Transporte público e toque de recolher: mobilidade urbana e inclusão social

07/04/2014 às 12:06
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O presente trabalho tem por objetivo compreender o conceito de mobilidade urbana que norteia a política de governo do município de Salvador; analisar as condições atuais do Transporte Público em Salvador e as suas implicações no desenvolvimento social.

  1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo trata da problemática do transporte urbano em Salvador, abordando de forma crítica a questão da mobilidade urbana e inclusão social na conjuntura atual, considerando os fatores históricos e as políticas de governo para a cidade.

O conceito política de governo é entendido aqui não como políticas da esfera estadual simplesmente, mas toda política dos gestores municipais, e também aquelas que resultam de parceria entre estes e o governador do Estado, mas num espectro macro como política transitória que se contrapõe ao conceito de política pública de estado.

A pesquisa foi realizada tendo como metodologia a apreciação de fontes bibliográficas, pertinentes à temática, discussões e construção de síntese crítica pelo grupo de trabalho. As questões norteadoras compõem os seguintes objetivos: a) Compreender o conceito de mobilidade urbana que norteia a política de governo do município de Salvador; b) Analisar as condições atuais do Transporte Público em Salvador e as suas implicações no desenvolvimento social e econômico da população; c) Avaliar as implicações do acesso aos serviços públicos e da cidade em decorrência da mobilidade urbana; d) Refletir sobre as propostas do setor de transporte de Salvador para o enfrentamento imobilidade urbana.

A partir da análise do estudo do professor Sampaio, sobre o desenvolvimento do urbanismo moderno de Salvador, é possível compreendermos que a forma urbana revelada pela cidade atualmente é produto de:

(...) práticas assentadas nas ‘atividades capitalistas especulativas’ emergirá a cidade moderna, fragmentada, numa ação combinada entre segregação espacial e especulação imobiliária. Eis aí parte da chave do entendimento da lógica dos movimentos que determinarão a nova forma-urbana na etapa seguinte: a industrialização moderna propriamente dita, alavancada pelo Estado[1].

 

A tipologia de ocupação de Salvador, segundo o referido professor revela que na luta de poder pela cidade vence quem detém o capital, verifica-se a reprodução do status quode quem pode mais.

  1. TRANSPORTE PÚBLICO E AS IMPLICAÇÕES NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO DAPOPULAÇÃO DE SALVADOR

O sistema de transporte urbano de Salvador foi pensado sob a ótica baseada no modal automotivo individual, em vias centrais ligando o centro tradicional (Avenida Sete e adjacências), ao novo centro (Iguatemi-Paralela), estruturado com vistas num desenvolvimento concentrado numa área de comércio em franca expansão e margeada por unidades habitacionais, com serviços de alto padrão capitaneadas pelos shopping centers.

Milton Santos em seu livro A urbanização brasileira, descrevendo a caótica organização interna das cidades brasileiras:

¨As cidades, e sobretudo as grandes, ocupam, de modo geral, vastas superfícies entremeadas de vazios. Nestas cidades espraiadas, características de uma urbanização corporativa, há interdependência do que podemos chamar de categorias espaciais relevantes desta época: tamanho urbano, modelo rodoviário, carência de infraestruturas, especulação fundiária e imobiliária, problemas de transporte, extroversão e periferização da população, gerando , graças às dimensões da pobreza e seu componente geográfico, um modelo específico de centro periferia... O modelo rodoviário urbano é fator de crescimento disperso e de espraiamento da cidade.¨(SANTOS, 2009, p.106),

 

O transporte público urbano limitou-se em Salvador, a estações encravadas em áreas de dispersão (Lapa, Pirajá, Mussurunga, Rodoviária), com o modal unificado no ônibus. Abandonou-se o sistema trem, limitado a pequeno e crítico trecho Calçada-Paripe.

Em linhas gerais, o ônibus é o modal que transporta o soteropolitano no dia-a-dia, de forma precária, desconfortável e às vezes perigosa.

Salvador, juntamente com Recife e Fortaleza são metrópoles nacionais, segundo a classificação hierarquizada da rede urbana brasileira do IBGE.

Nas gestões políticas e administrativas de cerca de seis décadas pretéritas, baseada num modelo pontual de política urbana, seletista e especulativa, as grandes vias como Paralela, Acesso Norte, Suburbana, BR.324, Cajazeiras, atendeu a dois apelos: o eixo Iguatemi-Aeroporto e expandir as vias para os conjuntos habitacionais populares da URBIS-BNH-INOCOOP para os bairros recém criados para abrigar as populações expurgadas da revalorização do velho centro Pelourinho-Sé.

Nessa política de abertura de vales, viadutos e acessos, o planejamento estratégico ficou em segundo plano. De vez em quando se alimentava o discurso do bonde, do Veículo Leve sobre Trilhos e recentemente do metrô, chamado por muitos de ¨calça curta¨.

Segundo Paulo Henrique de Almeida na análise da economia de Salvador e a formação de sua Região Metropolitana, a valorização do circuito Iguatemi-Pituba com a priorização da orla atlântica para os empreendimentos turísticos, a população de baixa renda ¨tratou de ocupar a orla suburbana da Baía de Todos os Santos, do eixo da BR.324 e do miolo ( os bairros proletários entre dois vetores de expansão, a BR e a avenida Paralela), por uma imensa massa de habitações construídas sem licença oficial, em vales insalubres, encostas e palafitas.¨(2008, p.40).

As vias desenhadas sobre morros e vales estreritos ou estreitados pela especulação imobiliária, atenderam a uma Salvador de vinte anos atrás. A Salvador de hoje com um volume de tráfego asfixiante, engarrafamentos sem hora marcada, frota de ônibus envelhecida e insuficiente, requer uma engenharia de tráfego modernizada e uma política de transporte público baseada em multimodais (trem, metrô, automóvel, e aquáticos...), Salvador e entorno requersistemas integrados de transportes para viabilizar uma mobilidade urbana inclusiva, ágil e confortável.

Segundo Milton Santos, o capitalismo monopolista agrava a diferenciação quanto à dotação de recursos, uma vez que parcelas maiores da receita pública se dirigem à cidade econômica em detrimento da cidade social. Essa diferenciação impõe ao espaço os interesses do mercado, afasta a população pobre dos centros de desenvolvimento e engendra um modelo de transporte público precário numa cidade desigual e sofrida, onde o pobre se desloca para o trabalho em itinerários de tempo médio de 4 horas/dia, retorna ao bairro-dormitório, numa rotina desgastante onde a qualidade de vida e o lazer inexistem.

  1.  AS IMPLICAÇÕES DO ACESSO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DA CIDADE EM DECORRÊNCIA DA (I) MOBILIDADE URBANA

A mobilidade urbana na Cidade do Salvador é algo paralizador. A relação crescimento populacional X planejamento urbano parece que nunca foi pensado pelos gestores públicos da referida cidade. Nenhuma cidade do Brasil, com o porte e a população de Salvador, sofre tanto com as décadas de falta de otimização dos recursos públicos. O crescimento desordenado das grandes cidades brasileiras é uma regra com poucas exceções. Entretanto, a capital baiana parece estagnada em séculos passados. As obras de infra-estruturas, realizadas ao longo dos anos, parecem resquícios de uma promessa de cidade sustentável e moderna.

As ruas são engarrafadas, os passeios públicos são obstruídos pelos carros estacionados, os lixos estão empilhados, e a população soteropolitana é refém de uma estrutura urbana que “engessa” qualquer tentativa de mobilidade. A falta de planejamento resulta em um cenário que revela, além do descaso e do abandono, uma incompreensão da dinâmica de Salvador. A população não se sente pertencente à cidade e a cidade parece pertencer a poucos.

Observando os grandes conglomerados de moradas irregulares e desassistidas, percebemos o quão difícil é ter mobilidade para acessar os serviços públicos. Como uma ambulância pode socorrer alguém que reside no final de ruas estreitas e sinuosas? O quanto cada criança tem que caminhar até chegar a uma rua principal para pegar condução até a escola? A falta de planejamento sanitário, muitas vezes, restringe até o constitucional “direito de ir e vir” (art. 5º da C.F). Como alguém pode caminhar livremente perante obstáculos de lixos e dejetos?

A cidade já se mostra bastante “ingrata” perante os cidadãos que não necessitam de aparatos especiais, em relação aos deficientes físicos, a questão da acessibilidade é algo pontual e incidente. Os transportes públicos não são adaptados e os passeios públicos são a iminência do acidente. Os avanços nessa área são decorrentes de normas heterógenas e de legislação especial, como imposição externa e não como uma demanda reivindicada pelo cidadão.

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O cenário em que se encontra Salvador é decorrente de anos de implantação de projetos de governo e nunca de política de Estado. A transitoriedade da gestão de um governo (quatro anos) não é suficiente para fazer modificações estruturais. Isso porque os gestores públicos não pensam em projetos políticos à longo prazo, e sim em obras de visibilidade imediata. As garantias fundamentais do cidadão é apenas um discurso para conseguir votos e para iludir a população sobre o seu papel determinante na cidade.

  1.  PROPOSTAS DO SETOR DE TRANSPORTES PARA O ENFRENTAMENTO DO ESGOTAMENTO DO SETOR ATUAL

Com a proximidade da Copa de 2014, a questão da mobilidade urbana na Cidade do Salvador fica, cada vez mais, em evidência. Diante do trânsito paralisado e da insuficiente oferta de transporte público para atender a população (um ônibus para cada 333 passageiros), dois modelos são apresentados: o BRT (Bus Rapid Transit) e o VLT (veículo leve sobre trilhos)

A prefeitura defende o modelo do BRT, que inicialmente de R$ 570 milhões e um total de 3 bilhões. Como principais argumentos favoráveis tem-se a redução em 83% do tempo de espera, e um aumento de 70 para 200 passageiros.

Já os defensores do modelo do VLT dizem que ele serviria como um auxílio para o metrô e que, a longo prazo, seria mais eficiente e menos oneroso.

Percebe-se que a grande questão é o longo prazo, projetos bem sucedidos e duradouros exigem tempo de maturação. Como os governantes estão mais preocupados em atender interesses privados de quem os patrocina do que promover a cidadania, A eficiência do modelo não perpassa por estudos técnicos relevantes e sim por mera barganha política.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a pretensão de esgotar um tema tão complexo em trabalho de formato tão exíguo, ousamos tecer algumas considerações a que nos levou a revisão bibliográfica e o confronto de conceitos e construções teóricas com a realidade da nossa vivência como citadinos em Salvador.

As conclusões as quais chegamos são desconsoladoras, quais sejam: o conceito de mobilidade urbana é atrelado à satisfação de interesses de grupos econômicos bem estruturados, que dispõem de recursos para se deslocar de carro particular pela cidade de Salvador, quiçá de helicóptero, como já faz o governador do Estado, em franca concordância com o ponto do imobilismo que defendemos nesse artigo; existe planejamento estratégico para favorecer objetivos de certos grupos econômicos que vêem na cidade mais um mercado, em desprestígio ao plano diretor que subsiste apenas no papel; não há estudos técnicos de mobilidade urbana que fundamente esse planejamento; os instrumentos de participação popular não são utilizados para a devida implementação de políticas públicas no setor; sequer há verdadeiras políticas públicas, mas sim planos de governo.

Da ingerência que se reveza no poder, com a sucessão gestores que governam para elites decorre que a cidade vai sendo saqueada e sonegada à grande maioria da população que é alienada do jogo democrático, seja porque falta escola de boa qualidade, seja porque deixaram estudos para trabalhar, seja porque está sempre apressada para pegar o ônibus lotado, para atravessar a cidade e servir àqueles que de fato escolhem para onde querem ir nessa cidade de poucos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Paulo Henrique de. A Economia de Salvador e a formação de sua Região Metropolitana. In. Como anda Salvador e sua Região Metropolitana. CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de. PEREIRA, Gilberto Corso (Orgs.), Salvador:EDUFBA, 2008, pp.13-52.

BRANDÃO, Carlos Antonio; GALVÃO, Antonio Carlos Filgueira; GONÇALVES, Maria Flora. (Orgs.). Regiões e cidades, cidades nas regiões. São Paulo: Ed. UNESP/ANPUR, 2003.

Sampaio, Antônio Heliodório Lima, Formas Urbanas: cidade real & cidade ideal contribuição ao estudo urbanístico da cidade de Salvador. Quarteto Editora. Salvador: 1999.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2009.

http://g1.globo.com/bahia/noticia/2011/04/brt-ou-vlt-modelo-de-transporte-de-massa-e-impasse-na-capital-baiana.html

http://www.ibahia.com/detalhe/noticia/obras-e-projetos-prometem-melhorar-a-mobilidade-urbana-em-salvador/

http://www.meau.ufba.br/site/publicacoes/indicadores-de-mobilidade-urbana-uma-avaliacao-da-sustentabilidade-em-areas-de-salvador-

http://www.teixeiraverdade.com.br/destaque/estado-e-prefeitura-definem-modelo-de-mobilidade-urbana-para-salvador/

                                                                                    


[1] SAMPAIO, P.100.

Sobre a autora
Flavia Pimenta

Graduada em História pela UNEB; Atua como Professora na rede estadual de ensino médio (Bahia); Acadêmica em Direito, 10º semestre pela Universidade Estadual da Bahia. Cursa especialização em Metodologia do ensino da Educação Profissional (convênio SEC-BA/UNEB).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo realizado como parte das avaliações da Disciplina Tópicos Especiais de Direito Urbanístico, no curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia - UNEB.

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