Uma notícia[1] publicada em 19 de outubro informa que a República Dominicana foi convidada pela Anistia Internacional para rejeitar uma decisão proferida por sua Corte Constitucional que afetaria a nacionalidade dos dominicanos de ascendência estrangeira.
A TC 0168/13 foi interposta por JULIANA DEGUIS PIERRE perante a Suprema Corte Constitucional dominicana, tendo em vista ter sido negada a emissão de sua cédula de identidade e de seu título eleitoral, solicitada junto ao Município de Yamasá, de onde é natural. A fundamentação para a negação do pedido da tutelante foi de que seus pais eram haitianos.
Na pretensão alegou-se, em síntese:
1. A situação de indeterminação que se encontra, não só perante a Junta Eleitoral, como também perante o Estado onde seus direitos devem ser tutelados;
2. Que para a sua emissão, todos os documentos exigidos foram apresentados;
3. A falta de tutela dos direitos fundamentais consagradas na Constituição, nos Tratados Internacionais, no Código Civil dentre outros.
4. Que os direitos violados são inerente a sua pessoa;
5. Que a acionante continua sem amparo frente a Junta Eleitoral, e que as violações dos direitos fundamentais se tem extendido e aprofundado.
A Corte, de forma sucinta, assentou sua decisão na afirmação de que a competência para a regulação do regime de nacionalidade é do direito interno. Na República Dominicana, existe uma grande quantidade de estrangeiros que aspiram obter a nacionalidade, a maior parte são imigrantes ilegais de natureza haitiana. Alcança-se, assim, um total de 524.632 de imigrantes, o que totaliza 5,4% da população nacional, de acordo com uma pesquisa realizada pela a Oficina Nacional de Estatísticas, no ano de 2012.
De maneira geral, a nacionalidade é considerada um laço jurídico que une uma pessoa ao Estado; mas, de uma maneira mais técnica e precisa, não é só um vínculo jurídico, mas também sociológico e político, cujas condições são definidas e estabelecidas pelo próprio Estado. Trata-se de um vínculo jurídico, porque dele se despreendem múltiplos direitos e obrigações de natureza civil; sociológico, porque faz parte da existência de um traço histórico, linguístico, racial e geopolíticos, entre outros, que conformam e sustentam uma idiosincracia particular e aspirações coletivas; e político, porque essencialmente permite acesso aos direitos inerentes da cidadania, ou seja, a possibilidade de eleger e ser eleito para exercer cargos públicos no governo do Estado.
As determinações e regulamentações sobre questões migratórias pertencem ao Congresso Nacional. Informa, ainda, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sustentado que as condições e procedimentos para a aquisição de nacionalidade são predominantemente do direito interno de cada Estado, confirmado também pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
De igual maneira, ambos os países acordaram em convênio internacional denominado “Modus Operandi de la República Dominicana con la República de Haiti”, para regular as questões migratórias entre os Estados, onde se lê expressamente, em seu artigo 4º, “las interpretaciones de la expresión inmigrante serán determinadas exclusivamente por cada Estado y de conformidad con sus leyes, decretos y reglamentos”.
A Corte Constitucional estima que a tutelante não cumpre as condições para a expedição em seu favor da cédula de identidade e eleitoral, uma vez que a Certidão de Nascimento está sob investigação - tendo sido ilícita e irregularmente inscrita no Cartório de de Registro Civil, por ser filha de imigrantes ilegais; ademais, porque também não satisfaz as condições previstas na Carta para a aquisição de nacionalidade.
Acontece que sendo os pais imigrantes ilegais sem identificação, não poderiam realizar o respectivo registro. A lei prevê a obrigatoriedade da apresentação de identidade nos casos de registro civil.
Esta formalidade foi implementada, também, para respeitar os trabalhadores haitianos que encontram-se no país, com o propósito de garantir uma imigração regulamentada e possibilitar que os direitos trabalhistas sejam reconhecidos e implementados.
Eis a aquisição de nacionalidade pelo critério ius solis, conforme a Constituição Federal dominicana:
Artículo 18. - Nacionalidad
3) Las personas nacidas en territorio nacional, con excepción de los hijos e hijas de extranjeros miembros de legaciones diplomáticas y consulares, de extranjeros que se hallen en tránsito o residan ilegalmente en territorio dominicano. Se considera persona en tránsito a toda extranjera o extranjero definido como tal en las leyes dominicanas;
A Corte não considerou a situação de Juliana “apátrida”, já que existe a possibilidade de adquirir a nacionalidade haitiana. A Constituição Haitiana, de 1983, estipula expressamente que obterão nacionalidade haitiana originária todos aqueles indivíduos nascidos no estrangeiro de pai e mãe haitianaos, nos seguintes termos: “son haitianos de origen (...) 2.- Todo individuo nacido en el extranjero de padre o madre haitianos”.
A Corte Constitucional dominicana negou o direito de reconhecimento a nacionalidade a Juliana, mesmo tendo confirmado seu nascimento em território nacional e filha de cidadãos estrangeiros em trânsito.
Cabe relembrar que os dois países dividem os cerca de 76.000 km² da Ilha de São Domingos, também conhecida como Hispaniola: a República Dominicana, a segunda maior economia caribenha, a leste, ocupando cerca de dois terços da ilha; e o Haiti, ocupando o terço ocidental – o país mais pobre das Américas.
Separados por uma fronteira que divide a ilha do litoral norte ao litoral sul, numa extensão de 360 km, os dois países possuem, histórica e culturalmente, uma rivalidade secular. A situação pela qual o Haiti tem passado, na última década, vivendo um processo de estabilização, com a presença de tropas internacionais, agravada por catástrofes naturais, índice elevado de contaminação por cólera, desemprego e dificuldades econômicas, só aumenta as tensões com a República Dominicana.
Caso a decisão seja implementada, as identidades destes indivíduos serão cancelados, confinando-os ao Estado, pois não poderão viajar, além de terem cancelados os recursos e serviços do governo. A decisão afetará principalmente os cidadãos de origem haitiana, de acordo com a Anistia Internacional, além disso resultaria em inúmeros abusos dos direitos humanos às pessoas que serão deixadas sem nacionalidade.
Até recentemente, de acordo com o grupo “Open Society Foundations” todos os nascidos em território dominicano, exceto os filhos de diplomatas e os filhos de pais que estavam “em trânsito”, tinham o direito de nacionalidade dominicana . Os pais seriam considerados "em trânsito" se permanecessem no país por um período de 10 dias ou menos.
Sob esta política de cidadania, muitos, embora não todos, nascidos na República Dominicana e filhos de imigrantes haitianos, foram oficialmente reconhecidos como nacionais dominicanos.
Isso tudo mudou em agosto de 2004, quando uma nova Lei federal de migração foi promulgada. De acordo com essa lei, as pessoas classificadas como "não-residentes" agora seriam considerados "em trânsito" e, portanto, excluídas da garantia de nacionalidade pela Constituição.
A partir de 2004 , as crianças de "não-residentes " já não tinham o direito automático à nacionalidade dominicana, mesmo nascendo e possuindo sua residência habitual na República Dominicana. Em vez disso, elas devem esforçar-se para se tornarem cidadãos do Haiti, um país com o qual poucos delas têm qualquer ligação afetiva.
Para piorar a situação, o governo dominicano aplicou retroativamente a lei de imigração de 2004, tirando a nacionalidade de milhares de dominicanos de ascendência haitiana. Funcionários do governo argumentam que os milhares de pessoas nessa condição, que até agora têm desfrutado de nacionalidade dominicana, nunca deveriam ter sido reconhecidos como cidadãos: porque seus pais eram todos "não-residentes" no momento do seu nascimento. Tal aplicação retroativa de uma lei contraria tanto o direito internacional e as próprias normas legais da República Dominicana .
A mudança, ocorrida em janeiro 2010 com a nova Constituição Nacional, solidificou a primeira exceção com relação a nacionalidade de “não-residentes”, introduzida na lei de imigração de 2004.
Atuais políticas de nacionalidade da República Dominicana discriminam dominicanos de ascendência haitiana, e, portanto, entram em conflito com suas obrigações de assegurar igual proteção dos direitos humanos perante a lei na concessão da nacionalidade e para prevenir, evitar e reduzir a condição de apátrida.
O grupo “Open Society Foundations”, por meio de suas representantes Indira Goes e Liliana Gamboa, tem denunciado que o gozo ao direito à nacionalidade tornou-se quase impossível para os dominicanos de ascendência haitiana. Desde 2004, esta população vulnerável enfrentou uma avalanche de mudanças legislativas hostis e políticas administrativas eficazes, o que os privou de sua nacionalidade dominicana, tornando-os excluídos permanentemente da vida econômica, social e cultural do país.
A iniciativa deste grupo trabalha para atingir os seguintes objetivos: combater a negação da emissão dos documentos – civil e eleitoral e privação da nacionalidade no âmbito de prover a sensibilização nacional e internacional de discriminação no acesso à nacionalidade na República Dominicana; envolver-se nos desafios que envolvem as questões legais a discriminação no acesso à nacionalidade, perante os tribunais nacionais, regionais e internacionais; investir no corpo político do governo da República Dominicana no combate as suas políticas discriminatórias de nacionalidade e forçá -los a efetuar a mudança a partir do Poder Executivo para alcançar o Registro Civil.
Um dos desafios propostos por Canotilho[2] ao apresentar o “constitucionalismo moralmente reflexivo”, que consiste na substituição de um modelo autoritariamente dirigente, através de outras maneiras que permitam conjugar o projeto da modernidade, onde ele não se realizou. O desenho institucional centrado exclusivamente na estatalidade, não vai dar conta de superar os anseios que espera uma sociedade democrática.
Os Estados que se assumem democráticos e pluralistas devem deixar um espaço para a política constitucional, principalmente em matéria de direitos fundamentais.
Apesar da Corte Constitucional ter negado o direito à nacionalidade, adotou uma postura dialógica que em tempos de constitucionalismo transformador, pretendeu determinar ao Poder Executivo a proceder e implementar um plano nacional de regulação de estrangeiros ilegais radicados no país.
As Constituições formam o corpo político do Estado, é há uma necessidade urgente de se abordar o papel constitucional da política democrática, a fim, de ver, por exemplo, como não é a separação dos poderes, mas a alternância entre eles, que fortalece a melhor defesa dos nossos direitos, e de fato, o que é um direito fundamental dos cidadãos de serem tratados como iguais, com abertura de suas reivindicações no quadro democrático, a fim de poder controlar a constituição permanente e suas políticas[3].
Não se pode entender a dimensão de direitos dissociada da dimensão institucional. A separação dos poderes envolve não só presidentes e parlamentos, mas também a posição constitucional de tribunais e das agências administrativas[4]. Os direitos se realizam pelo braço institucional do funcionamento do poder e caso não haja esta conexão pode gerar um artificialismo na questão do que seja o constitucionalismo.
Pode-se dizer, assim, que a cidadania versa sobre o reconhecimento dos direitos dos indivíduos e, desta forma, Kenneth Karst[5] afirma que o princípio da igualdade dos cidadãos “protege o interesse fundamental em ser tratado pela sociedade como uma pessoa, alguém a que pertence.” Sendo assim, caracterizar-se-á que o princípio da igualdade, em um ordenamento constitucional, inicialmente, protege a pessoa constitucional, atribuindo condições e procedimentos para que possa participar efetivamente da organização político-administrativa em que está inserida, denominando-a de cidadão. Tal princípio, ainda, prega que a proteção é uníssona, não perfazendo distinção entre pessoas constitucionais, ou seja, incluídas no Estado politicamente organizado.
Frequentemente, a cidadania e a pessoalidade são consideradas direitos opostos, podendo isso ser vislumbrado nas referências à cidadania nacional e seus direitos conexos, enquanto que a pessoalidade invoca os direitos e a dignidade dos indivíduos, independente do estado nacional ao qual estão inseridos. Nesta linha, pode-se ponderar o pensamento de Alexander Bickel[6] de que a Constituição, exemplificativamente a Norte Americana, não faz expressão a proteção a pessoas e sim a cidadãos.
O pensamento de Alexader Bickel não está em consonância com os preceitos de proteção constitucional e, nesta linha, apresenta-se o argumento de fundamentação da Professora Linda Bosniak[7], que considera a ambiguidade da personalidade, a partir da ideia construída de cidadania, como por exemplo, a ideia clássica da teoria política que diz, conforme expressado por John Locke[8], que a compreensão do significado estaria ligado ao poder político e aos direitos do homem na sociedade civil, entendido, também hoje, como direitos e deveres dos integrantes da sociedade civil.
Locke traz a concepção de que não existe a possibilidade de sustentar a existência de direitos diferenciados para os homens na sociedade civil, os homens não podem ter limitados os seus direitos a vida, liberdades, posses, saúde, felicidade. Assim sendo, pode-se compreender que, analiticamente, os termos cidadania e pessoa constitucional são indicados para ambas as relações existentes entre os membros da comunidade política. No âmbito normativo, a cidadania é compreendida com o universalismo no seio da comunidade, associada, ainda, a compromissos sociais.
Em se tratando de universalidade de direitos e concepções de garantias fundamentais, atribuir somente ao cidadão os direitos constitucionais previstos é legitimar um verdadeiro retrocesso, inclusive à democracia instituída. Tem-se, por certo, que as pessoas inseridas no Estado constitucional são sujeitas de direitos e deveres, estando garantidos os diretos fundamentais aos cidadãos e as pessoas constitucionais.
Os tempos hodiernos permitem fazer uma leitura mais apurada do conceito de cidadania, pois “o direito a ter direitos independe da posse de cidadania”, sendo a mesma assegurada às pessoas sujeitas de direitos humanos.
Notas
[1] Migalhas Internacional. Dominican Republic should not implement court ruling on nationality. Disponível em < http://www.migalhas.com/mostra_noticia.aspx?cod=188697>. Acesso em 21 de out de 2013
[2] CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos e Interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2008, p. 127.
[3] BELLAMY, RICHARD. Constitucionalism and Democracy. Internacional Library of Essays in Law Theory; Second Series, p. 11-68. Disponível em < http://papers.ssrn.com/sol3/ papers.cfm?abstract_ id=1571492>. Acesso em 08 de jun. de 2013.
[4] ACKERMAN, Bruce. A nova separação dos poderes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 6.
[5] KARST, Kenneth. Foreword: equal citizenship under the fourteenth amendment. Harvard Law Review, 1977.
[6] BICKEL, Alexander M. The morality of consent. Yale University Press, 1975.
[7] BOSNIAK, Linda S. Persons and citizens in constitutional thought. Oxford University Press, 2010. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1578394>. Acesso em: 24 de setembro de 2010.
[8] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 1. ed. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 68.