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Limites do controle jurisdicional das políticas públicas

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3. O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

3.1 – Capacidades institucionais do Judiciário

O princípio da separação dos poderes, fulcrado na idéia de que a concentração favorece o arbítrio, determina a divisão do poder político em múltiplos setores estatais, titularizados por diversos atores. Busca-se, nas palavras de Felipe de Melo Fonte, viabilizar “a realização do projeto democrático de autogoverno de um povo, protegendo-o contra a tirania minoritária”[22].

As funções separadas também se prestam a resguardar os direitos fundamentais, na medida em que buscam impedir a violação dos direitos de uma minoria por uma maioria dominante. “De nada vale a contenção do arbítrio de um órgão ou indivíduo se o aparato estatal estiver a serviço de uma tirania majoritária”. O princípio da separação de poderes assume, assim, uma posição de destaque “na delicada função de garantir o equilíbrio entre minorias e maiorias na direção das decisões públicas”[23]. Neste contexto, o Poder Judiciário assume uma atuação de relevo no resguardo das minorias.

Outro aspecto importante do princípio relaciona-se com a especialização funcional das atividades estatais, recomendando-se a prevalência da competência técnica. Ou seja, as tarefas públicas devem ser desempenhadas precipuamente por aqueles órgãos que estejam mais adequadamente estruturados, de modo a realizá-las da forma mais eficiente e racional, alcançando as melhores soluções possíveis.

A especialização funcional inclui, tradicionalmente, a titularidade, por cada Poder, de determinadas competências privativas, além de competências não exclusivas, as quais se relacionam com a produção de normas gerais e abstratas pelo Legislativo, a aplicação do direito aos conflitos concretos pelo Judiciário, quando provocado para tanto, e a execução das leis pelo Executivo.

Em determinadas circunstâncias, no entanto, ocorre uma sobreposição de funções estatais, como no caso das políticas públicas, que, para além da atuação do executivo e legislativo, tem-se uma nítida expansão do controle do Judiciário sobre a matéria.

O ponto a se indagar é se este Poder possui condições institucionais adequadas ao controle que vem exercendo, tendo em conta que “não raras vezes a decisão judicial representará antecipação de questões que deveriam ter solução coletiva pela via legislativa, atropelando os procedimentos parlamentares tendentes à tomada de decisões públicas”[24].

Primeiramente, é preciso apresentar as reais condições da Instituição Judiciária, desfazendo a visão fantasiosa e excessivamente otimista em relação a este Poder decorrente do crescente descrédito do processo político.

Um primeiro aspecto a ser abordado diz respeito à limitação do Judiciário na implementação do direito à participação popular, que nunca terá a mesma dimensão alcançada no processo político. Este sim tem “a capacidade de operacionalizar o acesso dos grupos políticos e dos indivíduos às decisões públicas”[25]. Observando que os recursos são escassos e, por conseguinte, nem todas as demandas poderão ser atendidas, parece imprescindível que as pessoas afetadas pelas decisões políticas possam intervir em igualdade de condições.

O processo judicial, vinculado que está ao formalismo dos procedimentos, não viabiliza a participação em igualdade de condições dos diversos setores sociais nas discussões públicas, os quais ficam impedidos de apresentar soluções várias para as questões que compõem a agenda institucional, extirpando, assim, uma etapa fundamental do ciclo democrático.

Não olvidando que algumas medidas, tais como a realização de audiências públicas e perícias, admissão do amicus curiae, entre outras, podem atenuar este déficit na participação popular, a verdade é que as ações judiciais permanecem sendo uma via deficiente[26].

Cabe ainda destacar que o acesso ao Judiciário demanda custos financeiros (advogado e custas processuais) e disponibilidades (longos anos para que o processo chegue a termo) que nem todos podem suportar. Aquele que puder arcar com estes entraves acaba por ter vantagens em relação àqueles que não podem, caracterizando afronta ao princípio da isonomia.

Outro ponto nodal, relaciona-se com a capacidade técnica dos demais poderes na tarefa de decidir a respeito de políticas públicas. Felipe de Melo Fonte afirma que “é evidente que a Administração Pública possui todo o quadro da burocracia, composto por técnicos de inúmeras áreas, à sua disposição, o que viabiliza o desenho de políticas públicas capazes de dar tratamento sistêmico a uma questão”[27].

Na mesma linha sustenta Nicola Tutungi Júnior, o qual descreve que, ao menos em tese, “a Administração Pública é dotada de profissionais técnicos qualificados capazes de demonstrar através de estudos, laudos, pesquisas, fórmulas e outros critérios como será viabilizada determinada política pública”[28]. Complementa sua abordagem mencionando que o Judiciário não possui o aparato nem a competência técnica para tanto, ressaltando que a complexidade de tais ações demanda para além da prova pericial realizada em Juízo, sendo, muitas vezes, necessária a complementação com estudos dos órgãos públicos responsáveis.

Daniel Sarmento também defende que as políticas públicas dependem de conhecimentos específicos para a sua formação e implementação, esclarecendo que os Poderes Legislativo e Executivo “possuem em seus quadros pessoas com a necessária formação especializada para assessorá-los na tomada das complexas decisões requeridas nesta área, que freqüentemente envolvem aspectos técnicos, econômicos e políticos diversificados”. Em contraponto, destaca que os magistrados não possuem, na maioria dos casos, “conhecimentos especializados necessários, nem contam com uma estrutura de apoio adequada para a avaliação das políticas públicas”[29].

Por conseguinte, imprescindível é o autorreconhecimento dos magistrados no sentido de que existem matérias sobre as quais não possuem capacidade técnica suficiente à promoção da solução adequada, evitando, assim, decisões arbitrárias que acabam por violar a separação dos poderes, como ocorre em muitas questões que envolvem políticas públicas.

Não obstante a importância desta tomada de consciência do Judiciário, oportuna a extensão da crítica aos demais Poderes quando se depara com a realidade existente. O aparato mais estruturado à formulação e implementação das políticas conferido à Administração e ao Legislativo pode perder a sua funcionalidade quando desvirtuado através do preenchimento de cargos que fogem ao mérito e a técnica, ou que não observem uma certa continuidade na sua ocupação, constituindo uma burocracia inerte e/ou ineficiente às finalidades públicas mais prementes[30].

Ainda na seara da limitação técnica, pode-se levantar que o Judiciário tende a visualizar apenas os efeitos imediatistas do caso concreto, tornando seu ofício limitado a uma microjustiça. Ou seja, o magistrado ao decidir uma causa posta a sua apreciação não busca analisar os efeitos sistêmicos no ordenamento causados pela solução adotada. Não se verifica vontade nem aptidão técnica que possibilite uma análise conjunta ou um tratamento sistêmico da questão.

Vale transcrever as ilações desenvolvidas por Nicola Tutungi Júnior[31]sobre o tema em debate:

A repercussão social e global de uma decisão nem sempre é vista quando o julgador, adstrito às paredes de seu gabinete, interpreta e aplica o direito de acordo exclusivamente com os limites de suas atribuições (v.g., ao adotar medidas energéticas por conta de um descumprimento de ordem judicial sua quando, em verdade, já há milhares de decisões a serem igualmente cumpridas, proferidas por diversos juízos em casos de massa e que dependem da disponibilização de recursos públicos para tanto, ou ainda, quando determina o seqüestro de verbas públicas), sem tentar minimamente entender o funcionamento do Estado Administração as dificuldades concretas de seu funcionamento (evidentemente, tal raciocínio não se aplica aos atos administrativos viciados, ou escolhas que não são meramente equivocadas, mas por vezes até ilegais).

Citando as sugestões, em matéria de políticas públicas, do professor americano Mark Tushnet, Felipe de Melo Fonte aponta a dificuldade judicial de “ver o todo”, esclarecendo que, apesar da existência de algumas teses jurídicas que confiram certa legitimidade para abordá-las, “ainda assim eles não teriam a necessária visão de conjunto que permitisse dar tratamento sistêmico às políticas públicas voltadas aos direitos prestacionais”. Conclui, exemplificando que, quando um juiz fornece um medicamento ou determina a internação de um doente em um dado hospital público, “acaba por retirar o dinheiro correspondente a estas prestações de outras finalidades públicas, causando prejuízos a todo o sistema”[32].

Apreciações macroestruturais, no entanto, são fundamentais na formação e estruturação das políticas públicas, posto que garantem o acesso isonômico dos bens e serviços públicos, os quais serão distribuídos de forma priorizada e planejada por toda a sociedade. As políticas públicas envolvem questões de justiça distributiva, de natureza multilateral, incompatível, pois, com a dinâmica dos processos judiciais, “estruturados com foco nas questões bilaterais da justiça comutativa, em que os interesses em disputa são apenas aqueles das partes devidamente representadas”[33].

Na realidade posta de escassez de recursos, assegurar a uma determinada parcela da sociedade, notadamente àquela que provocou a tutela jurisdicional, parte deste montante, significa retirar recursos do bolo que serve aos demais e de uma forma não isonômica[34].

Outra questão que merece relevo, frente ao crescimento do controle judicial sobre políticas públicas, diz respeito à estrutura complexa e dispendiosa exigida para o funcionamento do Poder Judiciário. Este Poder demanda um corpo enorme e caro de funcionários públicos, além de uma infraestrutura de grande porte. “O Legislativo Federal, para efeitos de comparação, custa anualmente cerca de 25% (vinte e cinco por cento) do Poder Judiciário Federal”[35].

Felipe de Melo Fonte ressalta que, apesar da Administração Pública também ser fonte de grandes gastos, estes se justificam na medida em que direcionados à realização da atividade-fim do Estado, com a entrega de serviços e bens à sociedade[36]:

Como se infere do exposto, a ampla judicialização de políticas públicas não é positiva do ponto de vista sistêmico, pois drena dinheiro que já é escasso de atividades-fim do Estado para uma atividade-meio. A administração judicial de políticas públicas provoca o inchamento do Poder Judiciário, causando desvio de verbas públicas que poderiam ser canalizadas para a melhoria do bem-estar dos cidadãos, se os conflitos fossem dirimidos politicamente.

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O contraponto que se realiza é que se mostra mais razoável vultosos gastos com a entrega de prestações à população do que com atividades instrumentais como a do Judiciário.

Importa considerar também a atuação mais independente dos magistrados frente à opinião pública, decorrente da sua necessária imparcialidade no julgamento das questões postas a sua apreciação. O Poder Judiciário deve manter um comportamento alheio às questões políticas, não devendo oscilar às mudanças de preferências dos eleitorados. Esta postura gera reflexos no processo judicial de diferentes matizes, principalmente quando envolve políticas públicas: não há uma preocupação em buscar maiores informações para a instrução do processo, além daquelas fornecidas pelas próprias partes que compõem a demanda, e não há uma verificação do impacto das decisões judiciais no planejamento público[37].

Em suma, os magistrados possuem um papel mais independente em relação à opinião pública que os membros das demais instituições, de modo que nem sempre respondem adequadamente às exigências da comunidade, seja por não atender aos seus anseios mais iminentes, posto que focado no caso concreto individualizado, seja por não viabilizar a política pública de forma ordenada e planejada.

Procurou-se, assim, demonstrar algumas deficiências da Instituição Judicial concernente ao controle de políticas públicas, sob o aspecto da separação de poderes, buscando desconstruir a visão eufórica e fantasiosa da ação deste Poder como a solução posta de todas as mazelas sociais.

Inobstante todas as dificuldades apontadas, não se pode olvidar que, sob o ponto de vista social, existe uma enorme dificuldade na percepção da divisão funcional dos Poderes. O Estado é uno perante a sociedade e esta espera a realização dos seus direitos pelo Poder Público, independentemente, dele se apresentar como o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. De fato, os Poderes são interdependentes e a atuação conjunta e dialogal, como se verá mais à frente, mostra-se muito mais profícua ao atingimento das finalidades públicas. As deficiências de cada Poder, como se levantou no caso específico do Judiciário, apenas reforçam esta idéia e demonstram que as soluções obtidas através de uma atuação isolada são em sua maioria insatisfatórias.

Bruce Ackerman, argumentando contra a manutenção da tríade tradicional, desenha um novo formato para a Separação dos Poderes ao propor a criação de novas instâncias de poder que teriam a função de frear o Poder central, promover os direitos democráticos e a justiça distributiva[38].

Questiona-se, nesta esteira, na mesma linha do autor citado, a criação de outras instâncias de poder no desiderato de suprir as dificuldades consideradas neste capítulo e/ou atuarem como parceiras técnicas no desenvolvimento e controle de políticas públicas. A clássica separação dos poderes deve ser revisitada, principalmente, quando se coloca em questão a necessária cooperação dos Poderes e o auxílio de outras instâncias para a realização dos direitos fundamentais.

3.2. Direitos fundamentais. Defesa das minorias. Alguns parâmetros delineados pela doutrina

Apesar dos entraves relacionados à capacidade institucional do Judiciário, é válido ressaltar seu papel fundamental na proteção das minorias estigmatizadas, representadas, normalmente, por grupos de pouca expressão política, as quais podem ser relegadas a um segundo plano ou mesmo desconsideradas na agenda estatal. “Neste passo, o controle jurisdicional de políticas públicas poderá ter importante papel para resguardar a posição destas pessoas mesmo contra maiorias adversas e ainda exigir a implementação de ações específicas”[39].

Seguindo a mesma lógica, Daniel Sarmento defende que “o processo político majoritário não costuma ser um ambiente institucional ideal. Aqui, o relativo insulamento do Judiciário diante das pressões das maiorias sociais, bem como seu ethos profissional de defesa dos direitos são bons argumentos para justificar uma postura mais ativista”[40].

Nestes casos, nos quais o Poder Judiciário possui um papel ativo e decisivo na concretização da Constituição, Luís Roberto Barroso recomenda alguns parâmetros de atuação, como a preferência de ações coletivas ou de caráter abstrato, que assegurem uma análise sistêmica da política pública em jogo para a alocação de recursos e definição de prioridades[41].

De fato, os legitimados envolvidos (Ministério Público, entes estatais, associações etc.) têm a potencialidade de promover um debate qualificado, na medida que trazem à discussão dados como custo médio da medida a ser adotada, motivação das prioridades e escolhas, quantificação dos recursos disponíveis como um todo. Já os efeitos erga omnes, decorrentes do manejo destas ações, permitem uma distribuição mais isonômica dos bens e serviços básicos aos jurisdicionados.

Pontua o professor que a ação judicial deve se limitar às hipóteses de ausência de lei ou omissão administrativa que concretize a Constituição, ou em casos de lei ou atos administrativos que não são devidamente cumpridos, caso contrário, o magistrado deve adotar uma conduta contida e parcimoniosa.

Como políticas públicas envolvem princípios e direitos fundamentais que, em sua maioria, possuem caráter de cláusulas gerais, comportando uma multiplicidade de sentidos, a extração de deveres jurídicos deve ocorrer num contexto “de omissão dos Poderes Públicos ou de ações que contravenham a Constituição. Ou, ainda, de não atendimento do mínimo existencial”[42].

Verificam-se, ainda, entendimentos mais conservadores que limitam a medida jurisdicional, em contextos de ausência de lei ou omissão administrativa, à obrigação de, tão-somente, formular a política pública e não o efeito ou produto desta. Esta postura mais restritiva traz algumas vantagens, tais como, respeito à especialização original de funções, superação do déficit de expertise, prestigiam-se os mecanismos democráticos de formulação das escolhas públicas, e, conseqüentemente, a separação entre os Poderes[43].

Delineando o pensamento acima citado, Vanice Regina Lírio do Valle[44], ressalta que o papel do Judiciário, nesta hipótese, é a de indução de que o agir omisso da Administração ou do Legislativo seja redirecionado às premissas constitucionais estabelecidas, de forma que eles próprios formulem e implantem as políticas públicas faltantes:

Importante perceber que a atuação do Judiciário como arena de construção dialógica da agenda de prioridades de ação da Administração pode permitir ainda que esse caminho de controle do poder, ao invés de revelar atentatório ao princípio da representação, apresente-se a seu serviço – não da representação no sentido clássico, provida através do voto, mas daquela que encontra vez e voz através das estruturas de organização de distintos segmentos sociais ou de interesses. A pedra de toque estará no reconhecimento, pelo Judiciário, de que seu papel não é – nem nunca poderá ser – substitutivo, mas sim de indução do desenvolvimento regular, pelas estruturas institucionais previstas na constituição, dos misteres de cada qual.

Outras posições sustentam o minimalismo como regra geral para o controle judicial de políticas públicas. A conduta minimalista se caracteriza pela limitação da decisão judicial à menor extensão possível, de modo a não engessar os canais decisórios democráticos, defende-se também a vinculação aos conteúdos jurídicos já densificados na Constituição ou na lei, priorizando as regras sobre os princípios e a adoção do método interpretativo literal sempre que possível[45].

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSENDEY, Maria Clara Moraes. Limites do controle jurisdicional das políticas públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3939, 14 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27503. Acesso em: 7 mai. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada, como requisito para a obtenção do título de Pós-graduada, ao Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Advocacia Pública, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Advocacia Pública.

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