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O regime colaborativo estatal na área da saúde: as parcerias com o terceiro setor

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3 – Formas de execução indireta de serviços públicos de saúde.

Consabido que o regime de colaboração com o Terceiro Setor não é o único modelo apto a permitir que o Poder Público implemente serviços e ações de saúde. Isso, pois, como outrora debatido, embora normalmente a titularidade dos serviços públicos seja do Estado, mesmo nesses casos, o regime de prestação admite, para além do modo direto (situação de acúmulo das condições de titular e prestador), também aquele regime indireto de execução (situação em que apenas ostenta a condição de titular, porventura não exclusivo).

execução indireta quando o ente estatal transfere, por razões de conveniência e oportunidade motivadas, encargos para outras entidades públicas ou privadas, passando a sobre elas exercer atividade de controle compatível com a modalidade de transferência adotada. Essa “cessão” da execução de um serviço público pode se dar através do regime de descentralização, seja por delegação legal ou negocial; ou pelo regime colaborativo, através das parcerias.

A delegação legal abarca as autarquias e fundações, enquanto as parcerias ou colaborações englobam as relações com o Terceiro Setor, onde se incluem, por exemplo, os hospitais filantrópicos. A delegação negocial, por sua vez, envolve os regimes de concessão, permissão, autorização e parcerias público-privadas (concessão administrativa ou patrocinada) com os particulares, sendo que mais recentemente se venha falando e mesmo verificando, alguns poucos casos de parcerias público privadas na área de saúde.

Forma de execução indireta e possível alternativa à prestação na área da saúde, conquanto também detenha natureza negocial e se dirija a cooperação entre entes federativos para a prestação de serviços de competência comum, é aquela realizada através de gestão associada, envolvendo os vínculos de cooperação e os consórcios públicos. Mais especificamente quanto aos consórcios, verificam-se algumas vantagens como o aumento da capacidade de atendimento para o alcance das políticas públicas; a maior eficiência do uso dos recursos públicos; muitas vezes mediante a realização de ações inacessíveis a um único ente sem essa articulação de esforços; o aumento do poder de diálogo e melhores condições de negociação junto aos governos estadual e federal, ou junto a entidades da sociedade; o aumento da transparência das decisões públicas. Para tanto, a modalidade deve ser disciplinada por lei anterior. Sobre isso discorre Floriano de Azevedo Marques Neto:

“A novidade da Lei nº 11.107/05 é que ela permite a criação de consórcios públicos entre entes públicos que são arranjos consorciais, por exemplo, de vários Municípios para construir e operar diretamente ou mediante privados uma estrutura hospitalar de interesse comum dos Municípios, constituindo, para isso, uma autarquia interfederativa. O consórcio público nos termos da Constituição e da Lei, assume a característica de uma autarquia interfederativa.” (in Parcerias Público-Privadas nos Serviços de Saúde, constante da obra Terceiro Setor e Parcerias na Área de Saúde, Editora Fórum, 2011, p. 68)

Para que essa alternativa se concretize há necessidade de mais de uma manifestação de vontade em sentido comum; que haja uma convergência volitiva, demonstrando um entendimento entre os entes estatais, além de prévia aprovação de leis em cada uma das Câmaras Municipais envolvidas e de um estatuto único que contemple todas essas realidades.

Por sua vez, a delegação legal é espécie de descentralização administrativa que implica igualmente na transferência da execução atividade estatal e se formaliza através de lei na qual, ao mesmo tempo em que admite a “cessão” também cria a pessoa jurídica que irá prestar o serviço “cedido”. Nessa sede se localizam as autarquias, que devem, obrigatoriamente, ser criadas por meio de lei específica; verdadeiro influxo do princípio da reserva legal.

Vale lembrar que outras entidades, como as empresas públicas, sociedades de economia mistas e as fundações também se inserem no rol da delegação legal, todas submetidas ao crivo do artigo 37, inciso XIX, da Constituição Federal, sendo característica comum dessa modalidade de descentralização a criação pessoas jurídicas de direito público, que continuam a integrar a estrutura do Estado, embora indiretamente. Nesse sentido os ensinamentos precisos de José dos Santos Carvalho Filho:

“Essas pessoas a quem foi conferida competência legal para o desempenho de certa função do Estado compõem a administração indireta ou administração descentralizada, e, como tais, integram a Administração considerada como um todo (art. 37, CF).” (Manual de Direito Administrativo, 25ª Edição, Editora Atlas, p. 346)

Ocorre que dentro dessa ótica de entidades da Administração Indireta, apenas a autarquia e a fundação (a pública, mais apropriadamente) atenderiam à finalidade específica de prestação de serviços de saúde gratuitamente, dado que a empresa pública e a sociedade de economia mista atentam para objetivos que consideramos incompatíveis, preponderantemente pelo caráter econômico para o qual se voltam. Sobre o tema, hodiernamente se tem considerado as fundações públicas como entidades que guardam íntima semelhança com as autarquias, a ponto de se falar em fundações autárquicas ou em autarquias fundacionais, quase que indistintamente. Chega-se mesmo a classificar as fundações públicas como espécie do gênero autarquia. Essa a abalizada doutrina de José dos Santos Carvalho Filho, que destaca:

“Há duas correntes sobre a matéria. A primeira, dominante, defende a existência de dois tipos de fundações públicas: as fundações de direito público e as de direito privado, aquelas ostentando personalidade jurídica de direito público e estas sendo dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Por esse entendimento, as fundações de direito público são caracterizadas como verdadeiras autarquias, razão por que são denominadas, algumas vezes, de fundações autárquicas ou autarquias fundacionais. Seriam elas uma espécie do gênero autarquia.” (Manual de Direito Administrativo, 25ª Edição, Editora Atlas, p. 514)

Assim, autarquias e fundações públicas se assemelham e, enquanto submetidas praticamente ao mesmo regime público, dispõem de idênticos instrumentos de criação, assim como de prerrogativas (tanto substantivas quanto processuais) e privilégios tributários. A diferença marcante entre essas figuradas porventura se encontra na sua constituição, porquanto se na autarquia há serviço personificado, bastando a previsão de recursos a lhe fazer frente; já na fundação há exigência de destinação de patrimônio afetado desde sua criação.

A nosso ver, ambas as figuras, enquanto alternativas à descentralização administrativa, podem ser direcionadas à execução indireta de serviços na área da saúde pública, de modo que não há maiores empecilhos. No âmbito do Estado de São Paulo, constituições tais são admitidas e regularmente fiscalizadas pelo Tribunal de Contas, uma vez que atendidas as especificações legais, nada se tem a opor. Exemplo de autarquia paulista nesse segmento é a Autarquia Municipal de Itapecerica da Serra, submetida ao crivo do Tribunal de Contas Bandeirante, cujo balanço geral das contas de 2009, analisado no processo TC nº 010910/026/09, foi tido por regular. Outrossim, existem diversas fundações, como a Fundação de Saúde de Rio Claro, Fundação de Saúde de Americana, dentre outras, todas submetidas à fiscalização daquela Corte de Contas, e que se afere de consulta ao repertório jurisprudencial de seu site institucional (www.tce.sp.gov.br). Isto é, atendidos os ditames legais, não vertem proibições fiscais. O Município de São Paulo também adota essa iniciativa desde os idos da década passada (em 2002), como se nota da Lei Municipal nº 13.271/2002, não havendo qualquer restrição enquanto reconhecida opção do administrador que busca maior agilidade e especialização no serviço.

Todavia, para a proposta em testilha, interessa-nos com mais ênfase o regime das parcerias ou, mais abrangentemente, o regime colaborativo, por englobar as relações com o Terceiro Setor, sendo que outras formas de execução indireta passíveis de aplicação na área da saúde, como a gestão associada e os consórcios públicos ou mesmo as parcerias público-privadas, não serão abordados nessa oportunidade.

O regime colaborativo consiste no estabelecimento de um vínculo entre o Estado e representantes da sociedade, especialmente com entidades, que passam, assim, a prestar serviços públicos, formando, enquanto modelo, um tertium genus que não se confunde com a execução realizada pelos integrantes da Administração Direta ou Indireta, tampouco com as relações ordinárias celebradas com os particulares.

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Compõem o Terceiro Setor o conjunto de entidades da sociedade civil de fins não lucrativos, mas de relevância pública, quais sejam, as associações e fundações (neste caso referimo-nos às privadas), todas sem fins lucrativos, muitas vezes detentoras de títulos, certificações ou qualificações, cumuláveis ou não, como as organizações de utilidade pública, da sociedade civil no interesse público (OSCIPs) e as sociais (OSs), onde se inserem também as entidades filantrópicas históricas como as Santas Casas, entre outras.

Nessa senda, as entidades do terceiro setor não são delegadas legais do Estado e não dispõe de prerrogativas de direito público, exatamente por atentarem ao regime de direito privado em que se constituem e no qual se mantém, mesmo se relacionando com o Poder Público. Porém, recebem, claramente, enquanto no manejo de recursos públicos, um tratamento próprio e mais rígido do que o encontrado na gestão de recursos privados.

Com essa habilitação para colaborar com o Poder Público mediante repasses, verificam-se também algumas exigências comuns, como a de aplicação de excedentes financeiros circunscrita à atividade social, a de proibição de partilha de excedentes operacionais e a de destinação, em caso de extinção, do patrimônio a outra entidade com as mesmas nuances.

Aliado a isso, determinadas titulações, para serem obtidas, exigem a modulação da própria estrutura e composição dessas organizações, verificando-se uma composição vocacionada à autofiscalização e controle (como denota a existência de órgãos internos de fiscalização ou a exigência de auditoria independente conforme o aporte de recursos públicos), a exemplo do apurado normativamente nas OSs e OSCIPs, enquanto teleologia perfeitamente identificável das legislações que as inseriram no contexto jurídico pátrio.

Afora isso, havendo a gestão de recursos estatais, os ajustes celebrados serão alvo de fiscalização pelo controle externo realizado pelos Tribunais de Contas; característica atrativa imanente à competência dessas Cortes no que tange às hipóteses de manuseio de dinheiro, bens e valores públicos, ainda que por particulares.

Não obstante, de uma forma geral verificamos que essas entidades contam com maior flexibilidade operacional, característica da iniciativa privada; bem como com uma proposta de equidade no emprego dos recursos públicos, além de celebrarem ajustes cuja natureza é cooperativa e convergente; diferente, portanto, dos contratos administrativos, onde se notam polos volitivos distintos, além de retributividade lucrativa, já que não se desenvolvem mediante simples custeio despesas e remuneração de pessoal envolvido.

Uma vez feita a opção pelo regime colaborativo, claro que, diante da migração de um regime de execução para outro, ou mesmo da mudança de uma modelagem de celebração de ajuste para outra, pode, e muitas vezes deve haver uma indispensável etapa de transição, seja para viabilizar a nova proposta, seja para evitar percalços ou mesmo solução ode continuidade dos serviços, notadamente os essenciais, jamais admitida. Esse o caso, por exemplo, da necessidade sentida de se levantarem dados e informações para fins de eleição dos melhores indicadores e estimativas de metas que irão compor um contrato de gestão ou um termo de parceria ou ainda o período para realização do procedimento de qualificação e seleção do melhor projeto em atendimento às demandas da Administração Pública. O objetivo máxime deve ser sempre a preservação do interesse público.

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Sobre os autores
Alexandre Massarana da Costa

Advogado, pós-graduado em direito constitucional e político, com atuação na área do direito público.

Marcos Antonio

Advogado com atuação especializada em direito público, palestrante na área do direito administrativo, sócio do escritório Monteiro & Massarana Sociedade de Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Alexandre Massarana ; GABAN MONTEIRO, Marcos Antonio. O regime colaborativo estatal na área da saúde: as parcerias com o terceiro setor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3809, 5 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26061. Acesso em: 30 abr. 2024.

Mais informações

Há uma enorme carência na compreensão das necessidades e mesmo das possibilidades que o regime de colaboração com o Terceiro Setor, se bem aplicado, podem resultar, gerando benefícios sociais tão caros à sociedade, em especial na área da saúde. Esse artigo visa reunir os estudos e a experiência concreta de seus idealizadores em prol de um Estado igualmente presente.

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