Artigo Destaque dos editores

Juros de mora e suspensão da exigibilidade do crédito tributário

01/02/2002 às 01:00
Leia nesta página:

Neste breve estudo pretendo analisar a validade, o sentido e o alcance das normas tributárias que exigem de juros de mora pelo descumprimento de obrigações tributárias durante o período em que há suspensão da exigibilidade do crédito tributário na forma do art. 151 do Código Tributário Nacional - CTN. As discussões e conclusões a seguir apresentadas partem do pressuposto de que os juros de mora constituem espécie de sanção penal que incidem quando há violação de uma obrigação ou proibição.

É extreme de dúvidas que os juros de mora, cuja exigência por lei encontra fundamento de validade no art. 161 do CTN, são penalidades na medida em que são exigidos com finalidade sancionatória. De fato, as normas que os exigem incidem sempre que ocorre uma não-prestação ou, o que é o mesmo, quando há violação de uma norma que exige que os tributos sejam pagos até determinada data. As normas jurídicas que impõem a obrigação de pagar aqueles juros têm a antijuridicidade por pressuposto porque: a) só incidem se há violação de uma outra norma, a que estabelece a obrigação de pagar até certo prazo; e, ao mesmo tempo, b) ofende o direito estatal de arrecadar tributos.

Os juros de mora decorrem do retardamento da prestação devida. Eles não visam, como se pode supor à primeira vista, uma recomposição patrimonial pelo uso do capital alheio. Os juros remuneratórios pelo uso do capital alheio pressupõem a autorização legal (inclusive contratual, portanto) daquele uso, o que depende das circunstâncias fáticas que nada têm em comum com os juros de mora exigidos pela não prestação. Se admitirmos, por hipótese, que esse uso existe, trata-se de um uso não autorizado, obtido por violação de norma jurídica que dá guarida ao direito de exigir tais juros. Assim, do ponto de vista estrutural e teleológico, os juros de mora são penalidades pelo retardamento do cumprimento da obrigação ou pela utilização indevida do capital alheio. Os juros eventualmente exigidos pela utilização autorizada do capital alheio são "juros compensatórios", os quais não estão previstos no art. 161 do CTN, e a sua previsão normativa depende de lei complementar em face do art. 146 da Constituição Federal – CF.

O fato de uma sanção ser qualificada como civil, tributária, administrativa, etc não lhe retira o caráter penal porque o ilícito é um só. Uma sanção pode ser classificada de muitas maneiras, sob diversos rótulos, a partir de diferentes sistemas de referência ou pontos de vista, mas ela continuará a ser o que é: uma sanção. Uma sanção pode ser justificada sob diferentes perspectivas teóricas, mas ela não muda ao sabor das teorias, ela é um conceito fundamental de toda teoria jurídica. Toda sanção negativa (pena) é uma conseqüência da violação de um dever-ser normativo, ou, dizendo de outro modo, representa a conseqüência de uma ação ou omissão considerada ilícita ou antijurídica.

A imposição de uma penalidade requer ilicitude ou antijuridicidade. Pena, em sentido amplo, significa qualquer conseqüência imposta pela lei ou cláusula de contrato que implica em castigo ou privação de um bem jurídico do infrator. Há um princípio geral de direito segundo o qual a estipulação normativa de uma penalidade, qualquer que seja ela, requer ofensa a um bem jurídico tutelado por regras e princípios. Logo, definir o que pode ser penalidade é matéria que não está à livre disposição ou valoração do legislador, posto que o campo material de uma norma penal é delimitado pela idéia de antijuridicidade, a qual ocorre sempre que há uma ofensa a um bem jurídico protegido por outras normas (regras e princípios) ou violação de um dever-ser representado pela conduta contrária (se outra não for exigível) ao estabelecido em norma que impõe uma obrigação ou uma proibição. Além da antijuridicidade, a validade de uma norma penal requer um mínimo de culpabilidade, que vem a ser a capacidade de entender o que é ilícito e as suas conseqüências. Logo, não é o nome que identifica uma sanção negativa, mas sim o fato de ela representar uma conseqüência decorrente da ofensa ou violação do dever-ser.

Nas comunidades cuja organização e funcionamento são governados pelo direito (Estado de Direito), a validade da aplicação de sanções não depende apenas de uma anterior qualificação legal delas; é necessário que a sanção seja, de qualquer forma, ofensiva a um bem jurídico tutelado ou um direito subjetivo. Esse é um princípio geral de direito que perpassa todo o direito positivo que protege a liberdade e o patrimônio das pessoas, como convém a um Estado de Direito. Se não existisse esse limite material, penalidades poderiam ser impostas em quaisquer circunstâncias, segundo a vontade e arbítrio do legislador e é isso irremediavelmente absurdo.

Diante do exposto surge a questão nuclear deste estudo: Pode a lei tributária exigir juros durante o período da suspensão da exigibilidade do crédito tributário? A resposta será positiva (sim) se a falta de pagamento do tributo devido, naquele período, puder ser enquadrada como violação da norma que estabelece a obrigação de pagar. Por outro lado, a resposta será negativa (não) se a falta de pagamento não for exigível, isto é, não constituir violação da referida obrigação de pagar.

As causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário previstas no art. 151 do CTN impedem a exigência da dívida. De fato, o advento da causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário produz um importante efeito no mundo jurídico: ela torna inexigível - ainda que por algum tempo - o cumprimento da obrigação tributária. Ora, se no período da suspensão da exigibilidade do crédito tributário a prestação não é devida –porque não exigível –, não há mora e, portanto, não há violação da norma que determina a obrigação de pagar o tributo e não há ofensa ao direito subjetivo do sujeito ativo da relação jurídica tributária. Se não há ilicitude não é possível a exigência de penalidade que, como visto, só pode ser imposta se houver a ilicitude. Se o sujeito passivo tem o direito subjetivo de não pagar, por força da norma que decreta a suspensão da exigibilidade, a ele não pode ser imputada uma falta ou uma violação de um dever porque inexistente.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Durante o período da suspensão da exigibilidade do credito tributário vige uma norma que estabelece uma nova relação jurídica, diferente da anteriormente formada com a ocorrência do fato gerador. Tal norma inibe o direito que o sujeito ativo tem de exigir (amigavelmente ou por intermédio de execução forçada) o quantum devido e, de outro lado, garante ao sujeito passivo o direito subjetivo de não pagar o montante em discussão. Logo, durante o período de vigência da norma que determina a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, a falta de pagamento (por não ser ele exigível) não constitui ato ilícito e, em decorrência, não pode ser sancionável pela exigência de juros de mora.

Em face do exposto, parece claro que a exigência de juros de mora durante o período da suspensão da exigibilidade do crédito é inválida porque contraria os dispositivos do art. 151 do CTN e ofendem, a não mais poder, o cerne dos princípios que consagram o Estado de Direito.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Edmar Oliveira Andrade Filho

advogado em São Paulo, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Juros de mora e suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2686. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos