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O Ministério Público, o Codecon e a inversão do ônus da prova.

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01/03/2002 às 00:00
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V. VULNERABILIDADE E HIPOSSUFICIÊNCIA

Estabelecidos os limites da substituição processual viável pelo Parquet, passemos a outro tópico de mesma importância que reside na fixação dos conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência.

Como asseverado supra, tais institutos ainda não receberam, em sede doutrinária, a precisão conceitual necessária aos institutos jurídicos.

De seu turno, Judith Martins Costa, citada por Paulo Valério Dal Pai Moraes, afirma que:

"Um e outro conceito denotam realidades jurídicas distintas, com conseqüências jurídicas também distintas. Nem todo o consumidor é hipossuficiente. O preenchimento valorativo da hipossuficiência – a qual se pode medir por graus – se há de fazer, nos casos concretos, pelo juiz, com base nas ‘regras ordinárias de experiência’ e em seu suporte fático encontra-se, comumente, elemento de natureza socioeconômica.... Todo consumidor, seja considerado hipossuficiente ou não é, ao contrário, vulnerável no mercado de consumo. Aqui não há valoração do ‘grau’ de vulnerabilidade individual porque a lei presume que, neste mercado, qualquer consumidor, seja ele hiper ou hipossuficiente do ponto de vista sócio-econômico, é vulnerável tecnicamente: no seu suporte fático está o desequilíbrio técnico entre o consumidor e o fabricante no que diz com a informação veiculada sobre o produto ou serviço." [19]

Estabelecendo critérios de distinção, a Professora ensina, em rápidas linhas, que a vulnerabilidade é uma presunção absoluta – jure et de juris – ao passo que a existência de hipossuficiência deverá ser analisada casuisticamente.

Neste passo, o membro do Parquet rio-grandense-do-sul, verbis:

"Por isso a definição sobre a hipossuficiência é open juris, cabendo ao Magistrado a definição no caso concreto (topicamente), tendo em vista a sua experiência como julgador, mas principalmente como pessoa que está integrada na sociedade, observando todas as realidades que em geral circundam uma demanda judicial, bem como com vistas à implementação concreta das funções sociais do direito.

"Também é a hipossuficiência um critério que necessita ser aferido levando em consideração os sujeitos da relação processual entre si, a fim de que possa ser feita uma hierarquização valorativa voltada para a posição individual (socioeconômica) de ambos, o que resultará na distribuição mais justa dos ônus da prova." [20]

Divisa-se que diferem os institutos sob comento, sendo a vulnerabilidade fenômeno de direito material e a hipossuficiência, de índole processual. Sendo, ao nosso ver, mais correta a assertiva segundo a qual a hipossuficiência é a manifestação processual da vulnerabilidade.

Assim, vislumbra-se que a hipossuficiência nada mais é que um atributo, de índole processual, da vulnerabilidade do consumidor, nada importando se este consumidor figura na relação jurídica processual de forma individualizada ou coletivamente, por meio do fenômeno da substituição processual.

Tanto isso é verdadeiro que a mais abalizada doutrina entende ser a hipossuficiência uma vulnerabilidade de ordem econômica e técnica.[21] Daí não ser relevante a presença ou não do consumidor no pólo ativo da relação jurídica processual, posto que os seus interesses, ainda sim, estarão em litígio da mesma forma.

Outra não é a conclusão de Paulo Valério Dal Pai Moraes:

"Os eminentes juristas apresentam, então, outro critério para a definição da hipossuficiência, qual seja, a facilitação da defesa do consumidor em juízo, respeitada a sua natural vulnerabilidade e os demais critérios antes apontados. Este novo elemento é quase que um dogma, pois está afinado com a idéia de que vários entes coletivos passam a integrar o mundo processual brasileiro, com maior freqüência, na defesa do consumidor." [22]

Ora, se o consumidor é vulnerável seja qual for sua condição financeira, de instrução, econômica, etc., por presunção absoluta, hipossuficiente sê-lo-á, ao revés, por presunção relativa, cabendo, destarte, prova em contrário da inexistência de deficiências de ordem técnica, econômica, cultural, etc., independentemente de estar em juízo pessoalmente ou por meio de substitutos.

Em outras palavras, resta claro que a hipossuficiência é um desdobramento da vulnerabilidade consumerista não importando a existência de litígio em juízo proposto pelo consumidor ou por substituto processual.

Alfim, frise-se que a hipossuficiência está umbilicalmente ligada à vulnerabilidade do consumidor, sendo aquela tão-só uma das muitas vertentes que possui esta. E mais, a hipossuficiência consignada no código consumerista é, inclusive, a técnica, e, não tão-somente a econômica.


VI. Hipossuficiência como Presunção Relativa

Prima facie é imperioso ressaltar que a problemática do presente trabalho cinge-se tão-só – como já afirmado – à inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor, quando proposta a demanda pelo Ministério Público.

Isto porque quanto ao outro requisito autorizativo da inversão do ônus da prova – a verossimilhança – não há que se falar de impossibilidade da inversão quando aforado o pedido pelo Parquet ou qualquer outra parte ideológica posto tratar-se de requisito objetivo, referente a elementos probatórios que nada interferem no que diz respeito à pessoa que figura em juízo.

Com efeito, à quaestio iuris sobre ser possível a inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor quando proposta a demanda por ente intermediário, estamos que a resposta afirmativa se impõe.

Como sabido, o juiz poderá inverter o ônus da prova, segundo as regras ordinárias de experiências.(art. 6º, VIII, CDC)

A última cláusula do dispositivo – segundo as regras ordinárias de experiências – tem aparição anterior no Código de Processo Civil – art. 335 – no capítulo VI – Das Provas.

Como ocorre na lei geral, o CDC deferiu ao magistrado o poder de inverter o ônus da prova com supedâneo nas regras comuns da experiência.

Assim, para Stein, estas regras:

"São definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, desligados dos fatos concretos que se apreciam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram induzidas e que, além desses casos, pretendem ter validade para outros que venham a ocorrer." [23]

Como se vê, quando necessitar decidir baseado em regras comuns da experiência – como ocorre no caso da inversão do ônus da prova nas relações consumeristas – o juiz buscará, através do método indutivo, postulados que sirvam para casos futuros.

E mais.

Essas regras assim extraídas da realidade subjacente, possuem normatividade à símile do que ocorre com a presunção relativa – juris tantum – presumindo-se, em favor de quem aproveite, fatos favoráveis à comprovação de suas alegações.

Não é outro o magistério do Professor Antonio Carlos Cintra:

"E a regra de experiência tem natureza normativa, em posição equivalente às normas jurídicas que estabelecem presunção relativa, produzindo presunções que, igualmente, dispensam a parte por elas favorecida, do respectivo ônus da prova, embora autorizem a prova em contrário." [24]

Por fim, define o que sejam regras comuns da experiência:

"A experiência comum a que se refere a lei é a experiência de vida, no seu sentido mais amplo, ou seja, o conhecimento adquirido pela prática e pela observação no quotidiano,... " [25]

Com efeito, faz-se mister a análise das regras ordinárias da experiência (art. 6º, VIII, CDC), que sustentam a hipossuficiência consumerista, dentro na realidade brasileira latente, no afã de serem valoradas adequadamente.

Via de conseqüência, é lícito afirmar que os consumidores brasileiros, em sua maioria, carecem dos mais comezinhos atributos para uma vida digna, necessitando de elementos mínimos para a própria sobrevivência, como alimentação, saúde, etc., sem se falar no aspecto intelectual.

Assim, fatores das mais variadas espécies, tais como econômicos, sociais, culturais, políticos e etc. aconselham presumir-se hipossuficiente qualquer consumidor sem que haja uma declaração formal no processo.

A demonstração desses fatores, mesmo que perfunctória, na realidade brasileira não é despicienda.

Destarte, em estudos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE, no ano de 1999, sobre o índice de analfabetismo no Brasil – como um todo – e por regiões, constata-se que, só na região nordeste do País, entre pessoas de 07 anos ou mais, este índice chega a ultrapassar um quarto da população ali existente, conforme quadro demonstrativo abaixo [26]:

Com índices de analfabetismo desta grandeza, não seria concebível exigir de um consumidor a prova de sua hipossuficiência técnica.

Anote-se que argumentamos com o analfabetismo total, isto é, não o analfabetismo setorial, sobre o conhecimento de alguma particularidade ou ciência do conhecimento.

Em claras palavras, força é admitir que mesmo pessoas que possuam instrução adequada – minoria do país – são passíveis de se tornarem hipossuficientes frente a determinado ramo do conhecimento, v. eg., um dentista será sempre um analfabeto setorial sobre a ciência jurídica, posto que não foi formado culturalmente nestas letras.

Com efeito, se boa parte da população consumidora do País (10 anos ou mais) não possui conhecimento sobre o meio de verbalização de idéias (lingüística), como apreender conhecimento técnico? Mesmo para aquelas pessoas devidamente alfabetizadas torna-se impossível conhecer tecnicamente todas as áreas do saber, como exemplificado supra.

Mas não é só.

Sob o aspecto econômico, a realidade brasileira não é muito diferente, haja vista a distribuição de renda, sendo certo afirmar ter o fornecedor meios mais eficazes para a demonstração, no processo, da inexistência da hipossuficiência alegada.

Como modo de confirmação da assertiva, no decênio 1989-1999, o mesmo Departamento de Estatística – DIEESE – elaborou gráfico onde compara a distribuição pessoal de renda entre alguns países, levando como critério 20% da população mais pobre e 10% da população mais rica de cada um dos países. [27]

Pode-se divisar que no Brasil, no decênio 1989-1999, 20% da sua população mais carente possuía tão-só 3,6% da renda produzida no País, enquanto 10% da população mais rica detinha 46,8% dessa mesma renda.

Porém, os fundamentos materiais da presunção relativa de hipossuficiência do consumidor não se esgotam aqui.

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De certo, não é possível negar a íntima ligação entre as relações consumeristas e trabalhistas. Isto porque só haverá consumo se houver trabalhador que perceba salários, haja vista ser este assalariado um consumidor em potencial, inserido no mercado de consumo, que dá base de sustentação àquela relação de compra e venda de produtos e serviços.

Portanto, em uma sociedade saudável deve existir uma melhor repartição do Produto Interno Bruto (PIB) de maneira que Trabalho e Capital sejam agraciados em porcentagens equivalente, e, via de conseqüência, circule em maior quantidade as riquezas – evitando assim seu acúmulo – que, de seu turno, ensejará um aumento nas relações consumeristas.

Não obstante, no Brasil, o contrário ocorre, segundo, ainda, trabalho realizado pelo DIEESE, é constatável que ao longo dos anos, os trabalhadores vêm recebendo uma porcentagem menor que o Capital, tornando, por isso, a classe patronal mais rica, e, por corolário, a classe trabalhadora mais pobre, arrefecendo, por conseqüência, a circulação de riquezas, diminuindo, de seu turno, as relações de consumo. [28]

Por razão diametralmente oposta, os fornecedores – classe patronal – terão maiores condições financeiras, como afirmado, para, no processo, provar a inexistência da hipossuficiência alegada pelo consumidor.

Tais estatísticas não podem ser olvidadas no momento de ser apreciado o pedido sobre inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência posto ser presumível não poder arcar com os custos financeiros da demanda o consumidor inserido nos 90% da população que não detém nem mesmo 50% da renda produzida no País.

Ademais, os fatores analisados traduzem-se no preenchimento do conteúdo axiológico de que a norma jurídica carece, posto que, uma vez deslembrados, tornam a norma sob comento ilegítima.

Além disso, deslembrando o magistrado de tal realidade sócio-econômico-cultural e, por conseqüência, não visualizando que a hipossuficiência constitui presunção relativa de todo consumidor, estará malferindo o princípio da igualdade material no processo que, desde a concepção aristotélica, agasalhada por Rui Barbosa, possui sentido mais amplo do que simples igualdade formal.

"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real."

Dessarte, mostra-se justificável, bem como juridicamente possível e relevante, presumir-se hipossuficiente todo consumidor que requeira a inversão estampada no artigo 6º, VIII, do CDC, franqueando o ônus de provar o contrário ao fornecedor.


VII. CONCLUSÃO

O legislador, ao criar a legislação consumerista, teve em mente o cumprimento de preceptivo constitucional que determina ao Estado a promoção da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII, CF/88).

Tal defesa, como descrita na Carta Maior, se estabelecerá na forma da lei.

Assim, o instrumental posto à disposição do legislador ordinário é vasto, tendo em conta as variadas formas de se promover a defesa do consumidor.

Dentre as muitas previstas pelo legislador no CDC, inseriu-se a defesa coletiva de tais interesses consumeristas.

Ressalta-se que a defesa coletiva em apreço se perfaz sobre quaisquer natureza de interesses consumeristas, ou seja, não importando se se trata de interesses difusos, coletivos ou individuais, estes, desde que homogêneos.

De efeito, a substituição processual nada mais é do que mero instrumento de proteção, no particular, de uma coletividade de interesses que, não raras vezes, ficando ao crivo do consumidor individualmente considerado, resta lesado sem a necessária recomposição, seja por desídia do próprio consumidor – no caso dos interesses individuais homogêneos, seja por ausência de previsão legal – no caso de interesses difusos.

Não raras vezes, em virtude do montante pecuniário devido por força da lesão sofrida pelo consumidor, este não se sente motivado a procurar proteção jurisdicional, restando a lesão que sofre o direito incólume.

Daí ser o Ministério Público um ente intermediário – dentre os muitos existentes – que instrumentaliza a defesa coletiva dos interesses consumeristas.

Nesta esteira, é forçoso admitir a tese segundo a qual é possível a inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor em ações civis propostas pelo Ministério Público tendo em vista que, uma vez presumida a hipossuficiência dos consumidores fundamentada em fatores reais existentes – regras ordinárias de experiências, o aforamento de demandas pelo Parquet em nada alterará aquela realidade.

Em claras palavras, a aparição do Parquet no pólo ativo da relação processual nada mais significa do que um instrumento à disposição do consumidor na defesa dos seus interesses, coletivamente considerados, que deve ser conjugado, frise-se, com a presunção relativa da hipossuficiência dos consumidores, tendo em vista as regras ordinárias da experiência.

Por fim, pontifica o membro do Parquet rio-grandense-do-sul:

"Um outro enfoque que evidencia não poder o conceito de hipossuficiência estar restrito à definição da Lei nº 1.060/50 é o fato de que a norma consumerista não é orientada somente para o consumidor individual, mas, em especial, para o consumidor coletivamente considerado. Desse modo, é fundamental que o critério da hipossuficiência seja apreciado também naquelas situações em que existe substituição processual, quando associações ou órgãos de defesa do consumidor são obrigados a demandar na defesa da coletividade." (g.n.)[29]

Em compêndio, chega-se às conclusões seguintes:

  1. A hipossuficiência, que ensejará a inversão do onus probandi, lastreada no inciso VIII do artigo 6º da Lei consumerista, possui presunção relativa de existência haja vista a realidade brasileira (regras ordinárias de experiências) no tocante aos aspectos econômico, cultural, social e outros, sendo deferida ao fornecedor a oportunidade da prova em contrário.

  2. Para a inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência é tão-somente necessário o requerimento do consumidor ou do substituto processual (Ministério Público, associações, etc.) neste sentido, sendo despicienda a respectiva declaração, posto presumir-se esta, ainda, das regras ordinárias de experiência.

  3. A propositura da demanda pela parte ideológica, especialmente pelo Ministério Público, não macula aquela presunção, posto ser o Parquet mais um meio eficaz de proteção dos consumidores, atento que foi o legislador consumerista aos princípios da economia processual e do acesso efetivo à Justiça, sendo lícito ainda asseverar que a propositura de demandas por estes entes em nada mudará a realidade subjacente.

  4. No sistema de proteção consumerista não há antinomias, sendo, portanto, certo admitir que a defesa coletiva dos interesses dos consumidores pelas partes ideológicas e a presunção relativa da hipossuficiência não se repelem, antes se conjugam.

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Sobre o autor
Renato Franco de Almeida

promotor de Justiça em Governador Valadares (MG), pós-graduado em Direito Público, professor da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Renato Franco. O Ministério Público, o Codecon e a inversão do ônus da prova.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -488, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2754. Acesso em: 19 abr. 2024.

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