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Comentários sobre incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor

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2. ASPECTOS DO DIREITO DO CONSUMIDOR APLICÁVEIS ÀS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS

O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, foi idealizado durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, e o legislador constituinte determinou sua elaboração no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT em seu art. 48: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.

O Código de Defesa do Consumidor, ou simplesmente CDC, como é conhecido no meio acadêmico e jurídico, foi promulgado em 11 de setembro de 1990 e entrou em vigor 180 dias após sua publicação em 11 de março de 1991.

Foi editado o Decreto nº 2.181, em 20 de março de 1997, que veio regulamentar a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e as normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas no CDC.

O projeto de lei do Código de Defesa do Consumidor, quando ainda estava em gestação no Congresso Nacional, em sua exposição de motivos (CONGRESSO NACIONAL, online), deixou bem evidente a influência que recebera da Resolução da ONU 39/248 (ONU, online) que aprovou em sessão plenária em 09 de abril de 1985, em nível supranacional, uma política de proteção ao consumidor direcionada aos seus países membros, particularmente os países em desenvolvimento.

O Código de Defesa do Consumidor é um microssistema normativo autônomo, gerado no momento histórico da descodificação do direito privado como reflexo da constitucionalização das relações jurídico-privadas. Com o advento da Constituição de 1988, viu-se a necessidade de criar normas especiais para a proteção dos vulneráveis e dos hipossuficientes das relações jurídico-privadas.

O neoconstitucionalismo refletiu na realidade infraconstitucional na medida em que a codificação cedeu espaço à descodificação, à micronormatização e à consequente humanização, fruto dos reclamos de grupos sociais minoritários que pressionam no sentido da formulação de leis particulares que lhes são favoráveis. No aspecto contextual desse movimento de descodificação e micronormatização observa-se a constitucionalização de institutos que outrora eram regulados exclusivamente pelo Direito Privado. (MARQUES Jr, William, 2013, p. 337)  

É nesse contexto que surgem normas especiais de proteção ao consumidor, à criança e ao adolescente, por exemplo. Tem-se, portanto, uma evolução no Direito, com origem na codificação do direito privado promovido pelos ideais liberais da Revolução Francesa, até se chegar nesse momento de descodificação, com a consagração da proteção da pessoa como centro da relação jurídico-privada.      

“A lei consumerista é norma de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica, ela é prevalente sobre todas as demais normas anteriores, ainda que especiais, que com ela colidirem.” (NUNES, 2013, p. 118). O CDC é lei inserida no contexto da pós-modernidade jurídica e é reconhecidamente pela doutrina como norma de 3ª dimensão[4].

O código de proteção ao vulnerável negocial é tida como norma principiológica, porque encontra amparo constitucional no art. 5º, XXXII, que diz: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Pode-se afirmar que a defesa do consumidor é cláusula pétrea e que, a norma, aqui em comento, guarda prevalência sobre outras normas especiais, e, estas, por sua vez, devem guardar respeito e consonância às normas consumerista naquilo que for determinado como relação de consumo.

Além de ser reconhecido como direito fundamental, a defesa do consumidor é princípio geral da ordem econômica insculpida no art. 170, V, CF/88:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)

V - defesa do consumidor; (grifo nosso)

2.1. Os princípios basilares do CDC à luz da Constituição de 88: dignidade da pessoa humana, vulnerabilidade, hipossuficiência, boa-fé objetiva e função social do contrato

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a norma por excelência, em uma interpretação sistemática e planetária, na concepção do jurista argentino Ricardo Luis Lorenzetti, pode-se afirmar que ela é o Sol, irradiando seus princípios a todo ordenamento jurídico brasileiro, e, sendo assim, é a partir do estudo da Constituição, que se chega aos princípios basilares que norteiam o Código de Defesa do Consumidor.

Não se pode iniciar um estudo principiológico do CDC, sem antes buscar os princípios constitucionais que lhes conferem eficácia. São os princípios constitucionais que ajudam a construir os princípios incorporados ao CDC.

“A Constituição de 88, pela primeira vez na história dos textos constitucionais brasileiros, dispõe expressamente sobre a proteção dos consumidores, identificando-os como grupo a ser especialmente tutelado através do Estado (direitos fundamentais, art. 5º XXXII)” (NERY apud MARQUES, 2011, p. 620)

  Na concepção de José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (2009, p. 105). Para Rizzato Nunes, “(...) a frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais (...)” (2013, p.114)

Percebe-se nitidamente que a intenção do legislador foi de reafirmar na lei consumerista, no art. 4º, o respeito à dignidade da pessoa humana, com foco especial no consumidor. Desta forma, compreende-se a dignidade da pessoa como princípio a ser perseguido incansavelmente. 

E outro princípio tão importante quanto os demais, o princípio da igualdade, que deve ser entendido em sentido formal e material, ou seja, atribui igualdade de todos perante a lei, mas também permite que sejam conferidos tratamentos diferenciados àqueles que estão em condições de desigualdade. A Constituição Federal de 88 reconhece que certos grupos de pessoas, por sua flagrante vulnerabilidade, merecem proteção constitucional, portanto, quando lei infraconstitucional prevê o reconhecimento dessa vulnerabilidade, ela o faz em direta correlação ao princípio da igualdade ou da isonomia.

O princípio da soberania, fundamento do próprio Estado, serve de substrato ao CDC, quando permite ao Brasil, por sua condição de autonomia, ser signatário de tratados ou pactos alienígenas que sejam compatíveis com o exercício dos direitos sociais e individuais e se coadunam com o art. 7º do CDC.

A cidadania como princípio e fundamento da própria República, aqui em sentido amplo, não representando apenas o ser político, mas o indivíduo detentor de direitos e deveres e integrado a sociedade estatal.

Estes princípios, aliados aos específicos previstos no CDC, justificam que o consumidor tenha um tratamento diferenciado em relação ao fornecedor, pois sua condição, seja por questões econômicas, técnicas, educacionais ou jurídicas de inferioridade, permitem que exista esse tratamento desigual, ou em outras palavras, uma igualdade material, com escopo de se alcançar um equilíbrio de forças entre as partes envolvidas na relação de consumo.    

Os princípios basilares do CDC estão insculpidos, principalmente nos artigos 1º, 4º e 6º, embora em outros artigos possam existir princípios implícitos no contexto da lei. “Os princípios são abstraídos das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais.” (TARTUCE, 2014, p. 28)

Para Moraes, o art. 4º do CDC é verdadeira norma-princípio, ou norma-objetivo,

(...) podemos identificar no art. 4º do CDC a existência da ‘norma objetivo’ por excelência da lei consumerista, na qual está contida a política das relações de consumo, destacando-se como alguns dos princípios maiores o da vulnerabilidade, da harmonia das relações de consumo, e o da repressão eficiente e todos os abusos (2009, p. 68)

O princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido como fundamento da república brasileira, presente no art. 1º, inc. III da Carta Magna de 88, tem reforçada sua importância, agora, nas relações de consumo e destaca-se no CDC.

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade (grifo nosso), saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

O princípio da vulnerabilidade é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade, e é condição intrínseca do consumidor, ou seja, a condição de vulnerável é presumida, para tanto, basta o enquadramento do sujeito como consumidor, nos termos da lei consumerista, estará ele albergado pela condição de vulnerabilidade.

Percebe-se que o consumidor, por definição legal e principiológica, é a parte sempre vulnerável nas relações de consumo, senão veja o que diz a Lei nº 8.078/90 em seu art. 4º, inc. I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (grifo nosso)

Para Flávio Tartuce, “(...) a expressão consumidor vulnerável é pleonástica, uma vez que todos os consumidores tem tal condição, decorrente de uma presunção que não admite discussão ou prova em contrário” (2014, p. 34)

Outro princípio importante na construção das relações de consumo é o da hipossuficiência, que não deve ser confundida com o princípio da vulnerabilidade. Este é característica de todo consumidor, tal presunção é absoluta ou iure et de iure. Ao passo que, aquele deve ser observado no caso concreto, pois nem todo consumidor é hipossuficiente.

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente (grifo nosso), segundo as regras ordinárias de experiências;

Nota-se que a condição de hipossuficiência do consumidor vai muito além da sua condição econômica. A hipossuficiência legitima tratamento diferenciado ao consumidor, como por exemplo, o pedido de inversão do ônus da prova. Para Moraes, “(...) a definição sobre hipossuficiência é ope juris, cabendo ao magistrado a definição no caso concreto”. O mesmo autor leciona que “vulnerabilidade é uma categoria jurídica de direito material, enquanto hipossuficiência é de direito exclusivamente processual” (2009, p. 130; 136).

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Outros dois princípios importantes para a interpretação das normas de consumo e dos institutos jurídicos a elas subordinadas são a boa-fé objetiva e a função social dos contratos.

A boa-fé objetiva é “(...) uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo.” (NUNES, 2013, p. 181)

Analisando o art. 4º, inc. III, tem-se:

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé (grifo nosso) e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Portanto, denota-se que o CDC exige dos sujeitos da relação de consumo um respeito mútuo, um dever de probidade e uma busca pelo equilíbrio da relação consumerista. “A boa-fé objetiva traz a ideia de equilíbrio negocial, que, na ótica do Direito do Consumidor, deve ser mantido em todos os momentos pelos quais passa o negócio jurídico” (TARTUCE, 2014, p. 38).

A função social do contrato, é um princípio implícito no Código de Defesa do Consumidor, entretanto está bem explícito no Código Civil: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (grifo nosso).”

 Como já visto nesta obra, o princípio da função social veio relativizar a autonomia da vontade “pacta sunt servanda” prevista nos contratos, sejam eles civis ou consumeristas.

A partir da análise dos princípios aqui expostos, com o auxílio de métodos hermenêuticos e do “diálogo das fontes” de Erik Jayme, pretende-se fazer uma conexão entre a lei das incorporações imobiliárias e o Código de Defesa do Consumidor, bem como conceituar e enquadrar os sujeitos e o objetos da incorporação imobiliária em subsunção aos sujeitos e objetos da norma consumerista, quando estabelecida a relação inequívoca de consumo.

Antes, faz-se necessário conceituar consumidor, fornecedor, produto e serviço e alinhá-los pela melhor interpretação, pela analogia, aos conceitos já delineados de adquirente, incorporador, unidade imobiliária ou fração ideal e construção.

2.2. O adquirente como consumidor

Da própria lei consumerista, em seu art. 2º, extrai-se a definição legal de consumidor:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

O informativo nº 510 da 3ª Turma do STJ define o conceito de consumidor:

Não ostenta a qualidade de consumidor a pessoa física ou jurídica que não é destinatária fática ou econômica do bem ou serviço, salvo se caracterizada a sua vulnerabilidade frente ao fornecedor. A determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. Dessa forma, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pelo CDC, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. Todavia, a jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando “finalismo aprofundado”. Assim, tem se admitido que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço possa ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor (...). (STJ online)

Percebe-se, após análise do informativo do STJ, que o entendimento exarado pela 3ª Turma, tem orientado a jurisprudência da referida Corte no sentido da existência de uma nova teoria, uma terceira vertente, que buscou nas teorias maximalista e finalista um equilíbrio na definição de quem é o consumidor, que continua sendo aquela pessoa física não profissional, com presunção de vulnerabilidade absoluta, mas se admite o consumidor pessoa física profissional e ou a pessoa jurídica, desde que comprovada a vulnerabilidade no caso concreto. Este novo pensamento, que nasce da construção jurisprudencial do STJ, ficou conhecido, nas palavras da professora Cláudia Lima Marques, por “finalismo aprofundado ou interpretação finalista aprofundada.” (2011, p. 350).

Resgatando o conceito de adquirente, promitente comprador, ou simplesmente comprador, visto no capítulo 2, observa-se com nitidez que, a pessoa física que comprar um “imóvel na planta”, se o fizer como destinatário final, será enquadrado como consumidor.

Caso o adquirente seja um investidor pessoa física, que tem interesse apenas especulativo, pois pretende revender o imóvel após concluído o empreendimento para auferir lucro, como ficaria sua situação? Ou caso o adquirente seja uma pessoa jurídica? Em princípio, não seriam considerados consumidores, posto que, em tese nem seriam considerados vulneráveis nem destinatários finais do produto, entretanto, se comprovada a vulnerabilidade de ambos no caso em concreto, à luz da jurisprudência do STJ, é possível o reconhecimento da condição de consumidores.

Este trabalho, portanto, filiar-se-á a teoria finalista aprofundada, consagrada pela jurisprudência do STJ, ou seja, o consumidor final é a pessoa física não profissional que retira o produto do mercado com intuito de consumi-lo em proveito próprio ou de outrem, mas também aquele profissional ou pessoa jurídica que demonstre no caso concreto sua vulnerabilidade.  

O CDC equipara a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, e sejam sujeitos em uma relação de consumo. Pode-se afirmar que compradores de unidades imobiliárias em regime de incorporação imobiliária, comprovada a relação de consumo, e que tenham seus direitos lesados por incorporador, por fatos previstos na lei especial quanto na lei consumerista, podem intentar ação coletiva com fulcro no art. 81, inc. II do CDC.

2.3. O fornecedor como incorporador

O Código de Proteção ao Vulnerável assim fala sobre fornecedor:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços

Do artigo conceitual, verifica-se que, a figura do incorporador se conecta diretamente ao conceito de fornecedor insculpido no CDC. Voltando no conceito geral de incorporador, determinado no art. 29 da Lei n. 4.591/64 e na doutrina até aqui analisada, tem-se que, podem ser incorporadores as pessoas físicas ou jurídicas, que efetuem ou não a construção e que compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno.

Visto isso, nota-se que o incorporador é sim um fornecedor, à medida que ele pode ser uma pessoa física ou jurídica, de direito privado ou de direito público, em raríssima exceção prevista (art. 31, c, LDI)[5], desempenha a atividade, leia-se também serviço, de construção e comercializa produto (unidade imobiliária autônoma) com profissionalismos e habitualidade.

2.4. O imóvel como produto           

O conceito de produto está previsto no art. 3º, § 1° do CDC “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”.

Esse conceito de produto é universal nos dias atuais e está estreitamente ligado à ideia do bem, resultado da produção no mercado de consumo das sociedades capitalistas contemporâneas. É vantajoso o seu uso, pois o conceito passa a valer no meio jurídico e já era uado por todo os demais agentes do mercado (econômico, financeiro, de comunicações, etc). (NUNES, 2014, p. 139).

Quando a lei consumerista fala em bem imóvel, está empregando o mesmo conceito extraído da lei civil, que define imóvel como:

Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.

Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:

I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;

II - o direito à sucessão aberta.

Do conceito de incorporação imobiliária, verificado no parágrafo único do art. 28 da Lei nº 4.591/64, constata-se que o objetivo dessa atividade é promover a construção, para alienação total ou parcial de unidades autônomas, que nada mais são que bens imóveis por definição legal.

Portanto, o bem imóvel, objeto da relação jurídica que nasce de um contrato em regime de incorporação, bem como os direitos reais sobre esse imóvel e as ações que os asseguram, são, por definição legal produto à luz da lei consumerista.

2.5. A construção como serviço

As incorporadoras podem construir ou contratar uma empresa ou responsável técnico que assumam esse papel de construtor. Contudo, o incorporador é responsável pela construção, e responderá civilmente por eventuais atrasos e pela não entrega da obra.           

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.           

Pode-se admitir portanto, que a construção de imóveis em regime de incorporação enquadra-se no conceito de serviço do CDC, posto que é realizado com profissionalismo e habitualidade, é um serviço remunerado e contratado por pessoas vulneráveis.

Importante frisar que, para saber se a relação jurídica tem como objeto um produto ou serviço é preciso examinar qual é o elemento nuclear do vínculo obrigacional. Caso seja uma obrigação de dar, o objeto da obrigação será um produto, ao passo que, se a obrigação for de fazer, o objeto será um serviço. (GHEZZI, 2011, p. 180)

No exame das incorporações imobiliárias e suas obrigações, verificou-se que o incorporador tem dupla obrigação para com o adquirente. Tem uma obrigação de dar, ou seja, entregar imóvel concluído, averbado e individualizado. Portanto, verifica-se claramente que se trata de alienação de produto ao consumidor. A segunda obrigação é de fazer, que consiste na construção de unidade imobiliária, assim, tem-se a caracterização de serviço previsto no §2º do art. 3º do CDC.    

2.6. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às Incorporações Imobiliárias

            Depois de toda exposição dos princípios constitucionais e consumeristas, após a análise dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço, em comparação aos conceitos de incorporador, adquirente e unidade imobiliária ou fração ideal, é inegável que o Código de Defesa do Consumidor tem aplicabilidade à Lei das Incorporações.

Cláudia Lima Marques afirma que:

A aplicação do CDC ao contrato é pacífica, mas este ‘diálogo das fontes’ se dará entre a lei especial (Lei 4.591/64), o CDC, o Código Civil de 2002 (CC/2002) e a Lei do Patrimônio de Afetação (Lei 10.931/2004), sendo que esta acabou trazendo substanciais modificações à incorporação imobiliária no Brasil. (2011, p. 462)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também se manifestou sobre a aplicabilidade do CDC à norma especial que trata de incorporação imobiliária no REsp. 80.036/SP, cuja parte da ementa se transcreve:

O contrato de incorporação, no que tem de específico, é regido pela lei que lhe é própria (Lei 4.591/64), mas sobre ele também incide o Código de Defesa do Consumidor, que introduziu no sistema civil princípios gerais que realçam a justiça contratual, a equivalência das prestações e o princípio da boa-fé objetiva. (STJ online)

            Para Melhim Namem Chalhub, deve-se atentar para as características próprias de cada negócio jurídico, posto que, os contratos de consumo e de incorporação tem estruturas e conteúdos particulares.

Disso decorre obviamente, que a eventual aplicação de princípios e normas contidas no CDC não deve ser feita de modo indiscriminado, devendo, antes ser verificada a adequação da norma à realidade fática e à tipicidade do contrato em questão, pois, na verdade, normas relativas às relações de consumo não são dotadas de fungibilidade que as tornem suscetíveis de aplicação sem ressalvas aos contratos de incorporação, salvo quanto às cláusulas gerais comuns a todas as modalidades de contrato. (2012, p. 328)

Das ideias expostas, conclui-se que não se pode interpretar as leis de forma estanques, isoladas do contexto social e do caso concreto. É necessário, pois, que exista um diálogo entre as diversas fontes legislativas, capazes de, juntas, dar o melhor entendimento sobre o direito em questão. Assim leciona Marques:

O diálogo das fontes é, pois, a aplicação simultânea, compatibilizadora, das normas em conflito, sob à luz da Constituição, com efeito útil para todas as leis envolvidas, mas com eficácias (brilhos) diferenciadas a cada uma das normas em colisão, de forma a atingir o efeito social (e constitucional) esperado. O brilho maior será da norma que concretizar os direitos humanos envolvidos no conflito, mas todas as leis envolvidas participarão da solução concorrentemente. (2011, p. 628)

A aplicação do CDC, indiscriminadamente, sobre os contratos de incorporação imobiliária, não parece realmente ser o melhor entendimento. Entretanto, comprovada a relação jurídica de consumo, e existindo uma interpretação do direito mais favorável ao consumidor no CDC ou no Código Civil ou em qualquer outro diploma legal, inclusive, deve-se privilegiar o vulnerável, não em detrimento do incorporador, no caso, fornecedor, mas porque assim determina a Constituição, quando eleva, à categoria de garantia fundamental, a proteção do consumidor.


Notas

[1] O ente previsto na alínea “c” do art. 31 não será objeto desse estudo pois se trata de situação abordada pelo Direito Administrativo.

[2] Art. 16. Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva no caso do artigo 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo.

[3] Os arts. 640 e 641 do Código de Processo Civil foram modificados pela Lei nº 11.232/2005 e ganharam nova redação e numeração, passaram a ser o arts. 466-C e 466-A, respectivamente

[4] “Os direitos de 3ª dimensão ou geração são relativos ao princípio da fraternidade. Na verdade, o Código de Defesa do Consumidor tem relação com todas as três dimensões. Todavia, é melhor enquadrá-lo na terceira dimensão, já que a Lei Consumerista visa à pacificação social, na tentativa de equilibrar a díspar relação existe entre fornecedores e prestadores”. (TARTUCE, p. 9, 2014) 

[5] Essa exceção não será objeto de estudo pois é objeto do Direito Administrativo


Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Brasília, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 30 mar. 2014

______. Lei nº 4.591 de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Brasília, 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4591.htm> Acesso em: 30 mar. 2014.

______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm> Acesso em: 30 mar. 2014.

______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm> Acesso em: 30 mar. 2014

______. Lei no 10.931, de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei no 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis no 4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm> Acesso em: 30 mar. 2014

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6 ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

MARQUES Jr, William Paiva. in Revista da Faculdade de Direito. Influxos do Neoconstitucionalismo na descodificação, micronormatização e humanização do Direito Civil, Fortaleza, v.34, n.2, p. 313-353, jul/dez 2013

MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais. 3 ed. rev., atual. e ampl. De acordo com o Código Civil de 2002 – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

NUNES, Luis Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 8 ed. rev. atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 11 ed. rev. atual. e ampli. Segundo a legislação vigente – Rio de Janeiro: Forense 2014.

RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 3 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.

SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assunção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 3. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014

WATANABE, Kazuo. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011 v. II

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Sobre o autor
Oton Fernandes Mesquita Junior

Advogado e sócio fundador do escritório Themótheo & Fernandes Advogados Associados; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC; Pós-graduado em Direito Imobiliário pela Faculdade Metropolitana - FAMETRO em parceria com a Escola Superior da Advocacia do Ceará - ESA; Pós-graduando em Direito Civil pela UNIDERP – Anhanguera em parceria com a Rede de Ensino LFG; Pós-graduando em Direito Processual Civil pela UNIFOR; Corretor e avaliador de imóveis credenciado pelo CRECI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JUNIOR, Oton Fernandes. Comentários sobre incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3997, 11 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28219. Acesso em: 3 mai. 2024.

Mais informações

O texto aqui publicado faz parte do 2º e 3º capítulos do Trabalho de Conclusão de Curso - TCC que será defendida pelo autor em maio de 2014 para obtenção do título de graduação no curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC

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