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Corrupção, discurso de resistência e tutela jurídica da probidade administrativa

05/09/2013 às 17:13
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Após mais de duas décadas da Carta Política e da Lei 8.429/92, quando os seus efeitos começam a servir de obstáculo à corrupção, tem sido crescente o surgimento de teses típicas de um discurso de resistência à efetividade da tutela da probidade administrativa.

“(...) peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro (...)”

(Pero Vaz de Caminha)


1. Introdução

Aqui em se plantando tudo dá, dizia o escrevinhador pelos idos do ano 1500, não deixando, ao fim e ao cabo, de solicitar à autoridade-mor o envio do parente para tão promissora terra.

Vivia-se numa monarquia absoluta e os bens do Estado se confundiam com o patrimônio do rei, que tudo podia e era divinamente infalível e irresponsável. A república brasileira da atualidade, contudo, não comportaria atender o pedido acima reproduzido, considerado imoral. Certamente, uma improbidade, conforme regramento da Constituição de 88 e da Lei 8.429/92 - LIA.

Após mais de duas décadas da Carta Política e da Lei 8.429/92, quando os seus efeitos começam a servir de obstáculo à corrupção, tem sido crescente o surgimento de teses típicas de um discurso de resistência à efetividade da tutela da probidade administrativa.

O propósito do ensaio, então, é demonstrar a impertinência de tal discurso de modo constitucionalmente adequado[1], indicando os fundamentos da autonomia do regramento da improbidade e a sua importância para a compreensão dos ilícitos previstos na Lei 8.429/92, incluindo-se a suficiência da culpa em sentido estrito na responsabilização legal; para a dosimetria das sanções administrativas, tendo em mira o alcance de outras instâncias; e para o exame do procedimento previsto no art. 17, §§ 7º e 9º, da Lei 8.429/92, procurando identificar a natureza jurídica dos atos de “notificação” e de “citação” numa perspectiva da prática processual.


2. A corrupção renitente e o discurso de resistência

Já se disse, como muita razão, que em terra brasilis a corrupção tem ao menos quinhentos anos.[2] A fim de impedir e reprimir tal prática, o Ministério da Justiça enviou à Presidência da República o anteprojeto que se transformou na Lei 8.429/92. Na Mensagem 406/91, consta da exposição de motivos o que segue:

“Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazela que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado – o devido processo legal – impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito.” 

De fato, a Lei de Improbidade é um poderoso instrumento legal para tutelar o princípio constitucional da moralidade administrativa, sobretudo porque é notória a dificuldade da efetivação da intervenção penal nos crimes de colarinho branco, o que não é exclusividade brasileira.[3]

Sintomático, então, que nos últimos anos, após o incremento da eficácia social da Constituição e da Lei, seja nítido e crescente o movimento para limitar o alcance e restringir a aplicação da tutela constitucional da probidade, num discurso de resistência que se nota comum na esfera penal.[4]

Nessa linha, é que se apresentam argumentos em favor da criação de foro privilegiado para uma ação nitidamente civil, consagrada na alteração do artigo 84 do CPP, felizmente julgada inconstitucional pelo STF na ADIn 2.797; da recorrente acusação contra os tipos infracionais abertos da Lei de Improbidade, sendo certo que só há vedação para tanto em matéria penal; da confusão entre improbidade administrativa e crime de responsabilidade, infelizmente reconhecida pelo STF na Reclamação 2.138/DF para Ministros de Estado, ainda que por escassa margem de votos (6 x 5)[5]; da decisão da Corte Especial do STJ defendendo que o foro privilegiado também deve ser aplicado à ação de improbidade quando houver possibilidade de perda do cargo pela autoridade, conforme noticia o AgRg no Ag 1404254/RJ, o que foi negado, porém, pelo STF no Pet 3.923[6]; da prescrição da pretensão de ressarcimento, contra texto expresso da Constituição Federal (art. 37, § 5º); e da exigência de verdadeiro dolo específico, presente em alguns julgados do STJ[7].

Também fruto do discurso de resistência é a alteração do processamento da ação de improbidade por meio da Medida Provisória 2.225-45/2001, criando uma etapa anterior à decisão inicial sobre a viabilidade da pretensão. A novidade legislativa, após 12 anos, ainda causa forte instabilidade na prática processual das ações de improbidade, ante a discussão da natureza jurídica da notificação para a defesa prévia, ainda pendente de solução jurisprudencial segura no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

Tal insegura jurídica resulta em prejuízo significativo à celeridade e à duração razoável do processo, pois é recomendável a cautela judicial na tramitação da ação, a fim de evitar que a ausência de mera formalidade, pois a intimação pessoal para a resposta preliminar a rigor supre nova citação pessoal para a fase de contestação ou, ao revés, a citação pessoal torna preclusa a necessidade de notificação prévia, porque atingida a finalidade da ciência pessoal da parte ré, suscite debates intermináveis e procrastinatórios acerca da nulidade processual, aferindo-se prejuízo caso a caso.


3. A autonomia constitucional da improbidade e o regramento da Lei 8.429/92

Sucede que, nos termos da Constituição Federal, há inegável autonomia da improbidade administrativa, que não se confunde com a gravosa responsabilização penal, última ratio do ordenamento jurídico e sujeita à ação própria, como expressamente estabelece o artigo 37, § 4º:

Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Assim é que a Lei 8.429/92 fixa no artigo 12 sanções por ato de improbidade, independentemente da esfera penal, civil e mesmo administrativa, regulada em legislação específica, a significar, por exemplo, que a Administração Pública pode demitir o agente público em processo administrativo próprio; que o agente público pode responder em ação regressiva; que se permite a ação penal se o ato ímprobo for penalmente típico; ou que não há vedação ao ajuizamento de ação civil pública ou ação popular para a anulação do ato administrativo.

Além disso, a LIA, igualmente em conformidade com a Constituição Federal, disciplina as penalidades de acordo com a gravidade do fato, estatuindo pena máxima para a suspensão de direitos políticos, para a multa civil e para a proibição de contratar. Nesse contexto, o legislador observou também o princípio da proporcionalidade, no duplo aspecto.

Deveras, originário do Direito Administrativo, o princípio da proporcionalidade foi utilizado inicialmente como diretriz para controle de atos administrativos arbitrários no exercício do poder de polícia, vinculando-se, nessa oportunidade, à proibição de excesso (Übermasverbot). No pós-guerra, passou, então, a adquirir status constitucional na Alemanha e em outros países.[8]

Na Constituição de 88, não há previsão expressa do princípio da proporcionalidade, o que, porém, não tem impedido de ser invocado pela doutrina e jurisprudência,[9] com a recorrente divisão em três subprincípios: a adequação ou conformidade, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Assim, a adequação indica a aptidão do meio escolhido para alcançar o fim; a necessidade traduz a exigência de escolha do meio eficaz com menor restrição; e a proporcionalidade em sentido estrito impõe a ponderação entre os benefícios alcançados com a medida e os danos causados. Sem embargo, o princípio da proporcionalidade não se limita a uma perspectiva negativa e defensiva, apenas de limitação do agir do Poder Público própria de um Estado liberal, pois ele tem também natureza positiva.[10]

De fato, no âmbito de uma Constituição dirigente, a omissão ainda que parcial do Estado quando se impõe o dever constitucional de proteção adequada e eficaz também é proibida (Untermassverbot).[11] Desse modo, a vedação de tutela insuficiente conduz diretamente ao princípio da proporcionalidade em sentido positivo, impedindo, assim, que a não atuação do Estado esvazie o dever constitucional de probidade.

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Nessa perspectiva, ainda que não houvesse o artigo 37º, § 4º, a Lei 9.429/92 teria fundamento na imposição de máxima eficácia ao princípio republicano e aos princípios da administração pública, objeto, aliás, de proteção expressa no artigo 11 da LIA.

Também por isso cabível a responsabilização por ato ímprobo a título de culpa em sentido estrito, pois, diferentemente do direito penal (art. 18, parágrafo único, CP), ocorrendo dano ao patrimônio público em tema de improbidade administrativa, há norma genérica impondo a responsabilização por ação ou omissão dolosa ou culposa (art. 5º, LIA), além do regramento específico do artigo 10 da LIA. Tal previsão legislativa, a propósito, está em conformidade com o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, que disciplina o direito de regresso contra o agente público que causa dano a terceiros por dolo ou culpa.


4. Conclusão

Infelizmente a corrupção é uma realidade brasileira já histórica. A fim de promover a mudança desse status quo, inclusive pela inegável dificuldade de punição do crime de colarinho branco, a Constituição Dirigente de 88 impôs o regime republicano e os princípios da administração da pública estabelecendo a tutela da probidade administrativa de modo autônomo, como disciplinado na Lei 8.429/92.

A eficácia social da proteção jurídica da probidade fez surgir, porém, um discurso de resistência originário do direito penal, invocado como fundamento para alterações legislativas e para interpretações limitadoras do alcance e da aplicação dessa tutela, provocando inclusive insegurança jurídica e atraso na tramitação das ações de improbidade.

O presente texto demonstra que a linha de entendimento é constitucionalmente inadequada, pois a tutela jurídica da probidade administrativa tem amparo na Constituição Federal, sendo certo que concretização levada a efeito pela Lei 8.429/92, ao estabelecer sanções de forma proporcional e independente da esfera civil, penal e administrativa específica, inclusive com responsabilização a título de culpa, apenas densifica princípios constitucionais.


Bibliografia

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1995.

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao Rei D. Manuel. 3. ed. Rio da Janeiro: Ediouro, 2000.

DOBROWLSKI, Samantha Chantal (Coord).  Questões práticas sobre improbidade administrativa. Brasília: ESMPU, 2011.

HABIB, Sérgio. Brasil: Quinhentos Anos de Corrupção. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994.

MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001.

SALGADO, Daniel. A elite do crime: discurso de resistência e laxismo penal. Custos legis: revista eletrônica do Ministério Público Federal.  Disponível em <http://www.prrj.mpf.gov.br/custoslegis/revista/2012_Penal_Processo_Penal_Salgado_Elite_do_Crime.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2013.

SANTOS, Cláudia Maria Cruz Santos. O crime de colarinho branco: Da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal.

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=53>. Acesso em: 05 mar. 2013.

SCHOLER, Heinrich. O princípio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo na Alemanha. Interesse Público, Belo Horizonte, vol. 2, 1999, pp 93-107.

STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (übermasverbot) à proibição de proteção deficiente (untermasverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais constitucionais. Disponível em <http://www.leniostreck.com.br/site/wp-content/uploads/2011/08/Vers%C3%A3o-final-da-Untermassverbot-08-07-art-33-1.pdf > Acesso em: 01 mar 2013.


Notas

[1] CANOTILHO, pp 75/77.

[2] HABIB, 1994.

[3] SANTOS, 2001.

[4] SALGADO, 2013.

[5] A recente Lei 12.813/13, contudo, ao tratar de conflito de interesses no âmbito do Poder Executivo federal expressamente submete os Ministros de Estado às sanções da Lei de Improbidade. Antes, porém, a EC 62/2009 alterou o ADCT para expressamente sujeitar o chefe do Poder Executivo à mesma lei (art. 97, § 10, III).

[6] DOBROWLSKI, 2011, pp 129/133.

[7] Op. cit., pp 163/165.

[8] SCHOLLER, 1999.

[9] BARROS, 2000.

[10] STRECK, 2013.

[11] SARLET, 2012.

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Sobre o autor
Gilton Batista Brito

Ex-Defensor Público Estadual, Ex-Advogado da União, Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Gilton Batista. Corrupção, discurso de resistência e tutela jurídica da probidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3718, 5 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25226. Acesso em: 22 dez. 2024.

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