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A (des)necessidade de licitação para doações com encargo

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15/04/2014 às 12:22
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CONCLUSÃO

Diferentemente das doações administrativas puras, o contrato administrativo de doação com encargo deve ser, via de regra, licitado, como se depreende da regra inserta no §4º do art. 17 da nº Lei 8.666/93, que reforça o mandamento constitucional (art. 37, XXI, CF). Quanto à exceção veiculada no dispositivo, que permite a contratação direta (licitação dispensada), o Tribunal de Contas da União entende não padecer de vício de inconstitucionalidade, mas restringe sua aplicabilidade aos bens imóveis. Deve-se ter em mente que o objeto da licitação será a realização do encargo, não a doação; a doação é apenas o negócio jurídico por meio do qual a Administração está a exigir um serviço, qual seja, a execução do encargo.

Embora o dispositivo supracitado utilize a expressão “dispensada”, verifica-se que os requisitos são mais compatíveis com uma hipótese de licitação inexigível, entendimento que não implica declarar de forma transversa sua inconstitucionalidade nem desvirtuar o escopo da norma, mas de lhe dar a correta interpretação, a fim de facilitar seu entendimento e sua aplicação. Prova disso é que a consequência prática de ambos os institutos é a mesma: não haverá espaço de discricionariedade entre a opção de licitar ou não; uma vez cumpridos os requisitos legais, não haverá licitação.

Na avaliação acerca da aplicação do dispositivo, do dever de licitar ou não, cumpre ao gestor seguir o seguinte roteiro: (a) questionar-se sobre a real necessidade de uma doação, avaliando se é realmente necessária uma transferência de domínio do bem público, uma doação com encargo, ou se a mera concessão, autorização ou permissão de uso ou mesmo uma venda com condição suspensiva/resolutiva para realização da finalidade pretendida não seria menos onerosa e por isso mais adequada; (b) constatado que a doação com encargo é a opção mais adequada, deve-se avaliar, com base na justificativa de interesse público apresentada para a realização da doação e na finalidade pública almejada com a realização do encargo exigido, se existe uma ou mais pessoas capazes de realizar o encargo nos moldes desejados pela Administração.

Feita a operação acima, pode-se chegar a duas conclusões: apenas uma pessoa é capaz de realizar o encargo ou mais de um interessado pode realizá-lo. No primeiro caso, está-se diante de uma hipótese clássica de inexigibilidade, uma vez que a presença de um só não cria ambiente que permita uma competição. O problema surge quando mais de uma pessoa possa realizar o encargo (e o interesse público almejado) satisfatoriamente.

Nesse segundo caso, a Administração deve avaliar se é possível uma competição entre eles com base nas modalidades (leilão, concorrência, tomada de preços etc.) e tipos (menor preço, técnica e preço etc.) de licitação previstos na legislação. Em caso positivo, uma licitação deverá ser realizada. Em caso negativo, ou seja, inexistindo uma modalidade e tipo de licitação possíveis para selecionar a proposta mais vantajosa de execução do encargo, estar-se-á igualmente diante da inexigibilidade de licitação decorrente da inviabilidade de competição (art. 25, caput, LLC). Essa inaptidão das modalidades e tipos de licitação para selecionar a melhor proposta de se executar o encargo deve ficar exaustivamente demonstrada nos autos.

Havendo multiplicidade de pessoas capazes de realizar o encargo (possíveis donatários), mas impossibilidade de selecionar a melhor proposta para execução deste, impõe-se seja realizado um procedimento destinado a justificar as razões da escolha do executante-donatário (art. 26, parágrafo único, II, LLC ). Embora não possa ser classificado como licitação, esse procedimento deve ser orientado pelos mesmos princípios que a guiam, notadamente os pressupostos de publicidade, isonomia, impessoalidade e moralidade.

O ato final desse procedimento será uma decisão fundamentada, a qual sustentará o contrato de doação com encargo por inexigibilidade. Essa decisão estará, por óbvio, sujeita aos controles interno, externo e jurisdicional. A precedência do procedimento ora recomendado, ao tempo em que legitimará a contratação direta, permitirá uma melhor avaliação por parte dos órgãos de controle.

Esta parece ser a forma mais adequada de entender o §4º do art. 17 da LLC, reduzindo-lhe o grau de subjetividade e o compatibilizando com os pressupostos que guiam uma contratação pública, notadamente a publicidade (conhecimento de todos acerca do interesse da Administração na realização do ato), a isonomia (equiparação de todos os interessados capazes de contratar), a impessoalidade (escolha com base em parâmetros os mais objetivos dentro do que a contratação possibilita) e a moralidade (atendimento dos pressupostos anteriores).


REFERÊNCIAS

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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14 ed. São Paulo: Dialética, 2010.

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Nota

1 Cuida-se, aqui, especificamente da Lei 8.666/93 e do negócio jurídico denominado doação de imóveis com encargo, isto é, a transmissão gratuita do direito de propriedade de um bem imóvel da Administração para terceiros, com a obrigação de este fazer certa e determinada atividade. Reconhecem-se outras formas de transmissão da propriedade imóvel com restrições ou encargos, seja na própria Lei 8.666/93 seja em leis esparsas, não sendo isso objeto do presente estudo.

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Sobre o autor
Bráulio Gomes Mendes Diniz

Procurador Federal. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINIZ, Bráulio Gomes Mendes. A (des)necessidade de licitação para doações com encargo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27698. Acesso em: 6 mai. 2024.

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