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Afinal de contas para que serve a filosofia do direito?

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5 CONCLUSÃO: AFINAL DE CONTAS PARA QUE SERVE A FILOSOFIA DO DIREITO?

Numa época em que a economia, a religião, a família, o Estado, o trabalho, entre muitas outras categorias tratadas tradicionalmente pelo direito, encontram-se sofrendo profundas modificações, outro cenário de crise se anuncia. Um dos sintomas desta crise é a perda de centralidade do direito. Isso se percebe não apenas pela quebra do monopólio dos juristas na produção de discursos sobre o direito, mas também quando outras áreas do conhecimento se tornam pioneiras na produção de discursos sobre categorias tradicionalmente legadas aos juristas (MIAILLE; FONTAINHA, 2010).

A despeito desta crise ou tensão que se avizinha, persiste a incessante produção de um sem número de novas regras. Constatação reveladora de uma tecnicização extrema das profissões jurídicas e de um desinteresse pelas questões teóricas. O que nos força a indagar: O que se pode esperar da filosofia do direito em uma época de predomínio (e tensão) do pensamento técnico-científico?

Para Troper, “as interrogações sobre os fundamentos dessas regras, a adequação dos conceitos jurídicos tradicionais às novas circunstâncias, a apreciação do papel do Estado e da maneira pela qual ele deve assegurá-lo abriram novos campos para a filosofia do direito” (2008, p. 30).

Também são dignas de registro as palavras do jurista e escritor alemão Bernhard Schlink  ante uma provocante pergunta[11] a respeito da existência de novos temas a merecer o cuidado da filosofia do direito tendo em vista o desenvolvimento da ciência e tecnologia, no que asseverou:

Sempre existem novos temas. Sempre existem os antigos, que se renovam. Perguntas sobre justo e injusto, responsabilidade... São antigas, mas podem estar sempre novas. Mas, com o desenvolvimento da Biomedicina da indústria e da técnica e das mudanças na comunicação, existem novos ajustes entre as pessoas, novas possibilidades sobre o que fazem pelas outras, para o bem ou para o mal, novas perguntas sobre o que é justo ou não... Disso se ocupam os filósofos do Direito.

Já Guerra Filho (1999, p. 93-94) apresenta uma reflexão mais extensa a respeito da utilidade ou papel da filosofia do direito em nossos dias, de molde a ser trabalhada para estar à altura do momento histórico em que vivemos, aduzindo que tal disciplina propõe:

Uma reflexão sistemática, em sintonia com o pensamento que outros manifestaram, sobre temas residuais, dos quais não pode dar conta o pensamento científico, por algum dos seguintes motivos:

a) Por não ser matéria adequada à reflexão levada a cabo pela ciência, em virtude do modo mesmo como essa se estrutura, enquanto forma de produzir conhecimento. Entre essas matérias, aparecem aquelas que podem ser consideradas centrais em filosofia do direito, envolvendo toda problemática relativa aos valores e, especificamente, aquele da justiça.

b) Por cuidar de problemas criados para o homem pelo desenvolvimento das ciências e técnicas delas extraídas, tais como a destruição do meio ambiente e a produção de armas de extermínio, que ameaçam a própria vida sobre a Terra, ou a manipulação genética do material biológico, humano ou não, e a crescente interferência médica na constituição natural do ser humano (inseminação artificial, mudança de sexo, transplante de órgãos, etc.).

c) Por envolver o questionamento a respeito do próprio conhecimento científico, das condições que o possibilitam e do balizamento de seus limites, demarcando o seu território, hoje tão vasto, mas ainda circundado (e influenciado) por outros modos de aquisição de conhecimento, mais antigos como são a filosofia, a arte, a religião, a mitologia e, pelo menos em (grande) parte, o direito.

d) Por demandar uma meditação globalizante sobre o momento histórico em que vivemos, para se poder alcançar um entendimento sobre nosso presente e dos possíveis mundos futuros que se nos apresentam. Essa perquirição do futuro e o caráter indiviso de seu objeto são características que, reconhecidamente, são incompatíveis com o pensamento científico. Vale notar, aqui, ser o desenvolvimento desse ponto que fornece a “quadratura” dentro da qual se há de desenvolver a reflexão sobre os demais.

De modo geral, o grau de complexidade da cadeira de filosofia do direito colide com a atual tendência do corpo discente (e muitas vezes docente) de desprezar as reflexões mais profundas e as discussões mais abstratas, considerando-as, ingenuamente, como “perfumaria” (FARIA, 1987, p. 73).

Tal postura, ainda vigente, pode ser atribuída em boa medida ao viés tecnocrata que animou ampla reforma educacional pós-64 (Lei nº 5.540/68) dissociando o ensino superior do contexto sócio-econômico brasileiro. Faria descreve os desdobramentos dessa reforma:

Seu princípio inspirador descartava a tradição bacharelesca e “humanista” de Universidade, assentada numa concepção de ensino e cultura como meio de realização e plenitude individuais. [...], na lógica dos autores dessa reforma, às instituições universitárias caberiam um papel eminentemente pragmático e utilitarista: ou seja, elas deveriam concentrar sua atenção na formação dos quadros técnicos e gerenciais necessários à implementação do tipo de desenvolvimento econômico então vigente. Aos idealizadores dessa reforma apenas interessava, em nome dos objetivos “maiores” do regime burocrático-militar pós-64, substituir o conceito “humanista” de formação cultural por uma progressiva racionalização e especialização do ensino superior, sob os requisitos da eficácia econômica e do avanço tecnológico. (1987, p. 17-18).

Assim, apesar do advento de uma nova ordem constitucional, a organização do ensino superior permaneceu sendo regido por uma norma (perspectiva) erigida dentro de um contexto mais alienante e repressor. A mudança legislativa só ocorreu em razão da derrogação da Lei nº 5.540/68, da qual restou apenas o art. 16, que cuida da nomeação e do prazo de mandato dos dirigentes das IES federais, pela Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Foi no contexto dessa última Lei que entrou em vigor, após ampla discussão, a Resolução CNE/MEC nº. 9/2004, estabelecendo as novas diretrizes curriculares do curso de Direito prevendo, entre outros objetivos, uma formação geral, humanística, capaz de analisar e interpretar o fenômeno jurídico, aliada a uma postura crítica como referencial do perfil do graduando.

Em vista desse desafio, levando em conta todos os pontos antes remarcados, a disciplina filosofia do direito apresenta-se como capaz de oferecer um espaço de estimulo ao pensamento e a atividade crítica que farão diferença em nossa sociedade. De molde a sobejar o ensino meramente técnico do Direito, cuja ênfase histórica vem formando somente “operadores” no sentido pejorativo.

Em seu livro, Faria (1987, p. 37) transcreve trecho significativo de um trabalho de um aluno de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, do longínquo ano de 1981, que já então denunciava:

O ensino do Direito como está posto favorece o imobilismo de alunos e professores. No esforço de renovação, uns atingem o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os outros, além do mítico título de “doutor”, obtêm a habilitação profissional que lhes permite viver de um trabalho não braçal (white collar). A tarefa do ensino para o aluno é cumprida nestes termos: aprendido o “abc” do Processo e do Direito Civil, já está habilitado a viver de inventários e cobranças sem maior indagação. [...]

Diz ainda a pesquisa: É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser inconsciente? [...] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no processo de tomada de decisão e no planejamento.

E mais: 

O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do Estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar.

De lá para cá não mudou muita coisa, o menosprezo a disciplinas fundamentais, como a filosofia do direito, acaba formando bacharéis que dificilmente se encontram preparados para as mudanças bruscas deste novo mundo, que dificilmente vão ser assimilados por uma burocracia estatal saturada. É diante deste novo mundo, destes novos paradigmas que a faculdade de Direito tem que repensar seus objetivos específicos, e se pretende ainda direcionar o estudo para o mercado de trabalho, precisa repensar que tipo de estudo seria mais adequado para esta nova sociedade que está se formando (SALGADO, 2010).


REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre, Fabris, 1987.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, 2001.

_____________. Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. Tradução Elza Maria Gasparotto; revisão técnica Gilberto Callado de Oliveira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

LOPES, José Reinaldo de Lima; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. Curso de história do Direito. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009.

MIAILLE, Michel; FONTAINHA, Fernando de Castro. O ensino do direito na França. Rev. direito GV vol.6 n.1 São Paulo Jan./June 2010. http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322010000100004. Acessado em 16.4.2013. 

NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SALGADO, Gisele. Ensino Superior e a faculdade de direito. WebArtigos. 26 de maio de 2010. http://www.webartigos.com/artigos/ensino-superior-e-a-faculdade-de-direito/38808/. Acessado em 16.10.2012.

SCHLINK, Bernhard. Pode haver uma educação ao se confiar na Justiça. http://www.conjur.com.br/2013-jul-12/ideias-milenio-bernhard-schlink-jurista-escritor-alemao. Acessado em 12.7.2013.

STRECK, Lenio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis! http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-perguntas-imbecis. Acessado em 28.2.2013.

TROPER, Michel. A filosofia do direito. Tradução de Ana Deiró. São Paulo: Martins, 2008.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.


Notas

[1] Além da realidade empírica, levou-nos a redigir essa assertiva a leitura das obras “Curso de história do Direito” (LOPES; QUEIROZ; ACCA) e “História do direito no Brasil” (WOLKMER), que, sob roupagens distintas, delineiam a implantação, o desabrochar e a decadência (crise) do ensino jurídico no Brasil, suscitando reflexões a respeito de eventuais alternativas de superação.

[2] Índice de reprovação no 9º Exame da OAB chega a 90%. Apenas 10,3% dos bacharéis em Direito foram aprovados no 9º Exame de Ordem Unificado. Dos 114.763 candidatos que prestaram a prova desde a primeira fase, 11.820 obtiveram êxito em todas as etapas e vão receber a carteira de advogado, exigida de quem quer atuar como tal. O baixo índice de aprovação já era esperado, já que apenas 18% passaram na primeira fase. Fonte: http://www.cidadeverde.com/ndice-de-reprovacao-no-9-exame-de-oab-chega-a-90-128294. Acessado em 24.3.2013.

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[3] MEC e OAB assinam acordo para aprimorar cursos de Direito no país. Acordo vai viabilizar estudos visando à melhoria da qualidade dos cursos. O ministro da Educação, Aloizio Mercadante, e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Furtado, assinaram acordo de cooperação técnica com objetivo de realizar estudos para subsidiar o estabelecimento de nova política regulatória para o ensino jurídico, visando à melhoria da qualidade dos cursos de direito no país. Atualmente, o país dispõe de 1,2 mil cursos de direito, com 800 mil matrículas em todos os anos da graduação. De acordo com o último censo do ensino superior, das 220 mil vagas autorizadas, somente 162 mil foram preenchidas. Regulação e Supervisão – Mercadante também ressaltou que o MEC não vai autorizar a abertura de novos cursos de direito enquanto a nova política de regulação não estiver definida. O acordo de cooperação técnica também vai estabelecer critérios para a autorização, o reconhecimento e renovação de reconhecimento do curso de bacharel em direito, além de identificar, periodicamente, a demanda quantitativa e qualitativa de profissionais do direito. Atualmente, há 100 cursos aguardando autorização do MEC para serem abertos. “Não há urgência de abrir novos cursos, já que temos ociosidade de cerca de 25%”, destacou o ministro da Educação. No final deste ano, o MEC divulga avaliação completa de todos os cursos de direito, com base nos indicadores do Índice Geral de Cursos (IGC) e Conceito Preliminar de Curso (CPC). Fonte: http://www.cidadeverde.com/mec-e-oab-assinam-acordo-para-aprimorar-cursos-de-direito-no-pais-128354. Acessado em 24.3.2013.

[4] O anúncio foi feito por Marcus Vinicius ao proferir aula magna para os alunos da Faculdade de Direito da PUC de Minas Gerais, nessa segunda-feira (18/3/2013), em Belo Horizonte. Fonte: http://www.cidadeverde.com/exame-de-ordem-dos-advogados-tera-questoes-de-filosofia-do-direito-127960. Acessado em 20.3.2013.

[5] Visualizando excesso existente nos exames da OAB, encontra-se comentário que propugna que a avaliação se atenha a mensurar o aprendizado básico para o exercício da advocacia. Pois, segundo seu autor, ex-Presidente da OAB-RJ, “o novo advogado precisa é ter domínio sobre os instrumentos elementares da profissão, porque o aperfeiçoamento e o refinamento virão da prática, do constante estudo do direito e da permanente abertura para as novidades que se apresentam no mundo jurídico”. http://www.conjur.com.br/2013-abr-05/octavio-gomes-exame-ordem-medir-aprendizado-basico-estudantes. Acessado em 5.4.2013.

[6] http://www.conjur.com.br/2013-mar-19/exame-ordem-questoes-filosofia-direito-furtado-coelho. Acessado em 20.3.2013.

[7] Como ponderação a essa colocação deve-se consignar o questionamento de Lenio Luiz Streck respeitante à indexação da qualidade do curso oferecido aos índices de aprovação no Exame de Ordem. Em muitos casos, esse fator acaba por levar a uma espécie de “vestibularização do direito”.

[8] Nesta obra, entre outros pontos, o autor descreve o campo de abrangência e penetração das leis.

[9] A 4ª edição da cartilha OAB Recomenda (p. 10) traz os seguintes números: em 1991 os cursos jurídicos no Brasil eram 165; em 2001 (no primeiro retrato do OAB RECOMENDA) passaram para 380; em 2004 (segunda versão do OAB RECOMENDA) eram 733; em 2007 (terceira edição do OAB RECOMENDA) somavam 1.046; e em 2011, data desta quarta edição, já totalizaram 1.210 cursos de graduação em Direito no país.

[10] Art. 5º, inciso I, da Resolução CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004.

[11] A propósito, o questionamento foi formulado por ocasião de entrevista concedida à jornalista Leila Sterenberg, para o programa de entrevistas Milênio, da Globo News, pelo canal de televisão por assinatura Globo.

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Sobre o autor
João Batista do Rêgo Júnior

Assessor Jurídico na SEF/DF. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Instrutor da Escola de Governo do DF. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho. Pós-graduado em Ensino Superior Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO JÚNIOR, João Batista. Afinal de contas para que serve a filosofia do direito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26287. Acesso em: 2 mai. 2024.

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