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Processos éticos questionados no Poder Judiciário:

Parte I - Análise das decisões em processos éticos julgados por conselhos de classe das profissões da área da saúde

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Ausência de Correlação entre Denúncia e Decisão

O Princípio do Contraditório assegura ao denunciado a plena defesa sobre aquilo que lhe foi imputado. Neste senso, os Conselheiros não podem julgar além dos fatos que constam na denúncia. A base para esta inferência é o artigo 5º da Constituição Federal 3, que estatui “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O artigo 384 do Código de Processo Penal (11.719/08) 2 apresenta a questão do princípio da correlação entre acusação e sentença, qual sustenta que não se pode condenar o réu sobre fatos não imputados a este.

Quando do julgamento de processos éticos, deve haver estrita correlação entre acusação e a decisão, sob pena de nulidade, pois a conduta supostamente antiética deve estar clara para que o profissional possa defender-se. Sobre isto, a Resolução CFM no 1.897/09 no seu artigo 12 (parágrafo único) determina “a citação deverá indicar os fatos considerados como possíveis infrações ao Código de Ética Médica e sua capitulação.” (Quadro 17).

Quadro 17 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina.

ADMINISTRATIVO - CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA - INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO ÉTICO-PROFISSIONAL - DENÚNCIA QUE NÃO DESCREVE O FATO TÍPICO E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS, NEM CLASSIFICA AS INFRAÇÕES - INÉPCIA - NULIDADE EXISTENTE - FALTA DE JUSTA CAUSA - TRANCAMENTO, DESDE LOGO PELO JUDICIÁRIO - LEGITIMIDADE. 1 - Nulo o processo administrativo de natureza ético-profissional, instaurado com espeque em denúncia inepta por falta de descrição de fato típico e de suas circunstâncias e classificação da infração. 2 - Não obstante vedado ao Judiciário impedir instauração de processo administrativo para apuração de infrações disciplinares, é-lhe lícito trancá-lo, desde logo, quando não houver justa causa que a justifique, impedindo, assim, que o indiciado seja submetido, desnecessariamente, a constrangimento ilegal. 3 - Remessa Oficial denegada. 4 - Sentença confirmada. 5 - Segurança concedida.[15]

A doutrina é contundente ao explicar o que o Princípio da Correlação, também chamado da congruência da condenação com a imputação, relaciona-se ao princípio da inércia da jurisdição e, no processo penal, constitui efetiva garantia do réu, dando-lhe certeza de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de se defender da acusação. 13

Deste modo, a decisão judicial não pode proceder de ofício e condenar o réu a penas não postuladas pelo dominus litis que é o Ministério Público, sob pena de negar vigência ao sistema acusatório. Pelo Princípio Acusatório não pode o julgador instar a acusação para que adite novos fatos não descritos na denúncia, senão admitiríamos que o Juiz possa ocupar duas posições conflitantes: a de acusador e de juiz ao mesmo tempo. Assim procedendo, o órgão julgador quebra com a imparcialidade que proibiria uma pessoa ser acusada de crime que não lhe foi imputado pelo órgão acusador. Neste sentido o Supremo Tribunal Federal decidiu “Procedência do fundamento de cerceamento da defesa em face da falta de correlação entre a denúncia e a sentença, uma vez que nesta se levou em consideração qualificadora que não foi descrita naquela, sem que fosse observado, se ocorrente a hipótese prevista no artigo 384 do CPP, o disposto nesse preceito legal.” (STF, 1ª Turma, HC Julgado em 6/2/1996, rel. Moreira Alves, RT 732/551).

Destarte não pode o réu ser condenado por resultado típico que não lhe foi imputado na denúncia, o que importa em violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença penal, consectário lógico de outros relevantes princípios processuais como contraditório, ampla defesa, inércia da jurisdição, todos muito caros ao salutar Sistema Acusatório 8.


Ausência da Motivação da Decisão

Motivar uma decisão administrativa significa fundamentá-la, mencionar o dispositivo legal aplicável ao caso concreto, relacionar os fatos que concretamente levaram à aplicação daquele dispositivo legal. A motivação dos atos administrativos ainda é tema que suscita divergência na doutrina brasileira. Enquanto parte dos autores afirma que sempre há dever de motivar o ato administrativo, independentemente da exigência; outros defendem que tal dever somente subsiste nos casos em que a lei expressamente a exigir 10, 11.

O mais contundente argumento da corrente que sustenta o dever de motivar está no artigo 5º, XXXV, garantidor do direito à apreciação judicial, segundo qual tal direito somente poderá ser exercido em face da motivação, caso contrário não haverá possibilidade de análise da validade do ato administrativo sem o conhecimento acerca das razões de fato e de direito que levaram à sua prática 10, 11.

Neste sentido, nas decisões proferidas, a autarquia de fiscalização deverá motivar seus atos para que haja condição de se verificar se o órgão agiu de acordo com a lei. Assim, o ato de imposição de penalidade sempre deverá mencionar o fundamento legal, os dispositivos em que o Conselheiro baseou sua decisão e a razão da aplicação da sanção disciplinar ou deixar de aplicá-la (Quadros 18 e 19).

Quadro 18 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina.

“CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. PROCESSO ÉTICO-DISCIPLINAR. MOTIVAÇÃO. ARTIGO 5º, LV, DA CONSTITUIÇÃO. LEI 9.784/99, ARTIGO 50. REQUISITO ESSENCIAL. NULIDADE DO ATO. 1. A fim de dar efetividade ao artigo 5º, LV, da Constituição, que assegura aos litigantes o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, o artigo 50 da Lei 9.784/99 determina que os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando, dentre outras hipóteses, discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais. 2. É nulo o ato do pleno do Conselho Regional de Medicina de Goiás que aprovou a instauração de processo ético-profissional sem apresentar a devida fundamentação, tendo em vista a existência de parecer favorável ao profissional no minucioso Relatório de Sindicância realizado pelo próprio Conselho. 3. Apelação a que se dá provimento e remessa oficial a que se nega provimento.” [16]

Quadro 19 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina.

“ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ÉTICO-PROFISSIONAL. CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS SOBRE A REPUTAÇÃO PROFISSIONAL DO INDICIADO. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO. 1. Ainda que se abstraia a duvidosa constitucionalidade da tipificação de infrações ético-profissionais por mera resolução do Conselho Federal de Medicina (Código de Ética Médica), remanesce a necessidade de que seja indicado, na respectiva decisão, o fato motivador da instauração de processo ético-profissional. 2. Trata-se de ato administrativo (não de ato político), sendo imprópria para a sua prática a forma de votação sigilosa, logo imotivada (do tipo sim ou não), dos Conselheiros. 3. Aplica-se à espécie o disposto no artigo 50, I, da Lei n. 9.784/99.” [17]

Embora a Constituição Federal 3 não preveja expressamente o Princípio da Motivação, o mesmo está implícito em outros princípios e se reveste de importância imperativa, pois é considerado um dos mais importantes, uma vez que sem a motivação não há o devido processo legal, pois a fundamentação surge como meio interpretativo da decisão que levou à prática do ato impugnado, sendo verdadeiro meio de viabilização do controle da legalidade dos atos da administração.

No caso de condenação ética de um profissional, deve haver correlação entre os motivos da condenação e penalidade aplicada, para que o processado tenha ciência das razões que levaram à sua condenação. A ausência de motivação fomenta a nulidade do ato administrativo porque não oportuniza a ampla defesa e o contraditório e a conveniência de invocar as razões do julgador em grau de recurso, ocasião em que tal ato estará sujeito ao controle pelo Poder Judiciário.


Desrespeito ao Princípio da Presunção de Inocência

O Princípio da Presunção de Inocência é uma consequência direta do Princípio do Devido Processo Legal. Tem sua origem no artigo 9o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, qual sustenta que toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarado culpado; preceito reiterado pelo artigo 1o da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas 6, 18. Devido ao questionamento de muitos juristas de que este princípio não permitiria qualquer medida coativa contra o acusado até o deferimento da sentença, surgiu a sugestão de considerá-lo como Princípio da Não-culpabilidade, no qual a Constituição Federal 3 (artigo 5o) declara que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” 18. Neste sentido, o acusado chega ao processo isento de culpa e somente pela sentença poderá ser declarado culpado.

O processo disciplinar é o meio pelo qual a administração apura e pune os servidores públicos e demais pessoas sujeitas ao seu regime funcional. Toma por base a supremacia do Estado sobre todos aqueles que se vinculam a seus serviços ou atividades. Na condição de um processo punitivo, para a aplicação da sanção é necessário a instauração do processo disciplinar o qual deve observar o princípio constitucional da presunção de inocência, que autoriza a absolvição do acusado quando não houver provas seguras ou de elementos que possam demonstrar violação ao regulamento disciplinar 9.

Quadro 20 – Decisão julgada em desfavor de Conselho de Fiscalização Profissional.

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL - PROCESSO ÉTICO-DISCIPLINAR PENDENTE DE JULGAMENTO - RESTRIÇÃO AO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO - PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - AFRONTA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS - PROVA INEQUÍVOCA EXISTENTE - LIMINAR DEFERIDA. a) Agravo de Instrumento em Ação Ordinária. b) Decisão de origem - Indeferida liminar para suspensão de restrição ao exercício da profissão, enquanto pendente de julgamento Processo Ético-Disciplinar. 1 - "Em nosso ordenamento jurídico prevalece o princípio da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal que o tenha condenado (artigo 5º, inciso LVII, da CF/88), aqui entendido como presunção de idoneidade, que, para ser afastada, exige elementos mínimos a motivar o início de procedimento administrativo próprio visando ilidir tal presunção." (REsp nº 1.074.302/SC - Relator Ministro Benedito Gonçalves - STJ - Primeira Turma - Unânime - DJe 03/8/2010.) 2 - Sendo a controvérsia de longa duração, ficando o Agravante exposto, ainda que venha a obter êxito na discussão judicial sobre a ilegitimidade dos atos, já reconhecida em segunda instância administrativa, aos efeitos da CASSAÇÃO do seu REGISTRO PROFISSIONAL, a demora na solução da demanda poderá causar-lhe danos irreparáveis, facilmente presumíveis, a exemplo do seu próprio sustento e da sua família, em especial após vinte anos de dedicação à atividade de Técnico em Radiologia. 3 - Reconhecida em segunda instância administrativa a afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa, alegada pelo Agravante, merece acolhida a sua pretensão. 4 - Indiscutível na espécie a ocorrência de "VÍCIOS E FALHAS DOS PROCEDIMENTOS", alegada pelo Agravante para justificar o seu pedido de liminar. (Fls. 07.) (Original grifado e destacado.) 5 - Agravo de Instrumento provido. 6 - Decisão reformada. 7 - Liminar deferida. Processo nº. AG 200901000298728 (Agravo de Instrumento). e-DJF1. Data: 3/06/2011.  Página:321. Publicação: 03/06/2011. Juiz Fed. Antônio C. M. Silva. Sétima Turma.

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As principais consequências da aplicação do Princípio da Presunção de Inocência no processo administrativo disciplinar são: a de atribuir inexoravelmente a obrigação de colheita da prova pela comissão processante, o que significa dizer que o acusado não precisa provar que é inocente e sim a comissão que tem que provar que o servidor é culpado; na dúvida a interpretação será sempre em favor do acusado. Somente decisão irrecorrível pode declarar a culpabilidade do acusado, depois de provada durante a instrução processual, e só assim poderá ser tratado como culpado9, sob a previsível anulação do julgado pela falta de evidência do fato.


Ausência de Correlação da Pena Aplicada e sua Gradação

O Princípio da Proporcionalidade insere-se na estrutura normativa da Constituição, junto aos demais princípios gerais norteadores da interpretação das regras constitucionais e infra-constitucionais. Sua função é complementar ao Princípio da Reserva Legal (artigo 5o, II), devido ao fato de que a ação do Poder Público deve ser conforme a lei formal, e que esta deve ter como parâmetro a proporcionalidade.

Ao garantir que todos os cidadãos devem ser tratados de modo equitativo, a CF pressupõe que além da igualdade formal, o tratamento diferenciado deve buscar adequar a lei às necessidades e peculiaridades de cada indivíduo. O Princípio da Proporcionalidade tem, portanto, papel indispensável na consecução da concepção de Estado Democrático de Direito  20.

O Código Penal, Capítulo III (Da Aplicação da Pena) no artigo 59 determina que “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” 20.

Quadro 21 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina.

ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. PROCESSO ÉTICO-PROFISSIONAL. INOCORRÊNCIA DE IRREGULARIDADES. ANULAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. NULIDADE DA PUNIÇÃO APLICADA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO QUANTO À INOBSERVÂNCIA DA GRADAÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 22, § 1º, DA LEI N. 3.268/1957. NULIDADE DA SENTENÇA. INOCORRÊNCIA. 1. Não é nula a sentença que, deixando de acolher o pedido de anulação do processo, anula, todavia, a sanção imposta, por falta de fundamentação. 2. Inocorrentes as apontadas irregularidades no curso do Processo Ético-Profissional a que foi submetida a apelante, improcedente se afigura o pedido de anulação de todo o procedimento. 3. Nulidade, porém, da sanção aplicada, por falta de fundamentação quanto à inobservância da gradação prevista no artigo 22, § 1º, da Lei n. 3.268/1957, ressalvada a possibilidade de nova deliberação sobre a penalidade aplicável, observada a gradação referida. 4. Segurança concedida, em parte. 5. Sentença confirmada. 6. Apelação e remessa oficial desprovidas.[18]

A aplicação da penalidade em processos ético-disciplinares deve ser graduada conforme previsão legal, inclusive no que diz respeito à reincidência.

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Sobre os autores
Giorgia Bach

Advogada. Especialista em Processo Civil. Atuação em processos da área da saúde. contato: [email protected]

Alcion Alves Silva

- Doutor em Odontologia - Coordenador do Grupo Prática Clínica de pesquisa e direito biomédico - Autor da obra Prática Clínica Baseada em Evidências - Diretor Adjunto da QPS Empreendedorismo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALACARNE, Giorgia Bach ; SILVA, Alcion Alves. Processos éticos questionados no Poder Judiciário:: Parte I - Análise das decisões em processos éticos julgados por conselhos de classe das profissões da área da saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3778, 4 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25659. Acesso em: 19 mai. 2024.

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