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Responsabilidade civil do fabricante de cigarros

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01/03/2002 às 00:00
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EM CONCLUSÃO

O papel do Direito é caminhar para a evolução, incorporando e positivando os valores que emergem da lapidação dos costumes e do amadurecimento histórico. A inovação de ontem é a realidade de hoje e estará ultrapassada amanhã. Foi nesta marcha evolutiva que hábitos seculares odiosos foram banidos, como a escravidão, a intolerância religiosa, a discriminação racial e os direitos absolutos de propriedade, que direitos da personalidade vieram a receber tutela efetiva. É momento de mais um passo decisivo à consagração destes valores.

Já foi demonstrado que, pelo conceito legal, os produtos nocivos à vida e à saúde são impróprios ao consumo, que a saúde do indivíduo e sua integridade física são de interesse público e direitos inalienáveis

Já foi demonstrada a presunção legal de hipossuficiência do consumidor e, pelo dever de informação imposto aos fabricantes de cigarro, resultou clara a definição do produto pelo poder público como nocivo e perigoso, gerador de riscos.

O princípio constitucional da livre iniciativa submete-se ao princípio amortecedor de seu "valor social", bem como à "função social da propriedade". A utilização da propriedade (pública, privada, imóvel, móvel, corpórea ou incorpórea) com a finalidade de lucro somente será regular se submetida àquela finalidade. Não há direito subjetivo de lesar, sendo irregular e abusivo o direito que, exercido, atinja a este fim, caracterizando ato ilícito.

A atividade econômica que alcance uma ampla gama de consumidores, fornecendo-lhes produtos destinados à utilização freqüente ou habitual, consumíveis através de ingestão e processados pelo organismo humano é inerentemente perigososa e impõe, para seu exercício, uma série de obrigações pré-contratuais (estudos e pesquisas exaustivas e conclusivas acerca dos efeitos e conseqüências de seu uso), contratuais (atendimento das finalidades para o qual foi produzido, comercializado e adquirido pelo consumidor - adeqüabilidade e prestabilidade) e legais (normativas).

A caracterização da atividade como perigosa e potencialmente nociva já lhe submete á responsabilização objetiva pelos danos causados. Ainda que se exija a demonstração de culpa do fabricante, nestas atividades de grande abrangência e conseqüente amplo potencial danoso, ela é derivada da omissão ou negligência ao dever pré-contratual de teste do produto fabricado e sua colocação no mercado e investimento na criação e constante ampliação de público consumidor sem qualquer advertência quanto à nocividade e periculosidade, criando a dependência química que exige o consumo.

A própria forma de criação e manutenção do mercado consumidor representa uma dominação arbitrária de mercado relevante, falseando a concorrência com outros bens utilizados para igual finalidade, porém destituídos da capacidade de criar vício e dependência, cativando o consumidor. Existe aí uma concorrência desleal com bens de igual finalidade, dando-se a concorrência não entre os diferentes produtos, mas apenas entre "marcas" de um produto praticamente idêntico, o que o torna insubstituível e implica em concentração mediante artifício que falseia a concorrência.

Ressalta-se que a ofensa à vida e à integridade física, independentemente do consentimento do ofendido, é conduta criminalizada por extensão, e os produtos nocivos e perigosos são definidos legalmente como impróprios para o consumo.

Constatada a nocividade e periculosidade do produto, bem como que sua utilização ofende a integridade física e a saúde dos indivíduos, bens inalienáveis de interesse e relevância social, necessária não apenas a informação da nocividade, mas a suspensão das atividades de fabricação, distribuição e comércio do produto. Mantida a atividade e permanecendo os investimentos na ampliação de mercado, a responsabilidade deriva, ainda, da imprudência desta atitude, risco que se soma aos outros já elencados.

Presentes elementos de culpa na ação, pois revela imperícia negligenciar ao dever básico de diligência que antecede a fabricação e comercialização de qualquer produto: o teste exaustivo e conclusivo acerca das conseqüências de seu consumo ou utilização, tendo os fabricantes agido com extrema imprudência e desconsideração. Diante de todas estas circunstâncias, está clara a ilicitude da fabricação e comercialização de cigarros, por derivada de exercício abusivo e irregular de um direito (livre iniciativa) em evidente desvio de finalidade.

Uma vez que mostra-se difícil arbitrar quantitativamente um dano à saúde (exceto aqueles que já foram objeto de tratamento médico, onde pode-se computar os valores expendidos com honorários, internações, medicamentos, lucros cessantes ante a impossibilidade de exercer atividade laboral ou diminuição da mesma, etc...), é possível, como já demonstrou o estudo ora apresentado, fixar um "quantum" indenizatório a título de dano moral.

O dano moral pode ser arbitrado tanto à vítima, ofendido direto, como a seus familiares, agredidos por via reflexa, tanto como "fumantes passivos" quanto pelo convívio a que foram expostos, tendo de observar um familiar submisso ao vício sem condições de superá-lo, mesmo sabedor dos males que iriam advir deste hábito, que poderiam até levá-lo à morte e privar a família de importantes recursos financeiros para arcar com seu tratamento. Incluem-se aí, também, a exposição a alterações de humor, raiva e frustração por parte do fumante em sua luta ineficaz com o vício.

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Sobre o autor
Leandro Bittencourt Adiers

advogado no Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ADIERS, Leandro Bittencourt. Responsabilidade civil do fabricante de cigarros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2760. Acesso em: 1 jun. 2024.

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