores lusitanos, conferindo áqueles uma autoridade meramente persuasiva para as demais instâncias judiciárias. Isto é, enquanto estamos discutindo e apreciando no seio da comunidade jurídica brasileira os pressupostos, a necessidade e oportunidade de se adotar esta nova sistemática jurídica em nosso ordenamento, não deixa de ser deveras salutar conhecer-se e fazer eventuais comparações com a atual inclinação do direito português no contrafluxo. Afinal, a experiência portuguesa com os assentos, ao que tudo indica, produziu com o passar dos tempos efeitos indesejados seja nas relações sócio-jurídicas seja na própria jurisprudência, sob os aspectos da cristalização e embotamento da atividade criativa judicial e até legislativa, os quais acabaram por ensejar sua extinção. O que a princípio destinava-se a ser um fator de uniformização judiciária nacional com base na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal, depois constatou-se, conduziu ao engessamento das demais Cortes. De sorte que, estes constituem notadamente alguns dos principais problemas no cerne das intensas controvérsias e debates quanto aos projetos de emendas constitucionais em tramitação no Congresso de modo a se prevenir e evitar neles incidamos com a eventual introdução do efeito vinculante para as decisões sumuladas do STF ou de todos os Tribunais Superiores brasileiros.
Para juristas como Hugo de Brito Machado - defensor do efeito vinculante - diante de um quadro de milhares de causas com a mesma pretensão, como as referentes aos diversos índices de reajustes de servidores públicos, devolução de empréstimo compulsório sobre combustíveis, contribuições sobre o Finsocial, liberação de contas do FGTS, contribuições para o PIS, entre tantas outras, "impõe-se a uniformidade do entendimento jurisprudencial, sem o que o descrédito do Judiciário é inevitável". De acordo ainda com a visão essencialmente pragmática do festejado magistrado,
"não é razoável admitir-se que o Judiciário esteja com seus canais inteiramente congestionados, com milhares de processos em tramitação no Brasil inteiro, quando o Supremo Tribunal Federal, com uma única decisão, poderia resolver definitivamente a questão, tornando desnecessários milhares de processos". (3)
Ademais, vozes inflamadas dos Poderes Executivo e Legislativo tem se levantado iterativamente contra o que se convencionou chamar de "indústria das liminares", reclamando via de regra das dicotômicas decisões proferidas em mandados de segurança, medidas cautelares e, mais recentemente, em sede das antecipação de tutela em ações ordinárias. Mormente, é bem de ver, quando aquelas reconhecem determinados direitos e asseguram garantias constitucionais aos cidadãos, pela via do controle incidental, eventualmente negadas, cerceadas ou subtraídas pelo próprio Poder Público, seja em razão de um novo plano econômico, ou de alterações no sistema previdenciário, de uma nova lei contrária aos interesses de certas categorias de servidores públicos, da política de privatizações de empresas estatais, entre muitas outras hipóteses correlatas.
No Supremo Tribunal Federal, a imensa maioria dos atuais ministros são igualmente favoráveis á adoção da súmula vinculante, a exemplo de José Paulo Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim, Carlos Mário da Silva Velloso, José Carlos Moreira Alves, José Néry da Silveira, Sidney Sanches, Ilmar Galvão, Octávio Gallotti e Maurício Correia. Nesta esteira de entendimento, a lição extraída de voto do então Ministro daquela Corte Paulo Brossard proferido em questão de ordem de Ação Direta de Constitucionalidade N.1-1/DF:
"Quanto ao (...) efeito vinculante, creio que é uma medida de utilidade (...), porque, por essa ou aquela razão, acontece entre nós o que não acontece em outros países de diferente tradição histórica e jurídica, em que uma decisão de Tribunal Superior, não pela lei, mas pela teoria do stare decisis, se faz respeitável e respeitada. Não há lei que determine o respeito a um acórdão da Suprema Corte; respeita-se porque é da Suprema Corte. Entre nós, por essa ou aquela razão, durante decênios se controverte sobre um tema, não chega a termo o dissenso. (...) É possível arrolar mil decisões num sentido e mil e uma em sentido inverso. Ora, isto não pode continuar indefinidamente. O princípio da utilidade tem de se fazer sentir, ainda que isto importe, aqui ou ali, em certas situações menos confortáveis... É um princípio de utilidade jurídica, social, política, utilidade no seu sentido mais amplo." (4)
Na corrente contrária de juristas, asseverando as inúmeras disparidades e incompatibilidades percebidas entre a regra do stare decisis tal como existe no sistema anglo-americano e aquela que se tenciona instaurar de forma plena no Brasil, destacam-se Fábio Konder Comparato, Dalmo de Abreu Dallari, Carmen Lúcia Rocha, Lênio Luís Streck, e Evandro Lins e Silva, para quem este novo instituto criaria em nosso meio a figura dos "juízes legisladores":
"Não estamos no Sistema da Common Law, onde há dois tipos ou efeitos das decisões judiciais sobre os casos futuros: o efeito meramente persuasivo, equivalente ao das atuais súmulas, entre nós, e o efeito vinculante (binding precedents). Mesmo nesta última hipótese, o efeito obrigatório do precedente é sempre relativo, podendo o juíz ora desconsiderá-lo por se tratar de fatos diversos e, também, mesmo reconhecendo a identidade do fato, caso ele seja "desarrazoado e inconveniente" (unreasonable and inconvenient), desde que o juiz decline cumpridamente as razões para esse julgamento.
[...] Percebe-se, de logo, a absoluta inviabilidade de se introduzir o instituto do precedente absolutamente vinculado nos sistemas jurídicos da família romano-germânica. Nestes, como sabido, a fonte primária do direito é sempre a lei, isto é, a norma geral e abstrata emanada do Poder competente, o qual, no regime democrático, é o próprio povo diretamente, ou os seus representantes legitimamente eleitos que formam o órgão estatal legislativo. Os Juízes não tem legitimidade democrática para criar o direito, porque o povo não lhes delegou esse poder. A sua função precípua, na organização estatal, é a de funcionar como árbitros supremos dos conflitos de interesse na aplicação da lei". (5)