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A argüição de descumprimento de preceito fundamental e a manipulação dos efeitos de sua decisão

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3. Efeitos da decisão proferida na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

A decisão na argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ter, segundo a nova previsão legal, efeitos erga omnes, efeito vinculante, efeito ex tunc ou ex nunc, e efeito repristinatório. Abordaremos cada um deles, discorrendo acerca da conformidade com as normas constitucionais.

A Lei n. 9.882/99, em seu artigo 10, parágrafo 3º, prevê a eficácia contra todos e o efeito vinculante da decisão prolatada na argüição[76].

Mas poderia o legislador validamente prever o efeito vinculante da decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental[77] sem violação ao Texto Supremo ?

Sem embargo de respeitáveis opiniões em sentido contrário, há irremissível inconstitucionalidade por violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural, das normas que prevêem a possibilidade de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos incidentalmente, e do princípio da separação de poderes.

Maria Helena Diniz leciona que no Brasil "o juiz não tem o poder de legislar"[78], assim o Supremo Tribunal Federal ao proferir decisões vinculantes estará "usurpando funções do Poder Legislativo e retirando dos juízes a liberdade de apreciação do caso sub judice e o uso do livre-convencimento. Os magistrados perderiam a independência para decidir, tão necessária para garantir os direitos dos jurisdicionados, como diz Rui Barbosa, pois passariam a cumprir normas ditadas pelos Tribunais Superiores", e conclui que admitir o efeito vinculante significa "comprometer os princípios da independência dos três poderes, do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da ampla defesa etc."[79]

Há violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional[80] porque "embora o particular possa dirigir ao Judiciário pretensão de reparação de ofensa a direito seu, na prática isto não ocorre, porque o Judiciário só pode aplicar ao caso concreto o que restou decidido pelo STF" [81]. A possibilidade de adoção da tese suscitada pelo particular é nenhuma, já que há o efeito vinculante da decisão do Pretório Excelso, restando abolida por via oblíqua ou indireta o próprio direito de ação.

O princípio do juiz natural[82] foi violado, eis que foi subtraída da competência dos juízes e Tribunais o exercício do controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos, cuja compatibilidade já foi apreciada pelo Pretório Excelso em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Mister se faz ressaltar que há violação ao princípio do juiz natural, pois a própria Constituição prevê a competência dos julgadores exercerem o controle difuso de constitucionalidade, sem qualquer restrição feita pelo poder constituinte originário.

A independência dos magistrados restou violada com a previsão do efeito vinculante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Todos os juízes e Tribunais estarão compelidos, em face do citado efeito, "a emprestar, com automaticidade imprópria ao ofício judicante, ou seja, sem a realização de um julgamento livre e, portanto, norteado pela prova dos autos e convencimento formado, solução idêntica às lides"[83].

Apresentam-se como inconstitucionais os citados dispositivos legais, por violação à independência judicial, que encontra previsão implícita na Constituição Federal.

As previsões legais acima citadas são incompatíveis com os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, que estabelecem o poder de qualquer juiz ou tribunal de deixar de aplicar a lei inconstitucional. Declarada a inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, não há possibilidade de apreciação quanto a constitucionalidade ou não de determinada lei ou ato normativo. Em síntese, o efeito vinculante no controle concentrado praticamente elimina a potencialidade de controle difuso de constitucionalidade da norma apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, caracterizando-se como manifestamente inconstitucional[84].

Somente o poder constituinte originário é que poderia prever o efeito vinculante no controle concentrado, já que há incompatibilidade com as cláusulas pétreas, inclusive com a garantia do controle concentrado de constitucionalidade, verdadeira garantia individual.

A separação de poderes, como é cediço, constitui cláusula pétrea[85], fazendo parte do núcleo imodificável, intangível da Constituição Federal. A finalidade da previsão da separação de poderes foi evitar o arbítrio e garantir a liberdade do cidadão[86], com a previsão da reciprocidade de controle, exercitado inclusive pelos juízes e Tribunais.

Não se pode admitir que as decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em ação direta, ação declaratória e na argüição de descumprimento de preceito fundamental, vinculem todos os poderes e órgãos públicos, nos termos da legislação vigente. Impende lembrar que tais decisões são irrecorríveis e não são passíveis de ação rescisória, são eternas. Característica que nem a lei possui.

A previsão legal do efeito vinculante viola o princípio da separação de poderes, já que impossibilita qualquer controle, mesmo o interno, pelo próprio Tribunal Constitucional[87] que não terá possibilidade de rever seu entendimento já externado em qualquer das ações acima citadas. Ademais, nem o legislativo, nem o executivo poderão editar, no futuro, lei ou ato normativo com fundamentos ou motivos determinantes idênticos ou semelhantes ao ato que foi anteriormente declarado inconstitucional em sede de controle concentrado de constitucionalidade, afigurando-se tal restrição como inconstitucional por violação ao princípio da separação de poderes, já que tal limitação somente poderia ser imposta pelo poder constituinte originário. Tampouco os juízes ou Tribunais poderão decidir contrariamente ao que foi decidido pelo Pretório Excelso nas ações acima.

Entendemos que as previsões legais em estudo são manifestamente inconstitucionais. Sem embargo de respeitáveis opiniões, de juristas de escol, em sentido contrário.

Gilmar Ferreira Mendes entende que é compatível com a Constituição a previsão legal do efeito vinculante:

"Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais"[88].

O professor Zeno Veloso salienta que as decisões do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, "adquiriram status de fontes do direito"[89]. "A norma cuja inconstitucionalidade foi declarada não pode ser mais aplicada. Nem se pode questionar a validade da que teve reconhecida sua constitucionalidade"[90].

Entendemos que o efeito vinculante restringe demasiadamente a liberdade do operador do direito ao eliminar a possibilidade de interpretação da norma jurídica.

Vale lembrar, por derradeiro, que existem os efeitos repristinatórios na declaração de inconstitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade "torna aplicável a legislação anterior, que havia sido revogada pela norma impugnada.

Os efeitos repristinatórios decorrem automaticamente da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF, independentemente de previsão no acórdão"[91].

3.1 A manipulação dos efeitos da decisão proferida na argüição

A Lei 9.882/99[92], de forma semelhante à Lei 9.868/99, traz novidade em relação aos efeitos do controle de constitucionalidade, ao criar o que se denominou de "manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade"[93], possibilitando que o Supremo Tribunal Federal limite os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

Alexandre de Moraes ressalta que, antes da edição destas leis, Paulo Bonavides já defendia a necessidade de abrandamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle direto, nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão[94].

Zeno Veloso afirma que, há muito, já insinuava que se deveria conferir ao Supremo Tribunal Federal o poder de determinar os efeitos, a extensão de declaração de inconstitucionalidade, inclusive, estatuindo a reentrada em vigor, ou não, da norma que a lei inconstitucional havia revogado[95].

A lei da argüição concedeu permissão para que o Supremo Tribunal Federal manipule os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, "seja em relação a sua amplitude, seja em relação a seus efeitos temporais, desde que presentes dois requisitos"[96]: formal e material[97]. Aquele diz respeito ao quorum de dois terços para a decisão que manipulará os efeitos. Este constitui a presença de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Verifica-se que somente em casos excepcionais, extraordinários, por razões de segurança jurídica ou em caso de excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal, mediante decisão da maioria qualificada, poderá "estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostra inadequada (v.g., lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional"[98].

A regra continua sendo a da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, logicamente, caso se admita a compatibilidade da inovação legislativa com a Constituição Federal.

Na exceção[99], presentes os requisitos materiais e formais acima, admite-se que o Supremo Tribunal Federal limite a amplitude dos efeitos: afastando a nulidade de alguns atos do poder público com fulcro na lei inconstitucional, ou afastando a incidência da decisão que reconhece a inconstitucionalidade em relação a algumas situações (restringindo os efeitos erga omnes), ou eliminando (parcial ou totalmente) os efeitos repristinatórios da decisão [100].

Entendemos que a possibilidade do Pretório Excelso decidir sobre os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade[101] pode ser dividida quanto aos efeitos temporais, em: a) ex nunc, ou seja, não retroativos. Surtindo efeitos a partir do trânsito em julgado; b) porvir, ou seja, futuramente, posteriormente à prolação da decisão de inconstitucionalidade. A qualquer momento futuro, fixado a critério do Supremo Tribunal Federal; e c) retroativamente, em período fixado entre data posterior ao dia que tem início a vigência e anterior à declaração de inconstitucionalidade[102].

A regra geral continua sendo do efeito ex tunc, ou seja, entre a data do início da vigência e a declaração de inconstitucionalidade.

Alexandre de Moraes entende que há uma restrição lógica à fixação do momento inicial para a incidência dos efeitos, que não fica inteiramente ao alvitre do guardião da Constituição.

"Assim, se o STF entender pela aplicação dessa hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão, data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos"[103].

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A norma em estudo possibilita, outrossim, a restrição do efeito erga omnes[104] e do efeito repristinatório[105], já que na redação dos artigos[106] não há limitação expressa, pelo contrário, ambas dispõem de forma ampla: "retringir os efeitos daquela declaração".

Não se pode olvidar que a restrição ao efeito erga omnes (para todos), bem como aos outros efeitos, devem compatibilizar-se com o princípio da isonomia, sob pena de irremissível inconstitucionalidade, impondo-se o fiel cumprimento da Constituição por seu guardião.

3.2 Análise da compatibilidade da manipulação dos efeitos da decisão na argüição com a Constituição Federal

Questão que deve ser tratada é a compatibilidade ou não do dispositivo da Lei 9.882/99, que versa sobre a manipulação dos efeitos da decisão prolatada na argüição com a Constituição Federal.

Quanto ao efeito retroativo ou ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, seja via ação direta seja ação declaratória, dissemos que, embora não conste expressamente na Lei Maior, predomina o entendimento que consagra a nulidade do ato inconstitucional, retroagindo a sua declaração (efeito ex tunc), já que tais atos não possuem aptidão para surtir efeitos jurídicos válidos. Tal tese encontra, segundo a doutrina e a jurisprudência do Pretório Excelso, fundamento no princípio que consagra a supremacia da Constituição.

Convém repetir as palavras de Gilmar Ferreira Mendes:

"O princípio da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional"[107]. Concluindo que foi preservada "a orientação que considera nula ipso jure e ex tunc a lei inconstitucional" [108].

Ressalte-se que recentemente o citado autor mudou de entendimento, concluindo que a "lei inconstitucinal não seria, portanto, nula ipso iure, mas apenas anulável" [109].

Discordamos do novel entendimento do citado autor.

É inconstitucional o artigo 11 da Lei 9.882/99 por violar o princípio constitucional da nulidade da lei inconstitucional, o princípio da supremacia da Constituição, os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, a separação de poderes [110], e o princípio da segurança jurídica [111].

Não se pode olvidar que "não se dá conteúdo à Constituição a partir das leis. A fórmula a adotar-se para a explicitação dos conceitos opera sempre ‘de cima para baixo’, o que serve para dar segurança em suas definições"[112], procedendo-se a interpretação da lei a partir da Constituição, já que esta constitui fundamento de validade daquela.

A incompatibilidade vertical do artigo em estudo[113] com o princípio constitucional da nulidade é manifesta. Não se pode admitir que a lei restrinja o princípio constitucional da nulidade, viabilizando, desta forma, a possibilidade de que um ato inconstitucional produza efeitos.

O princípio da supremacia da Constituição foi violado pelo artigo 11 da Lei 9.882/99, considerando-se que a exceção ao princípio constitucional da nulidade não poderia ter sido prevista em lei, já que esta não altera a Constituição, pelo contrário, deve com ela guardar relação de compatibilidade.

É defeso à lei alterar um princípio constitucional [114], possibilitando, até que por louváveis razões[115], que o ato inconstitucional produza efeitos.

Não se pode olvidar, que "uma Constituição possui supremacia incondicional em relação a todo ordenamento jurídico e força normativa inquestionável, devendo suas previsões servir de princípios informadores obrigatórios na atuação do poder público, no âmbito de todos os Poderes de Estado"[116].

Há, outrossim, desconformidade das normas em estudo com os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, que estabelecem o poder de qualquer juiz ou tribunal deixar de aplicar a lei inconstitucional, que prevêem a possibilidade da decisão do Supremo Tribunal Federal adiar a sanção de nulidade, que terá efeito vinculante[117], e, estarão, os demais órgãos do Judiciário, impossibilitados de decidir em sentido contrário.

A separação dos poderes[118], ao nosso sentir, também restou violada, pois permite-se que o Supremo Tribunal Federal, com uma margem de discricionariedade muita ampla, legisle, ao determinar que os efeitos da nulidade da lei inconstitucional somente ocorram no futuro, caracterizando-se como verdadeira revogação futura da validade das normas vigentes.

Zeno Veloso leciona que, caso seja aplicada a norma em estudo, não havendo retroatividade do pronunciamento, os efeitos da inconstitucionalidade se "assemelham aos da revogação da norma" [119].

A margem de liberdade conferida ao Pretório Excelso para deliberar sobre a retroatividade ou não dos efeitos de sua decisão foi tão ampla que inviabiliza a possibilidade de previsão se os efeitos serão aplicados retroativamente ou não, o que prejudica a certeza do direito e estabilidade das relações jurídicas, infringindo o princípio da segurança jurídica[120].

O efeito repristinatório também não pode ser adiado, impondo-se sua aplicação, pois, declarada a nulidade da lei revogadora, ele é automático, já que é mera conseqüência desta.

Ressaltamos a existência de respeitáveis opiniões em sentido contrário, acerca da possibilidade de aplicação do efeito ex nunc.

Ives Gandra da Silva Martins já externou seu entendimento:

"No Brasil, uma vez declarada, via controle concentrado, a inconstitucionalidade, esse reconhecimento atinge a norma desde sua origem e, por força do princípio da segurança jurídica, a decisão tem efeito vinculante e erga omnes. Porém, diante da impossibilidade material de reconduzir as situações definitivamente constituídas, sob a égide da norma inválida, à situação pretérita, eliminando todos os efeitos do ato legislativo inválido, pode o tribunal reconhecer à decisão de mérito, eficácia ex nunc"[121].

Gilmar Ferreira Mendes defende a constitucionalidade dos dispositivos que consagram a possibilidade do Supremo Tribunal Federal afastar o princípio da nulidade [122].

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Sobre os autores
Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira

Procurador do Estado de São Paulo, doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, professor convidado de cursos de pós-graduação (PUC-COGEAE, UFBA, Escola Superior do Ministério Público, JUSPODIVM, LFG, FAAP e USP-FDRP), autor de livros jurídicos.

Rodrigo Pieroni Fernandes

procurador do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves ; FERNANDES, Rodrigo Pieroni. A argüição de descumprimento de preceito fundamental e a manipulação dos efeitos de sua decisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2596. Acesso em: 16 abr. 2024.

Mais informações

Tese aprovada por unanimidade e com louvor no 27º Congresso Nacional de Procuradores do Estado, realizado de 14 a 18 de outubro de 2001, em Vitória (ES).

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