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Considerações sobre a transformação do sistema de segurança pública brasileiro proposto pela PEC 51 e o novo papel do município

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08/05/2014 às 10:36
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Propostas debatidas anteriormente no Brasil.

O debate sobre o tema da Segurança Pública historicamente no Brasil surge com maior ou menor intensidade dependendo dos momentos relacionados a crimes de grande repercussão. Foi assim nos casos Daniela Perez, Suzane  Richthofen, Dorothy Stang, Eliza Samudio e tantos outros.

Entretanto, o momento mais marcante de debates sobre o tema nos últimos 30 anos foi a partir do dia 01 de fevereiro de 1987, na cidade de Brasília, no Congresso Nacional quando foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte, com Poder Constituinte Originário,10 esse momento histórico discutiu o Brasil como Estado e todos os temas relacionados.

O professor Jorge da Silva possui um importante trabalho e relato sobre os debates que ocorreram naquela época, relacionados a possíveis mudanças do sistema de segurança pública e que rondavam a Assembléia Nacional Constituinte com a ação de todas as forças interessadas tentando influenciar o produto final que conhecemos hoje. Ao que parece, essa força de interesses irá agir novamente no caso da PEC51.

“O tempo era o da Assembléia Nacional Constituinte. A dicotomia “militar/civil” impregnara ideologicamente a discussão sobre o sistema de segurança pública, após anos de regime militar. Antes, as Policias Militares apareciam na Constituição por serem, na condição de “forças auxiliares e reserva do Exército”, corporações voltadas para a segurança interna e a manutenção da ordem pública em sentido estrito. Paralelamente, os pleitos dos diferentes setores e categorias convergiam para a Constituição. Todos queriam “entrar”na Carta Magna, o que, na área da segurança pública, acabou acontecendo. Sobre a segurança pública nos estados, multiplicavam-se as propostas de organização, algumas delas no sentido da desmilitarização das PPMM e BBMM, ao que se opunha o Exército. Outro ponto. No interesse das PPMM e dos BBMM, sobretudo dos oficiais, e do Exército, os integrantes daquelas corporações estaduais foram considerados “militares” (CF. art. 42). Acontece que, promulgada a Constituição em 1988, os lobbies corporativos não cessaram, o que inviabilizou a regulamentação do Artigo 144, prevista no seu § 7°, tornado letra morta. E continuaram as propostas: uma policia, duas polícias, fusão, desmilitarização etc. etc.” (DA SILVA, 1990)

O Professor Jorge da Silva utilizou na sua análise para mensurar as vantagens e desvantagens das propostas que surgiam os seguintes indicadores.

  1. Aproveitamento das estruturas físicas existentes;

  2. Racionalização dos meios materiais e humanos;

  3. Economia de recursos financeiros;

  4. Simplicidade na implantação;

  5. Utilidade; e

  6. Eliminação dos conflitos de competência.

Para a análise realizada o autor utilizou as alternativas definidas abaixo, independentemente de suas possíveis variações.

  1. Alternativa A – Duas Polícias: Polícia Judiciária e Polícia Ostensiva;

  2. Alternativa B – Duas Polícias: Polícia Judiciária Especializada e Força Policial;

  3. Alternativa C – Duas Polícias Completas;

  4. Alternativa D – Polícia Única: Polícia Estadual;

  5. Alternativa E – Duas Polícias: Polícia Completa e Polícia de Intervenção.

Alternativa A: Segundo DA SILVA, “Em princípio, esta alternativa corresponderia a manter o modelo atual, desenhado pela Constituição de 1988.” A Polícia Civil – Policia Judiciária: apurações das infrações penais; Polícia Militar – Polícia Ostensiva – policiamento ostensivo ( e preservação da ordem.)” (DA SILVA, 1990)

Alternativa B: Segundo DA SILVA, “A polícia civil continuaria com as atuais incumbências, mas se concentraria na apuração dos crimes de autoria desconhecida e se especializaria no combate à criminalidade organizada, liberando-se de ter que manter estruturas para lavrar flagrantes de prisões efetuadas pela Polícia Militar, que seria autorizada a fazê-lo.” (DA SILVA, 1990)

Alternativa C: Duas polícias de ciclo completo. Segundo DA SILVA, “As competências seriam divididas por área geográfica: Polícia Civil (ou Polícia Militar) – Polícia Metropolitana e Policia Militar (ou Polícia Civil) – Polícia do Interior.” (DA SILVA, 1990) Essa alternativa seria muito próxima do modelo francês em vigor hoje.

Alternativa D: Segundo DA SILVA, “Fusão da Polícia Militar e da Polícia Civil numa única polícia estadual, completa, executando todas as fases da função policial.” (DA SILVA, 1990)

Alternativa E: Segundo DA SILVA, “Esta foi, em linhas gerais, a chamada de “solução Afonso Arinos”, ou seja, a absorção pela Polícia Civil dos serviços ( e grande parte dos efetivos) da Polícia Militar. Esta alternativa foi fortemente defendida pelos delegados de polícia durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, com a alegação de que com isso se instituiria uma polícia única e civil, e vigorosamente rejeitada pelos oficiais superiores das Polícias Militares. O esquema seria:

Polícia Civil: Polícia Completa - policiamento ostensivo; - investigação criminal; - polícia judiciária.

Polícia Militar: Polícia de Intervenção – polícia de choque.” (DA SILVA, 1990)

Ao final da análise o autor apresenta a seguinte tabela:

ALTERNATIVAS

INDICADORES

A

B

C

D

E

Aproveitamento das estruturas físicas existentes

2

2

0

2

0

Racionalização dos meios materiais e humanos.

0

0

0

2

0

Economia de recursos financeiros

2

2

0

0

0

Simplificação na implantação

2

2

1

1

1

Utilidade

1

1

1

2

0

Nível de eliminação dos conflitos de competência

1

2

2

2

2

PONTOS POSITIVOS

8

9

4

9

3

  • Valores atribuídos: máximo = 2 pontos; médio = 1 ponto; nulo = 0 ponto. (DA SILVA, 1990)

Na sua conclusão o autor finaliza informando que a melhor alternativa seria a Alternativa B: Duas Polícias: Polícia Judiciária Especializada e Força Policial, por apresentar o maior número de pontos positivos e o maior saldo de vantagens. Explica, “é medida relativamente simples, útil e, comparativamente, de fácil implementação; elimina os conflitos de competência e não é solução muito onerosa. Mas não racionaliza integralmente os meios humanos e materiais.” (DA SILVA, 1990)


O papel do município na nova ordem jurídica

Não restam dúvidas de que o Poder Municipal e os seus gestores são os mais próximos do cidadão. A implantação de políticas públicas para obter resultados integrados com a comunidade necessariamente precisa passar pelos administradores do município.

Não seria diferente com o tema da segurança pública, o Brasil atualmente possui várias cidades com guardas municipais estruturadas e realizando trabalhos interessantes de prevenção do crime e da criminalidade. Não é mais tão incomum verificarmos guardas municipais sendo chamados a depor na Justiça como condutores e testemunhas de prisões em flagrante. E a Justiça vem considerando possível a execução dessa prisão em flagrante pelo guarda municipal, vejamos a decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ:

HC 129932 / SP

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. GUARDA MUNICIPAL. NULIDADE DA AÇAO PENAL. INEXISTÊNCIA. ART. 301 DO CPP. ORDEM DENEGADA.

1. A prisão em flagrante efetuada pela Guarda Municipal, ainda que não esteja inserida no rol das suas atribuições constitucionais (art. 144, , da CF), constitui ato legal, em proteção à segurança social.(grifo nosso)

2. Se a qualquer do povo é permitido prender quem quer que esteja em flagrante delito, não há falar em proibição ao guarda municipal de proceder à prisão.

3. Eventual irregularidade praticada na fase pré-processual não tem o condão de inquinar de nulidade a ação penal, se observadas as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, restando, portanto, legítima a sentença condenatória.

4. Ordem denegada. (HC 129932/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 01/02/2010)

Os municípios precisam ficar atentos as necessidades de mudanças do sistema e se prepararem para a eventual aprovação da PEC51. Executar segurança pública como protagonista local requer, além de um esforço político e jurídico muito grande, um forte investimento financeiro, tanto na fase de adequação quanto na fase de execução propriamente dita.

Talvez os obstáculos financeiros sejam os mais difíceis de superar na esfera municipal para a implantação da nova ordem jurídica. O professor François de Bremaeker alerta no seu artigo sobre o Fundo de Participação dos Municípios que a situação financeira desses entes federativos está cada vez mais critica. “A penúria financeira dos Municípios se agrava não apenas com o aumento dos seus encargos, mas também pelo fato de que no atual mandato (2009 a 2012) o FPM sempre cresceu em valor abaixo dos reajustamentos do salário mínimo, sendo que o salário mínimo serve de base para a correção dos valores de mais de 75% das despesas municipais.” (DE BREMAEKER, 2012)

Independentemente dos desafios que os gestores municipais irão enfrentar para inserir seus municípios no escopo moderno da nova ordem jurídica apresentada pela PEC51 é importante ter a disposição política de executar as adaptações com equilíbrio e planejamento estratégico da mudança a fim de causas o menor transtorno possível aos seus servidores públicos e a população de sua cidade.


Conclusão

Baseados nos diversos estudos acadêmicos aqui citados, e na observação empírica da violência nas cidades brasileiras, podemos afirmar que o modelo atual de polícia adotado no país e sua forma de atuação com a partição do ciclo de polícia não está atendendo as necessidades do fluxo de justiça criminal e vem dificultando as ações de enfrentamento do crime e da criminalidade.

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O professor Marcos Rolim em artigo escrito na coluna Opinião do Jornal Zero Hora define suas impressões sobre a proposta de mudança:

“...A proposta é avançada e pretende corrigir destacadamente duas distorções: a absurda partição do ciclo de policiamento e a inexistência de carreiras únicas em cada instituição policial.” (Rolim, 2013)

O Ex-Secretário de Segurança Pública de São Paulo, portanto, ex-gestor do maior sistema de segurança pública estadual do país, Ronaldo Marzagão, publicou em artigo, na coluna Opinião do Jornal Estadão a sua visão sobre o atual modelo e a necessidade da reformulação do Sistema:

“O modelo constitucional de funções partidas enseja a idéia de autonomia administrativa e operacional de cada uma das corporações policiais que integram a estrutura de segurança estadual. Propicia formações policiais distintas, originárias de órgãos de ensino diversos. Dificulta o relacionamento profissional e a atuação conjunta das duas corporações. Funciona como caldo de cultura para conflitos de atribuições, para a dispersão de meios e para a superposição de funções entre as polícias, resultando daí efeitos operacionais altamente negativos. Conduz a pesadas estruturas administrativas, operacionais e financeiras, incompatíveis com a eficiência de uma organização policial simples e ágil.” (MARZAGÃO, Ronaldo, 2013)

O Senado Federal instalou no dia 02 de outubro de 2013 a Comissão Especial de Segurança Pública, a Comissão terá 90 dias para analisar as propostas apresentadas sobre o tema dentre elas a PEC 51. Em entrevista a Agência Senado o relator da Comissão Senador pelo Estado do Mato Grosso, Pedro Taques afirmou: “- Vivemos um estado de guerra, com índices de criminalidade alarmantes, 51 mil homicídios por ano. (...)” (TAQUES, 2013). Ao abordar o problema de financiamento declarou: “- Teremos de pensar como a segurança pública será incluída no pacto federativo, o acordo para a divisão de responsabilidades e recursos entre a União, os estados e os municípios.” (TAQUES, 2013). E complementou dizendo: “- Apesar do trabalho importante que a polícia realiza, temos que reconhecer que algo está errado, porque o cidadão não está tendo o seu direito de locomoção, de paz atendido. Teremos de fazer uma transição, talvez de cinco a dez anos. Os direitos adquiridos dos policiais atualmente em atividade serão respeitados, e os novos integrantes terão de ser regidos por outras regras de ascensão baseadas no tempo de serviço e qualificação. Isso já foi testado em outros países e deu certo.” (TAQUES, 2013)

A segurança pública hoje é largamente utilizada como indicador de risco das grandes empresas, que atuam em todos os setores da economia, para definições de investimentos, expansão ou mesmo implantação de unidades. O Brasil precisa acordar para esse problema crônico e viabilizar mudanças estruturais e modernas no Sistema de Segurança Pública, e a PEC 51 é uma excelente visão de mudança que precisa ser considerada na construção e adoção do novo modelo. O debate do novo modelo necessariamente deverá incluir aspectos da nova sociedade brasileira, sem esquecer de visitar o estudo do passado, como bem notou o professor Guaracy Mingardi nas conclusões de sua obra ao tratar do tema, “..Não custa lembrar, porém, uma das mais conhecidas justificativas para o estudo do passado, a de que quem esquece a própria história corre o risco de repeti-la.” (MINGARDI, 1992, pg. 183) Nosso país precisa enfrentar o problema a fim de dar uma melhor resposta aos anseios da sociedade, ou terminará por ser eternamente o país do futuro, só que bem longínquo.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Magalhães

Agente de Polícia Federal, Ex-Secretário Municipal de Segurança com Cidadania – São Luís/MA, Professor de Pós-graduação em Gestão Pública da Faculdade Laboro, MBA em Gestão da Segurança Pública e Defesa Social e Especialista em Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Luiz Carlos. Considerações sobre a transformação do sistema de segurança pública brasileiro proposto pela PEC 51 e o novo papel do município. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3963, 8 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27980. Acesso em: 3 mai. 2024.

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