Artigo Destaque dos editores

Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso

Exibindo página 2 de 3
18/06/2014 às 12:22
Leia nesta página:

3 – Tributação do ilícito penal X Tributação das conseqüências econômicas (ou do proveito) decorrentes do ilícito penal: a delimitação do problema.

Ante o exposto até aqui, é de se indagar: afinal, no exercício do seu poder de tributar, será realmente legítimo ao Estado fazer incidir tributos sobre o proveito auferido com a prática de crime?

Trata-se, o tema acima proposto, de questão atinente ao estudo dos limites infraconstitucionais do Estado ao poder de tributar. E a questão, como bem lembrou Ricardo Lobo Torres, ganha especial relevo na medida em que toca aspectos do direito penal. Afinal, como compatibilizar o preceito legal que consagra o princípio “pecunia non olet” (art. 118 do CTN), com, por exemplo, o art. 91 do Código Penal, o qual afirma que um dos efeitos da condenação é justamente a perda, em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática de ilícito penal? Como tributar algo que já foi objeto de seqüestro em favor da União ou de terceiros, isto é, bens que não se encontram no âmbito de disponibilidade do particular?

Inicialmente, cumpre distinguir entre tributação do ilícito penal e tributação das conseqüências econômicas (ou do proveito) decorrentes deste ilícito. Quanto ao primeiro, a doutrina, procedendo à devida distinção entre os conceitos de hipótese de incidência tributária e fato gerador, é praticamente unânime ao afirmar que o legislador não pode definir uma hipótese de incidência colocando a ilicitude como seu elemento essencial.

Por todos, afirma Hugo de Brito Machado:

Não se pode, entretanto, admitir um tributo em cuja hipótese de incidência se inclua a ilicitude. A compreensão do que se está afirmando é facilitada pela distinção, inegável, entre hipótese de incidência e fato gerador do tributo. Cuida-se, com efeito, de dois momentos. O primeiro é aquele em que o legislador descreve a situação considerada necessária e suficiente ao surgimento da obrigação tributária. Nessa descrição a ilicitude não entra. O outro momento é o da concretização daquela situação legalmente descrita. Nessa concretização pode a ilicitude eventualmente fazer-se presente. Aí estará, assim, circunstancialmente. Sua presença não é necessária para a concretização da hipótese de incidência do tributo. (MACHADO: 2003, p. 129-130)

Ressalte-se que o legislador não pode definir uma hipótese de incidência tributária colocando a ilicitude como elemento essencial. A ilicitude só é elemento essencial na hipótese de incidência da norma punitiva. Assim, se na hipótese de incidência da norma está a ilicitude colocada como elemento essencial, a prestação correspondente será uma sanção e não um tributo. (MACHADO: 2004, p. 384).

Em sua clássica obra “Hipótese de incidência tributária”, Geraldo Ataliba, com a clareza e a maestria que lhe é peculiar, também distingue os dois conceitos em comento:

A doutrina tradicional, no Brasil, costuma designar por fato gerador tanto aquela figura conceptual e hipotética – consistente no enunciado descritivo do fato, contido na lei – como o próprio fato concreto que, na sua conformidade, se realiza, hic et nunc, no mundo fenomênico. Ora, não se pode aceitar essa confusão terminológica, consistente em designar duas realidades tão distintas pelo mesmo nome. (...) Tal é a razão pela qual sempre distinguimos estas duas coisas, denominando “hipótese de incidência” ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e fato imponível ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incidência. (...) Duas realidades distintas – quais sejam, a descrição hipotética e a concreta verificação – não devem ser designadas pelo mesmo termo. (...) Para bem discernir as duas hipóteses, tão distintas, julgamos conveniente designar a descrição legal, portanto hipotética, dos fatos idôneos para gerar a obrigação tributária, por hipótese de incidência. Há, portanto, dois momentos lógicos (e cronológicos): primeiramente, a lei descreve um fato e di-lo capaz (potencialmente) de gerar (dar nascimento a) uma obrigação. Depois, ocorre o fato; vale dizer: acontece, realiza-se. (...) Preferimos designar o fato gerador in abstracto por “hipótese de incidência” e in concretu por “fato imponível”, pelas razões já expostas. (ATALIBA: 2006; p. 54-55).

 Não se admite, portanto, que o ato ou negócio ilícito figure como elemento essencial da norma de tributação. Assim, e. g., a prática do rufianismo (art. 230 do Código Penal), atividade ilícita que é, não pode ser definida como hipótese de incidência tributária de qualquer tipo de exação fiscal, sob pena de tornar sanção (e não tributo) a prestação correspondente à obrigação tributária dela decorrente, em manifesta afronta ao art. 3º do CTN. Ora, seria vedada uma hipótese de incidência tributária que previsse “tributação sobre o rufianismo”.

 O mesmo, contudo, segundo alguns autores, não se pode afirmar quanto ao proveito decorrente da prática do rufianismo. E este é justamente o ponto sobre o qual se pretende aqui discorrer. Desta feita, voltemos à indagação anteriormente proposta: tomando por base o exemplo do rufianismo e considerando que o fato gerador do imposto de renda (IR) é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza (art. 43 do CTN), estaria o Estado permitido a fazer incidir referida exação fiscal sobre o proveito auferido através da prática daquele fato criminoso?

A jurisprudência dos nossos tribunais (ver os seguintes julgados[4]), seguindo a mesma linha pugnada pela doutrina majoritária e ressaltando o fato de ser da essência do direito tributário a objetividade na identificação dos signos presuntivos de riqueza, tem dado ampla aplicação ao princípio em comento diante de proveito auferido por ocasião da prática de ilícito penal.

Como afirmado anteriormente, a nosso ver a questão esbarra em delicado aspecto que concerne ao direito penal e ao direito tributário. Tributo (art. 3º do CTN) ou perdimento de bens (art. 91 do CP): qual dos dois institutos de direito deve incidir sobre o proveito auferido pela prática de um ilícito penal?


4 – Da limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico.

Como é cediço, o poder de tributar é um dos aspectos da soberania estatal. Na consecução de suas atividades e realização de seus fins o Estado necessita de recursos financeiros. Para tanto, vale-se, dentre outros meios, da tributação.

Não se pode olvidar, porém, que o Estado, no exercício do seu poder de tributar, encontra-se condicionado a várias limitações constitucionais, bem como à observância de um verdadeiro estatuto constitucional de defesa do contribuinte. Afinal, o Estado é parte ativa de uma relação tributária, a qual, longe de ser uma relação de poder, é uma relação jurídica. E, como tal, regida está por uma série de princípios e regras, de modo que já não é razoável admitir-se a relação tributária como relação puramente de poder. Como típicos exemplos de limitação constitucional ao poder de tributar vale fazer referência às imunidades

A essas idéias já consagradas entre os tributaristas, ousamos ressaltar outra espécie de limitação imposta ao Estado quando no exercício do seu poder de tributar. Consiste ela na limitação infraconstitucional ao poder de tributar decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico. Explicamos. Do fato de o legislador constituinte ter resolvido traçar as principais diretrizes e limitações ao exercício do poder de tributar diretamente na Constituição Federal não podemos extrair a conclusão de que ali estão, taxativamente, todas as limitações. O rol constitucional não é exaustivo, como deixa claro o próprio art. 150 da Constituição, o qual assevera que as garantias que estatui existem “sem prejuízo de outras (...) asseguradas ao contribuinte”.

Assim, ao lado das limitações que decorrem diretamente da Constituição Federal, não podemos olvidar das “limitações infraconstitucionais”, de que são exemplos as isenções e, no que concerne mais propriamente ao que se pretende demonstrar neste trabalho, aquelas decorrentes do princípio da consistência do ordenamento jurídico.

Este princípio diz respeito à coerência, harmonia e à unidade interna do ordenamento jurídico, à condição de que este não deve apresentar, simultaneamente, normas jurídicas que se excluam mutuamente, isto é, que sejam antinômicas entre si. O Direito, na sua acepção objetiva, é representado pelo conjunto de textos legais reunidos em um ordenamento jurídico e este deve representar, por exigência social, um todo organizado, em que cada norma ocupe o lugar que lhe corresponde e desempenhe a função que lhe compete.

Como reconhece Norberto BOBBIO,

A situação de normas incompatíveis entre si é uma das dificuldades frente as quais se encontram os juristas de todos os tempos, tendo esta situação uma denominação própria: antinomia. Assim, em considerando o ordenamento jurídico uma unidade sistêmica, o Direito não tolera antinomias (Teoria do ordenamento jurídico – Capítulo 3)

Alude Juarez Freitas que:

as antinomias jurídicas são definidas como sendo incompatibilidades possíveis ou instauradas, entre normas, valores ou princípios jurídicos, pertencentes, validamente, ao mesmo sistema jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade interna e coerência do sistema e para que se alcance a efetividade de sua teleologia constitucional. (FREITAS: 1995, p. 62)

Nesse mesmo sentido, assevera Fábio Ulhôa Coelho:

Ao estudar o material bruto derivado dos atos de vontade expressos em normas jurídicas, a ciência do Direito deve descrevê-lo como um sistema lógico. As antinomias perdem o sentido de contradição através da ciência jurídica, que identifica a ordem positiva como um sistema dinâmico de normas, abstraindo o seu conteúdo e relacionando-as pela trama de competências para a sua produção. O resultado será a própria constituição da ordem jurídica (COELHO: 2001, p. 9-10)

De fato, a complexidade dos problemas que atingem a sociedade exige a existência de normas harmônicas, coerentes entre si, que permitam aos operadores jurídicos uma solução pronta e certeira.

Quando se trabalha com a técnica de interpretação sistemática do Direito, estabelece-se como premissa que o Direito não pode ser interpretado com atenção a uma regra isolada. Esta deve ser compreendida como parte integrante de um grande sistema, possuindo com as demais regras jurídicas uma harmonia lógica. Carlos Maximiliano diz que é dever do aplicador comparar e procurar conciliar as disposições sobre o mesmo objeto e, após harmonizar o conjunto, deduzir o sentido e o alcance de cada uma (MAXIMILIANO: 1994, p. 356).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Por óbvio, as regras jurídicas não são ditadas pelo legislador com o propósito de unidade, mas ao aderirem ao ordenamento jurídico, embora desvinculados dos propósitos iniciais de sua origem, formam um todo único com o ordenamento. Assim, os operadores jurídicos podem defender a tese segundo a qual o ordenamento jurídico é consistente, de forma que as soluções para todos os impasses, especialmente entre normas, neles se encontram presentes, até porque o fenômeno das antinomias jurídicas ocorre com freqüência por circunstâncias inevitáveis e especialmente porque aqueles encarregados de confeccionarem as leis não possuem, nas mais das muitas vezes, o conhecimento técnico necessário para essa atividade.

Pode-se dizer, portanto, que a construção do sistema jurídico exige a solução dos conflitos de normas, pois todo sistema deve ter coerência interna, possibilitando, desta forma, uma solução por meio da lógica jurídica.

Pelo exposto acima, quer-se chegar a duas conclusões preliminares: primeiramente, que o Estado está, sim, sujeito a limitações infraconstitucionais quando no exercício do seu poder de tributar; em segundo lugar, que estas limitações podem decorrer de regras concernentes a normatização de outras searas do direito, tendo por escopo a afirmação do princípio da consistência, unidade e harmonia do ordenamento jurídico pátrio.


5 – Tributação (art. 3º do Código Tributário Nacional) X Perdimento de bens enquanto efeito da condenação (art. 91 do Código Penal).

Pois bem. No ponto, chamamos a atenção para o aparente conflito entre dois institutos de direito: de um lado o efeito secundário da condenação consistente no perdimento de bens, e, de outro, a tributação. Aparente conflito este que consiste na potencial incidência de ambos sobre o proveito decorrente da prática de um ilícito penal.

 Já adentrando na solução proposta para a questão que se coloca, cumpre traçar as devidas distinções entre esses dois institutos.

Tem-se, como único elemento comum entre os institutos do tributo e do perdimento de bens, o fato de que ambos emanam da vontade coativa do Estado para atingir o patrimônio particular de forma compulsória. De fato, a semelhança entre os dois institutos se restringe a este pontual aspecto. Nada mais há de comum entre eles. Ao contrário, saltam aos olhos suas diferenças. Senão, vejamos a partir dos aspectos contrapostos de um e outro abaixo sugeridos:

1) segundo definição insculpida no Código Tributário Nacional, “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cuja valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”; por sua vez, o perdimento de bens é doutrinariamente conceituado como um dos efeitos secundários, automáticos e extrapenais gerados pela sentença penal condenatória transitada em julgado;

2) o objetivo do tributo pode ser a arrecadação de recursos financeiros ao Estado (função fiscal), a interferência no domínio econômico (função extrafiscal) ou o custeio de atividades que não são próprias do Estado, mas que o mesmo desenvolve através de entidades específicas (função parafiscal); já o objetivo do perdimento de bens é coadjuvar a pena para que esta mais se aproxime do mal praticado pelo agente, e que, por conseguinte, cumpra a contento as suas metas de repressão e prevenção do crime. Nesse sentido, o perdimento de bens também impede que o produto do crime enriqueça o patrimônio do delinqüente, constituindo-se em medida salutar, saneadora e moralizadora.

3) o tributo se insere como objeto de estudo do direito tributário; o perdimento de bens é matéria exclusivamente de direito penal;

4) a hipótese de incidência de um tributo será sempre a descrição de um fato lícito; o fato remoto que gera a aplicação do perdimento de bens será sempre um ilícito penal;

5) o tributo é a expressão consagrada para designar a obrigação ex lege, um dever de caráter patrimonial e, por isso, um sacrifício pecuniário, posto a cargo de certas pessoas, de levar dinheiro aos cofres públicos; o perdimento de bens se apresenta como uma sanção secundária decorrente da prática de um ilícito penal (não é por outro motivo que o CTN, para distinguir o tributo das multas e penalidades - gênero do qual o perdimento de bens é espécie - , inseriu a cláusula “que não constitua sanção de ato ilícito”);

6) a Constituição da República proíbe a utilização do tributo com caráter confiscatório; o perdimento de bens é um exemplo de medida confiscatória, na medida em que busca evitar que o condenado obtenha qualquer vantagem com a prática de uma infração penal;

7) o poder de criar tributos é repartido entre os vários entes políticos, de modo que cada um tem competência para impor prestações tributárias dentro da esfera que lhes é assinalada pela Constituição; já sobre o perdimento de bens, enquanto efeito secundário da condenação criminal, compete tão somente à União legislar (art. 22, I, CF/88).

Extrai-se da exposição acima que os institutos em comento não se confundem. De um lado temos a afirmação do jus tributandi estatal, de outro um dos poderes decorrente do jus puniendi. Ambos pertencem ao monopólio estatal, porém cada qual se aplica em contextos fático-jurídicos específicos, quais sejam, a ocorrência do fato gerador no caso dos tributos e a sentença condenatória transitada em julgado no caso do perdimento de bens.

Em síntese, quer-se dizer que os institutos apresentam hipóteses legais de incidência distintas, a determinar que diante de uma situação de fato, portanto, ou haverá a incidência de um tributo ou a aplicação do perdimento de bens. Um ou outro; nunca ambos, sob pena de colisão entre os dois ramos do direito e afronta ao princípio da unidade do sistema jurídico pátrio.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Daniel Lin Santos

Natural de Belo Horizonte/MG. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 2008. Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Estudos da Área Jurídica Federal e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Foi servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Ingressou na carreira de Advogado da União pelo concurso de 2008, tomando posse em 10 de dezembro de 2010, com lotação e exercício na Procuradoria da União do Estado do Acre. Em 12 de janeiro de 2012, tornou-se Procurador-Chefe Substituto da Procuradoria da União do Estado do Acre. Desde março de 2014 está lotado na Consultoria Jurídica da União no Acre.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Daniel Lin. Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4004, 18 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28285. Acesso em: 1 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos