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Racismo: reflexões sobre as restrições constitucionais

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30/01/2014 às 14:15
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Capítulo II – A Constituição de 1988 e as novas fronteiras jurídicas do combate ao preconceito.

1. O contexto constitucional inclusivo e a obrigação de proteção suficiente dos bens jurídicos pelo Estado.

No ano de 1987, a redemocratização política no Brasil culminou na reunião da Assembleia Constituinte, cujo objetivo era a elaboração de uma nova Carta para inaugurar definitivamente a nova República no país. Dentro de um ano, a partir de então, seria promulgada a Constituição de 1988.

Inicialmente convém demonstrar a multiplicidade de referências ao preconceito, à discriminação ou ao racismo presente no texto constitucional, sendo que já no preâmbulo, afirma-se que o objetivo dos constituintes é a formulação de “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

Para a melhor sistematização dessas referências, à exceção das criminalizadoras, remete-se ao quadro a seguir:

Termos

Referências constitucionais

Igualdade

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

II – prevalência dos direitos humanos

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidadedo direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VII - redução dasdesigualdades regionais e sociais;

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

Preconceito e Discriminação

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

V - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;

Racismo

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

Diante das passagens colacionadas, a Constituição atualmente vigente delimitou um espaço de destaque às questões relacionadas à igualdade, formal ou material. E dentro desse contexto, especialmente importante é o combate à discriminação negativa e ao racismo.

Além disso, o constituinte também mostrou preocupação em promover a preservação e valorização das diferentes culturas conformadoras da sociedade brasileira. Nesse sentido, temos o tombamento dos documentos e sítios ligados aos quilombos (art. 216, §5º, CRFB) e a proteção das manifestações afro-brasileiras e indígenas (art. 215, §1º CRFB).

Diferentemente dos textos anteriores, o combate à exteriorização do preconceito assumiu posição relevante no desenvolvimento da sociedade. De tal forma, o tema encontra-se presente por toda a Constituição, não estando limitado a uma disposição isolada, como em 1967.

Em função disso, não seria prudente reduzir o espírito de inclusão proposto pela Constituição à atuação estatal meramente penal no que tange ao repúdio a comportamentos discriminatórios. Sendo assim, há a necessidade de ações voltadas para o próprio avanço social de camadas populacionais tradicionalmente excluídas.

Por outro lado, contudo, há que se ter em mente que a criminalização de determinadas condutas é, por vezes, essencial para evitar-se proteção insuficiente de determinados valores.

Assim, a proporcionalidade da atuação estatal na defesa dos direitos fundamentais deve ser sindicada não apenas para evitar medidas gravosas e evitáveis – a proibição do excesso, Übermassverbot – mas, também, no sentido de proibir a proteção subdimensionada ou insuficiente Untermassverbot.

[...]

Situações há nas quais meios mais brandos de controle se mostram incapazes para dissuadir a prática de condutas anti-sociais ou para reafirmar, na sociedade, a prevalência de determinados valores. [24]

Uma vez que a construção de uma sociedade sem preconceitos é mostrada como um dos objetivos fundamentais da República, incoerência haveria na inexistência de tutela penal sob as condutas que desafiassem essa meta.

Essa ótica inclusive está em consonância com a visão de que existe um papel seletivo a ser desempenhado pelo direito penal na busca pela pacificação social. Como consequência de tal entendimento, o tipo penal deve vir ao encontro da proteção dos bens jurídicos tidos como mais importantes.

2.  Os mandados constitucionais de criminalização.

Na esteira do novo contexto delineado pela Constituição Federal de 1988 exposto acima, o constituinte, imbuído de um compromisso com a repressão de determinadas práticas reconhecidas como especialmente danosas à sociedade, estabeleceu diversos outros comandos voltados para a criminalização destas condutas.

O texto constitucional revela além da obrigatoriedade de penalização da prática do racismo outros mandados de criminalização, identificados por Luiz Carlos dos Santos Gonçalves a partir de uma ótica restritiva. De acordo com esse critério, os mandados constitucionais expressos de criminalização seriam os seguintes:

Art. 5º XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

Art. 5º XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Art. 5º XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

Art. 5º XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

Art. 7º X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;

Art. 225 § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Art. 227 § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. (grifos nossos)

A determinação no próprio texto constitucional de mandados de criminalização é uma prática recorrente em diversos países. Costuma-se deixar o estabelecimento de tipos criminais a cargo do legislador ordinário a partir da escolha dos bens jurídicos que merecem a tutela penal, tendo como parâmetro as diretrizes constitucionais.

Conforme observado, a Constituição de 1988 foi generosa nas hipóteses de obrigatoriedade de proteção penal de certos bens. Com isso, poder-se-ia concluir por uma tendência autoritária da Carta, no entanto, segundo Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, essa seria uma visão equivocada.

Não é possível correlacionar a existência de mandados de criminalização com qualquer viés autoritário do texto constitucional. [...] É certo que além da submissão de todos, inclusive do próprio Estado e suas autoridades, ao regramento constitucional, o Estado Democrático de Direito se caracteriza, essencialmente, pela procura da igualdade e pela promoção social. Estes requisitos combinam com a função protetiva de direitos fundamentais [...]. [25]

O que se pode concluir é que as determinações previstas constitucionalmente representam por um lado um compromisso especial do constituinte com a tutela de certos valores e, por outro lado, revelam a tentativa de utilizar o direito penal como uma relevante estratégica na promoção dos direitos fundamentais.

3.  A limitação das disposições criminalizadoras da Constituição.

Do ponto de vista da efetividade, os mandados de criminalização dependem de legislação posterior, seja essa necessidade expressa ou não. Isso porque nenhuma das regras apontadas determina o tipo penal em todos os seus elementos objetivos e subjetivos básicos e, tampouco as penas aplicáveis.

Essa opção do constituinte é razoável, tendo em vista que, um tipo constitucional inteiramente acabado, exigira para sua alteração a elaboração de emendas constitucionais e “impediria a flexibilidade e a mutabilidade exigidas para que as condutas criminosas acompanhem a evolução da sociedade”. [26]

Neste ponto, surgem questões sobre a eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais de cunho penal. Em relação ao tema, a principal conceituação doutrinária decorre do trabalho de José Afonso da Silva, que classificou em três categorias as normas constitucionais: (i) de eficácia plena, (ii) de eficácia contida e (iii) de eficácia reduzida ou limitada.

Segundo José Afonso da Silva, as normas de eficácia plena são aquelas que “desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais” [27] porque o legislador constituinte criou desde logo “uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto” [28].

 Já as normas de eficácia contida também produzem ou podem produzir todos os efeitos queridos pelo constituinte, mas a atuação legislativa ou outros meios podem intervir sobre essas normas, fazendo com que a sua aplicabilidade possa ser contida em certos limites.

E, por fim, as de eficácia limitada são as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos porque não foi estabelecida uma normatividade bastante sobre a matéria, deixando-se essa tarefa ao legislador ordinário ou outro órgão do Estado.

Embora, este autor não tenha identificado especificamente a posição dos mandados de criminalização na citada classificação, subsiste a possibilidade de fazê-lo a partir da utilização dos elementos acima trazidos para a separação das normas quanto à sua eficácia.

Os mandados previstos nos incisos XLII, XLIII, XLIV do art. 5º são de eficácia reduzida em decorrência da inexistência de definições dos preceitos primários e preceitos secundários dos tipos, em face do princípio constitucional da legalidade.

Todavia, as restrições constitucionais referentes à imprescritibilidade, inafiançabilidade, pena de reclusão ou de insusceptibilidade de graça ou anistia são plenamente eficazes, sem dependerem de nenhuma outra ação estatal para produzir seus efeitos.

Quando, no artigo 5º, inciso XLII, a Constituição dispõe que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, evidencia-se que com relação à fiança e a prescritibilidade, a norma constitucional é autoaplicável, tornando dispensável uma análoga previsão legal. Uma vez definido o que vem a ser “prática do racismo”, esses efeitos aplicar-se-ão diretamente. [29]

Por outro lado, os mandados do art. 5º, inciso XLI; art. 7º, inciso X eart. 227, §4º dependem inteiramente de legislação ordinária para que tenham sua eficácia plena. Em outros termos, são disposições de caráter de eficácia limitada.


Capítulo III – O mandando de criminalização da prática do racismo.

1. Precedentes da inclusão no texto constitucional.

A emenda aditiva nº 654 do constituinte Carlos Alberto Caó foi a responsável pela inclusão da criminalização da prática do racismo nos termos da atual Constituição. A votação dessa proposta ocorreu na sessão de 2 de fevereiro de 1988, e a votação contou com apenas três votos contrários.

Ao apresentar a emenda para votação, Carlos Caó explicou os motivos determinantes para a elaboração dela:

Neste momento, Sr. Presidente, em que nos empenhamos em construir um Estado democrático, em trabalhar no sentido de transformar a sociedade civil brasileira numa sociedade civil civilizada é indispensável que tenhamos conta de que a construção do Estado democrático se inicia pela superação das discriminações raciais, pela superação desse tentativa de classificar o homem pela cor da pele no mercado de trabalho.[30]

A prática do racismo é criminalizada no artigo 5º da Constituição Federal, situado sob o Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. O referido dispositivo, por sua vez, representa a integralidade do Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, daquele Título.

Mais especificamente no inciso XLII do artigo em exame o legislador constituinte originário determinou ao legislativo pátrio a criminalização da prática do racismo, cujas características principais são a imprescritibilidade, a inafiançabilidade e a pena de reclusão.

E, tendo em vista a pluralidade de aspectos envolvidos na redação constitucional do art. 5º, XLII, passaremos a seguir para o esclarecimento das citadas características essenciais do mandado de criminalização em comento.

2.  As restrições constitucionais incidentes sobre a criminalização do racismo.

2.1.  A imprescritibilidade.

O instituto jurídico da prescrição é encontrado em diversos ramos do Direito, inclusive o direito penal. Em termos gerais, a prescrição tem como função determinar a ocorrência de efeitos jurídicos ao decurso do tempo.

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Em exame etimológico, tem-se que a palavra prescrição origina-se do latim “praescriptio”, do verbo “praescribere”, que expressa a idéia de escrever antes ou no começo. O surgimento do instituto da prescrição explica-se pelo anseio por segurança e estabilidade no Direito Romano, de modo que se acabasse o aspecto de perpetualidade, de falta de prazo para impetrar ações. Dessa forma, antes da demonstratio, os pretores escreviam um texto introdutório em que apontavam para o juiz se a ação fora ou não proposta dentro do prazo devido. (grifos nossos) [31]

No que tange à sua aplicação especificamente na esfera criminal essa figura é uma das formas de extinção da punibilidade, conforme disposto no art. 107, IV do Código Penal Brasileiro de 1940, sendo que os prazos prescricionais tem relação direta com a quantidade de pena abstrata das infrações penais (art. 109, CP).

A punibilidade é a possibilidade surgida para o Estado a partir do cometimento de um delito de punir o indivíduo responsável pela infração penal, através da imposição de uma sanção. Ocorre que a punibilidade compreende tanto a pretensão punitiva – que é a aplicação da pena que a lei prevê em abstrato, quanto a pretensão executória – consubstanciada na execução da pena concretamente aplicada.[32]

A prescrição, por sua vez, acarreta a “perda do direito-poder-dever de punir pelo Estado em face do não-exercício da pretensão punitiva (interesse em aplicar a pena) ou da pretensão executória (interesse em executá-la) durante certo tempo’. [33]

Em razão do momento em que a punibilidade é extinta pela prescrição, esta é chamada de prescrição punitiva ou prescrição executória. Em sua primeira forma, a prescrição acarreta a impossibilidade de uma decisão acerca do fato apontado como delituoso. Enquanto no último caso implica somente no não cumprimento da pena principal, imposta ao fim do processo criminal, com a subsistência das consequências secundárias da condenação, inclusive para fins de reincidência. [34]

Por sua vez, a imprescritibilidade indica ser possível ilimitada atuação estatal na persecução penal dos indivíduos. Entretanto, a prescritibilidade é a regra nos sistemas penais contemporâneos no mundo ocidental e é vista como uma garantia do indivíduo contra o Estado.

Na Constituição brasileira existem quatro menções à imprescritibilidade em geral. Na seara criminal, além da prática de racismo, também são marcados pela imprescritibilidade os crimes que envolvam a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático – art. 5°, XLIV.

Afora isso, são imprescritíveis os direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 231, parágrafo 4º, CRFB) e as ações de ressarcimento de danos ao erário (art. 37, parágrafo 5º, CRFB).

2.1.1.  Questões sobre novas possibilidades de imprescritibilidade

Questão controversa recai sobre o processo legislativo adequado para a instituição da imprescritibilidade em outros casos, ou seja, questiona-se a possibilidade de fazê-lo por meio de lei ordinária ou se seria exigível a elaboração de emenda constitucional.

O posicionamento de Christiano Jorge dos Santos, que entende pela capacidade do legislador de prever através de lei ordinária a imprescritibilidade em geral, baseia-se primeiramente na inexistência vedação constitucional expressa sobre o assunto.

Além disso, esse mesmo autor destaca como precedente favorável à tal linha de raciocínio a incorporação ao direito brasileiro do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, através do Decreto n. 4.388/02, como norma de cunho supralegal e infraconstitucional.

O TPI tem como competência o julgamento dos crimes internacionais previstos no citado Estatuto, de modo complementar à jurisdição nacional dos Estados signatários. Logo, o Tribunal somente atuará nos casos em que, por qualquer motivo, a jurisdição nacional não processar os indivíduos suspeitos.

O artigo 29 daquele documento é categórico ao afirmar que todos os crimes de competência do TPI são imprescritíveis, dentre os quais estão a tortura, o genocídio e os crimes de guerra. Os crimes internacionais nos termos do Estatuto são aqueles de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional como um todo.

A confusão suscitada pelo tema é evidenciada pelas iniciativas legislativas acerca da imprescritibilidade, existindo tanto projetos de lei ordinária quanto emenda constitucional para o estabelecimento de outras hipóteses penais de imprescritibilidade.

Por um lado, já tramitaram projetos de lei ordinária (e.g. n. 4458/2004, n. 5113/2001) na Câmara dos Deputados prevendo a imprescritibilidade para outros crimes. Por outro lado, tramita na Câmara atualmente proposta de emenda à constituição (PEC 229/2012) que torna imprescritíveis os crimes hediondos.

No Tribunal do Rio de Janeiro, a maioria dos processos nos quais se fez menção à imprescritibilidade penal contém a opinião de que somente aquelas hipóteses expressas na Constituição podem ensejar a inexistência de prescrição. Na ementa do julgado de uma apelação, afirma-se que:

As hipóteses de imprescritibilidade de crimes encontram expressa previsão nos incisos XLII e XLIV do art. 5º da Constituição Federal, que chamando a si o poder de elencar os respectivos delitos, excluiu a possibilidade de ampliação através da legislação infraconstitucional. Trata-se de garantia jurídica constitucional [...]. [35]

Mas, cabe destacar que a imprescritibilidade estabelecida por lei ordinária relativa ao direito civil não encontra resistência, inclusive tendo plena aplicação a ausência de prescrição para a ação negatória de paternidade (art. 1.601, caput, CC) e para o reconhecimento do estado de filiação (art. 27, ECA).

Além disso, existe caso de imprescritibilidade decorrente de entendimento jurisprudencial. Nesse sentido, o STJ já tem posição firmada de que as ações para reparação de danos morais por violação de direitos fundamentais é imprescritível como decorrência do princípio da dignidade humana (e.g. AgRg REsp 1056333).

2.1.2. A imprescritibilidade em outros Estados.

No âmbito do direito comparado observa-se que vários países possuem igualmente a figura da imprescritibilidade presente em seus ordenamentos jurídicos. Nesse grupo estão países como a Espanha, a Itália, a França, a Venezuela e o Paraguai, sendo que os dois últimos, assim como o Brasil, cuidam do tema em suas respectivas constituições.

O Paraguai tem como imprescritíveis os crimes de genocídio, tortura, desaparecimento de pessoas, sequestro e homicídio, conforme inscrito no art. 5° do Capítulo I do Título II, assim como a norma é reproduzida no Código Penal do país. [36]

A nação mais prolifica na determinação de crimes imprescritíveis é a Itália, com 26 (vinte e seis) delitos assim considerados [37]. Tal ocorrência significativa é fruto de uma regra prevista no art. 157 do Código Penal italiano, que determina não haver extinção dos crimes para os quais a lei prevê a pena de prisão perpétua.

Dentre eles estão os crimes de atentado contra a integridade, a independência ou a unidade do Estado, a destruição ou sabotagem de operações militares, espionagem política ou militar e insurreição armada contra o poder do Estado.

Cabe ainda ressaltar o caso particular referente aos Estados Unidos da América, no qual impera o sistema da common law onde a prescrição somente existe sobre a pretensão punitiva, inexistindo sua aplicação quanto à execução da condenação.

Nesse país, existem crimes de índole federal e outros de âmbito meramente estadual. Em relação aos últimos, os prazos prescricionais são determinados pelos próprios Estados. Como exemplo de imprescritibilidade tem-se o Ato Patriótico.

Como exemplo das mais recentes normas de imprescritibilidade e de regulamentação da prescrição no âmbito federal, tem-se o denominado “Ato Patriótico” (Patriotic Act), editado após os atentados terroristas de 11 de setembro, cujo título bem revela nitidamente sua índole.

Está prevista em sua Seção 809 a “ausência de prazo prescricional para determinados delitos de terrorismo”, dentro do Título VIII (Reforço das leis penais contra o terrorismo). [38]

2.1.3. Teorias justificadoras da prescrição.

As principais teorias que fundamentam a aplicação penal da prescrição são, segundo Christiano Jorge Santos [39], as seguintes: (i) teoria do esquecimento; (ii) teoria da expiação; (iii) teoria da emenda; (iv) teoria psicológica; (v) teoria das provas; (vi) teoria da ineficiência do Estado e (vi) a teoria da exclusão do ilícito.

Inicialmente, a teoria do esquecimento tem base no entendimento de que após certo período de tempo, o delito cometido já não mais é lembrado pela sociedade. E, em função disso, deixa de existir interesse social na punição da prática delitiva.

Por outro lado, a teoria da expiação indica que a longa duração de investigações ou processo criminais faz com que o indivíduo acusado seja confrontado com grande angústia em decorrência de sua reflexão sobre o ocorrido. Portanto, mais uma vez não haveria necessidade de aplicação da punição penal uma vez que a reflexão feita já causa suficiente sofrimento.

Já a teoria da emenda justifica a aplicação da prescrição devido à presunção absoluta de regeneração do autor do delito, caso o mesmo após um lapso temporal não voltasse a delinquir.

Outra teoria abonadora do instituto em discussão é a teoria psicológica, no bojo da qual se afirma que a estrutura psíquica do homem se altera com o passar do tempo. Com isso, seriam pessoas diferentes que praticariam o ato delituoso e depois seriam punidas por ele, embora se trate fisicamente do mesmo indivíduo.

Ainda existe a teoria das provas segundo a qual não seriam dignos de confiança os elementos de prova, especialmente os testemunhos, após certo tempo de modo que é impossibilitada a demonstração da imputação feita ao réu. Nesse sentido, deve-se evitar um processo inútil com a extinção da punibilidade.

Além disso, também há a teoria da presunção de ineficiência do Estado cujo argumento central é que a prescrição seria um ônus aplicado ao Estado tendo em vista a falha dos seus agentes em promover a persecução penal do indivíduo.

Derradeiramente, tem-se a teoria da exclusão do ilícito que entende ser o decurso do tempo capaz de retirar relevância de condutas infracionais de modo que elas passam a ser toleradas.

2.1.4. As tendências atuais da imprescritibilidade.

Não obstante a diversidade de teorias, todas elas apresentam pontos sujeitos a críticas e é justamente por isso que a imprescritibilidade não foi uma opção totalmente abandonada pelo legislador penal moderno. Dentre algumas das razões para a sua existência são de especial interesse os motivos para a sua adoção no cenário internacional.

A Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade adotada no âmbito da Organização das Nações Unidas, em 1968, no preâmbulo, afirma que os crimes tratados no documento se incluem dentre aqueles mais graves, que a repressão efetiva dos mesmos é um elemento importante para sua prevenção e proteção dos Direitos do homem e das liberdades fundamentais.

O tratado segue para asseverar que a repressão encoraja a confiança, a cooperação entre os povos e a paz e segurança internacionais. Além disso, a aplicação àqueles crimes das regras de direito interno relativa à prescrição dos crimes comuns ‘inquieta profundamente a opinião pública mundial porque impede que os responsáveis por esses crimes sejam perseguidos e castigados’.

A exemplo da ONU, a União Europeia produziu um documento, em 1974, a “Convenção Europeia sobre a não aplicabilidade da prescrição aos crimes contra a humanidade e de guerra”. No respectivo preâmbulo, é retomada a visão de que essas espécies de crimes são especialmente violadoras da dignidade humana e de que a punição dos seus perpetradores não pode ser impedida por prazos prescricionais.

Em suma, a adoção da imprescritibilidade para certos crimes internacionais tem base na necessidade de efetiva punição das infrações penais que causam maior gravame às vítimas e à sociedade como um todo. E a gravidade do delito tem estreita relação com o impacto que ele possui sobre os direitos mais básicos e fundamentais do ser humano.

A proteção dos direitos fundamentais através de sanções penais está inserida dentro de uma nova perspectiva na qual as tipificações criminais adquirem um perfil não mais meramente repressor, mas promotor dos valores mais importantes para a sociedade.

Embora não se possa afirmar que, em função disso, toda e qualquer ofensa a um direito fundamental deva ser criminalizada, a existência destes direitos se vocaciona, tendencialmente, à proteção penal. Essa proteção chega a ser indicada como critério de reconhecimento para os direitos fundamentais, como faz Häberle (2003, p. 44), observando que “(...) não se apresenta nenhum só direito fundamental que não esteja condicionado por leis penais” [40].

As mesmas razões poderiam ser invocadas para o entendimento das regras nacionais de imprescritibilidade. Conforme visto anteriormente, os diversos países que as têm, reservam-nas para incidência sobre crimes considerados mais graves.

Nesse sentido, vislumbra-se a ideia subjacente de que a existência da prescrição em relação a tais crimes constituiria um caminho perverso para a impunidade dos mesmos. A lógica, aliás, é a mesma que rege a determinação das penas das infrações penais, uma vez que quanto maior a percepção de gravidade de uma conduta, maior a pena cominada – o que por sua vez reflete diretamente no eventual prazo prescricional.

2.2. Fiança e Inafiançabilidade

A fiança, antes caução real, é atualmente uma medida cautelar diversa da prisão e atualmente tem previsão no Código de Processo Penal, especificamente no artigo 319, inciso VIII e parágrafo 4º e todos os artigos que compõem o Capítulo VI.

As disposições correntemente vigentes têm origem nas alterações trazidas pela Lei n. 12.403/11, que modificou significativamente o panorama legal acerca das medidas cautelares existentes no processo penal brasileiro, inclusive com a criação de novas espécies.

O principal objetivo dessa nova lei foi o desafogamento do sistema penitenciário brasileiro, pelo menos em relação aos presos provisórios, ou seja, aqueles que são recolhidos à cadeia antes do trânsito em julgado da sentença.

No que tange especificamente à fiança, o legislador revitalizou-a, a partir de uma regulamentação mais clara e harmoniosa com as normas constitucionais e outras normas processuais. Nesse sentido, sistematizaram-se os crimes que são inafiançáveis, conforme a CRFB. Ademais,

A contravenção da vadiagem (artigo 59 da LCP) deixou de ser motivo para a não concessão da ?ança. Na mesma cadência, em relação aos crimes que provoquem clamor público, bem como a circunstância de o agente se encontrar no gozo de suspensão condicional do processo ou de livramento condicional. [41]

Além disso, também foram feitas reformas quanto aos valores aplicáveis à quantificação da fiança, que foi consideravelmente ampliada. Ela pode ser estipulada em até cem salários mínimos para os crimes com pena não superior a quatro anos e tem o teto de duzentos salários mínimos para aqueles com pena superior a quatro anos.

Conforme se depreende do CPP, a fiança é uma medida cautelar diversa da prisão preventiva que visa assegurar o comparecimento aos atos do processo e evitar a obstrução do seu andamento, além de ser aplicável em caso de resistência injustificada à ordem judicial.

Essa medida cautelar pode ser aplicada pela própria autoridade policial nos casos de delitos cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos. Nos outros casos, somente é competente para tanto órgão pertencente ao Poder Judiciário.

A fiança é considerada quebrada quando o acusado (i) deixa de comparecer, sem motivo justo, a ato do processo para o qual foi intimado, (ii) pratica deliberadamente ato de obstrução ao andamento processual, (iii) descumpre outra medida cautelar imposta, (iv) resiste injustificadamente a ordem judicial e (v) pratica nova infração penal dolosa.

A fiança pode ser consubstanciada por objetos ou dinheiro, e quando ela se tem por quebrada injustificadamente, metade do valor da mesma é tido como perdido. Contudo, o valor é integralmente perdido caso o acusado não se apresente para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta.

Diante do quadro atual, a determinação constitucional de impossibilidade da estipulação de fiança para alguns crimes, inclusive o de prática de racismo, não causa impacto significativo no processo criminal ao qual os infratores ficam sujeitos.

Contudo, existe uma previsão constitucional que excepciona a inexistência de consequências práticas da inafiançabilidade. Conforme o art. 53, §2º da CRFB, desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.

Mas é preciso voltar atenção para o caput do mesmo art. 53 da Constituição, que prescreve que os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por suas opiniões, voto e palavras – ainda que somente quando no exercício da função parlamentar. Com isso, por exemplo, em caso de incitação de discriminação racial por político nessas circunstâncias não há que se falar em prisão em flagrante.

Com efeito, o acusado por crime de racismo escapa ao perdimento de bens ou dinheiro em caso de quebra de fiança, pois esta não pode ser aplicada. Sob esse aspecto, ele é submetido a um controle processual mais brando do que indivíduos acusados por outros crimes.

Nada obstante, impõe que se diga, a questão da concessão de fiança não é previsão das mais importantes. Isto porque, se é certo que um magistrado denegue arbitramento de fiança ao autor de crime de racismo, nada impede que lhe conceda a liberdade provisória, sem a fiança. Ou seja, sob a ótica pública, melhor seria (se for o caso de libertação) colocar à solta o suspeito com a fixação da garantia (fiança) do que livrá-lo sem ônus.[42](grifos nossos)

A importância da fiança enquanto único instrumento hábil a permitir a soltura do réu, em sede de apelação, se manteve enquanto a regra no processo penal brasileiro era o encarceramento dos acusados. De acordo com a redação original do art. 594 do CPP, o réu não poderia apelar sem se recolher à prisão ou prestar fiança.

A referida situação foi ligeiramente abrandada pela lei n. 5.941/73, conhecida como Lei Fleury. Esse diploma abriu uma exceção no sistema anterior, determinando que em caso de primariedade e bons antecedentes, o réu poderia apelar em liberdade.

Na sentença condenatória, o réu era mantido no cárcere, caso lá se encontrasse, mesmo que fosse primário e de bons antecedentes. E se estivesse solto, deveria ser decretada a sua prisão, salvo se o crime admitisse o arbitramento da caução ?ança. Na hipótese contrária, para apelar, deveria primeiro se recolher ao cárcere.

A prisão, de caráter nitidamente processual, era uma condição objetiva do recurso, por imposição do seu artigo 594: “O réu não poderá apelar sem recolher-se a prisão, ou prestar ?ança, salvo se condenado por crime de que se livre solto”.

Essa situação injusta, arbitrária e, sobretudo, autoritária, somente veio a ser abrandada com a edição da Lei nº 5.941/73, apelidada de Lei Fleury, a qual alterou aquele dispositivo legal e passou a permitir que o réu primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença, pudesse apelar em liberdade. [43]

Contudo, o art. 594 foi revogado pela lei n. 11.719/08, de modo que a regra é a possibilidade de recurso contra decisão condenatória em liberdade pelo acusado. Portanto, a inafiançabilidade do crime de prática de racismo não traduz qualquer circunstância gravosa para eventuais suspeitos.

O professor Eduardo Cabette analisa a situação da inafiançabilidade no direito brasileiro como fruto de um equívoco do legislador, propiciado em parte pela própria doutrina e pela jurisprudência. No seu entendimento, haveria uma confusão entre o instituto da fiança e o da liberdade provisória.

Percebe-se, de acordo com o exposto, que a doutrina em geral, embora certamente vislumbre, ao menos em sua maioria, a distinção existente entre os institutos da “fiança” e da “liberdade provisória com fiança”, não traduz com a devida clareza essa importante noção. A maneira muitas vezes confusa com que os conceitos são expostos é certamente fonte de equívocos interpretativos, especialmente aquele de pensar a fiança como um direito subjetivo do imputado quando é ela, na realidade, um ônus, sendo o verdadeiro direito aquele à liberdade provisória, que pode ser com ou sem fiança. [44]

Além disso, cabe registrar que o Supremo Tribunal Federal até pouco tempo atrás posicionava-se no sentido de que a inafiançabilidade prevista constitucionalmente indicava concretamente a impossibilidade de liberdade provisória nos casos assinalados pela Carta.

A alternativa de vedação à concessão de liberdade provisória ex lege poderia ser apontada como uma possibilidade para aqueles eventualmente pretendam evitar o esvaziamento da inafiançabilidade, na esteira do que prevê o art. 44 da lei n. 11.343/06, a Lei de Drogas.

Contudo, a exemplo do que ocorreu com a interpretação do STF quanto à identidade entre inafiançabilidade e impossibilidade de liberdade provisória, a Corte também já condenou previsões legais como da Lei de Drogas, devendo haver por parte do juízo uma avaliação da necessidade concreta do acautelamento processual do acusado.

De qualquer modo, por se tratar de decisões sem efeito erga omnes, já que proferidas em controle concreto de constitucionalidade, existem julgadores que aplicam normalmente a lei de Drogas e recusam a liberdade provisória aos réus com base em seu art. 44.

Não obstante, destaca-se que o Estatuto do Desarmamento foi considerado inconstitucional no seu art. 21, ao final do julgamento da ADI n. 3.112-1, por vedar a liberdade provisória em alguns dos crimes lá previstos.

2.3. A pena de reclusão

Primeiramente cabe esclarecer que, no sistema penal brasileiro são previstas as seguintes sanções penais: multa pecuniária, privação de liberdade e restritiva de direitos. Como um tipo impróprio de pena, tem-se a medida de segurança, que é aplicada aos maiores de idade penalmente inimputáveis.

Dentre as penas privativas de liberdade, existem três tipos, quais sejam, a pena de reclusão, pena de detenção e prisão simples. Sendo que esta última somente tem aplicação no que tange às contravenções penais, devendo ser cumprida sem rigor penitenciário e com impossibilidade de regime fechado mesmo em caso de regressão.

A diferença entre a pena de reclusão e a de detenção reside nas categorias de regimes de encarceramento aplicáveis, sendo que na reclusão podem ser impostos os regimes fechado, semiaberto e aberto. Já na detenção, o regime fechado é inaplicável, a não ser em hipótese de regressão.

O art. 33 do Código Penal, em seu parágrafo 1º define que (i) no regime fechado a execução da pena ocorre em estabelecimento de segurança máxima ou média, (ii) no regime semiaberto a execução da pena se dá em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar e (iii) no regime aberto a execução da pena é realizada em casa de albergado ou estabelecimento adequado.

A determinação do regime inicial de cumprimento da pena é feita segundo os critérios apontados no parágrafo 2º do mesmo art. 33 do CP. De forma que, o regime fechado é aplicável ao condenado a pena superior a oito anos.

Já o condenado não reincidente cuja pena seja superior a quatro anos, mas inferior a oito pode ter como regime inicial o semiaberto. Por fim, o condenado não reincidente com pena igual ou inferior a quatro anos pode cumpri-la em regime aberto.

No entanto, cumpre ressaltar que a legislação em questão determina ao juiz uma obrigatoriedade de aplicação do regime fechado para os apenados a mais de oito anos (art. 33, §2º, a, CP), enquanto, apenas faculta ao magistrado a aplicação dos regimes semiaberto e aberto nos outros casos (art. 33, §2º, b, c, CP).

Com isso, é possível que mesmo diante do preenchimento dos requisitos exigidos no citado art. 33, §2º, o juiz entenda ser mais adequado o emprego de regime inicial mais gravoso, se possível. Contudo, o julgador necessita elencar razões para tanto, particularmente apoiado nas circunstâncias elencadas no art. 59 do CP.

Em decorrência disso, as pessoas que cometem crimes para os quais é apontada a pena de reclusão, ficam expostas ao regime fechado como modo de cumprimento inicial da pena, no qual nenhum tipo de saída do cárcere é possível. Logo, esses indivíduos estão sujeitos, em tese, a um cumprimento da sanção penal mais rigoroso.

Cabe destacar, contudo, que em princípio, nenhum crime de cunho racista está sujeito a um montante de pena maior do que oito anos. Logo, dificilmente a obrigatoriedade imposta pelo art. 33, §2º CP, terá lugar na determinação pelo magistrado do regime fechado.

As únicas hipóteses para a aplicação do citado dispositivo seria em função da existência de concurso formal, material de crimes ou aumento por continuidade delitiva. Além disso, o mesmo ocorreria em condenação pelo crime de redução à condição análoga à de escravo motivado por preconceito, no qual o aumento previsto incidisse sobre pena superior cinco anos e quatro meses.

2.4.  Considerações gerais sobre as restrições constitucionais.

Diante do até aqui exposto sobre as características constitucionais do crime de prática de racismo, cristaliza-se a intenção do constituinte de reprovar veementemente as condutas discriminatórias de cunho racial. Porquanto, procurou, por um lado, assegurar o exercício da ação penal sem limitação temporal e, por outro, submeter eventuais condenados a um cumprimento mais rigoroso da pena.

Não obstante, a grandiosidade da intenção da norma constitucional, a aplicação prática do texto encontra óbices na realidade do processo penal. Primeiramente, destacam-se as limitações vistas quanto à inafiançabilidade enquanto instrumento para assegurar a efetividade do processo a que se submete o infrator.

Além disso, há que se destacar que a cominação de pena de reclusão, por si só, não garante necessariamente que o réu seja submetido a um regime inicial fechado. Especialmente considerando-se os parâmetros elencados no art. 33, §2º do CPP e a quantidade das penas previstas na lei n. 7.716/89.

Em suma, a disposição que se revela como a mais relevante sobre o assunto é relativa à imprescritibilidade do crime de racismo. Com efeito, essa característica desse tipo de delito, oferece ao Estado uma capacidade de persecução penal que se mostra excepcional no atual quadro da legislação brasileiro, visto ser a prescrição a regra.

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Sobre a autora
Letícia França Corrêa

Bacharel em Direito pela Puc-Rio Ex-bolsista CNPQ em direito constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Letícia França. Racismo: reflexões sobre as restrições constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3865, 30 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26568. Acesso em: 8 mai. 2024.

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