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A regulação social na saúde suplementar:

problemas e perspectivas

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05/07/2014 às 13:40
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3. Outros problemas derivados da máxima extensão da regulação social

O aumento desmensurado da carga regualtória de viés social tem implicações diretas no crescimento das falhas de mercado. Se um dos objetivos da regulação é controlá-las, um mecanismo que as agrave deve ser revisto. Trata-se do risco moral e da assimetria de informação.

Ao contrário da comercialização da maioria dos outros produtos ou serviços, nos quais podem ser observadas claramente suas condições e sua qualidade, os serviços de saúde são comercializados de modo que os agentes transacionais são dotados naturalmente de incentivos a deter informações pessoais e usá-las em benefício próprio. Essa dicotomia informacional entre as duas partes transacionais, chamada assimetria de informação, e as barreiras e os custos altos de monitoramento da mesma, que não permitem resolver de forma categórica esse problema, fazem com que se observe uma relação própria entre quem vende e quem compra serviço em questão. É a chamada relação principal-agente.

Segundo João Érisson Pimenta Melo[18],

a relação principal-agente surge quando o principal depende do agente para alcançar um objetivo, mas não consegue monitorar perfeitamente as informações e as ações desse agente, que tem interesse em detê-las sem custos. As relações principal-agente são diferenciadas pelo autor em hidden action e hidden information. A primeira (ação oculta) é também conhecida na literatura como risco moral (moral hazard) e se caracteriza como um oportunismo do agente ex post ao estabelecimento do contrato, ou seja, ações de determinados agentes (principal) para maximizarem suas próprias utilidades em detrimento dos outros (agente), em situações em que aqueles não arcam com os custos totais de suas atitudes, e, devido aos contratos restritos, é impossível a atribuição dos prejuízos totais ao agente responsável. De modo geral, o risco moral ocorre quando o agente econômico altera seu comportamento em relação ao que foi previsto no contrato, o que só é possível porque suas ações não são monitoradas ou só o são a um custo significativo, dessa forma o agente não arca totalmente com seus custos.

No mercado de seguros, o agente, avesso ao risco, estabelece um contrato com a seguradora para esta arcar com as despesas de um eventual sinistro. Em troca, o segurado paga um prêmio mensal, no caso dos planos de saúde. O agente usufrui de bem-estar devido à transferência de seu risco à seguradora, e esta, por trabalhar com vários seguros hipoteticamente com riscos diferentes, diversifica os custos sob uma margem, extraindo daí seus rendimentos.

No mercado da saúde suplementar, o risco moral é observado quando um indivíduo, ao contratar o seguro ou o plano de saúde, passa a utilizar o serviço muito mais que na situação de ausência de seguro, seja porque ele passa a ter hábitos de saúde, alimentação e exercícios piores, ou mesmo porque estando assegurado o agente possui um custo marginal por utilização dos cuidados médicos igual ou próximo a zero. É o caso da ida periódica ao médico ou dentista, o que inclusive atenta contra a lógica de um seguro contra sinistros.

 Dessa forma, o benefício marginal auferido pela utilização do serviço médico é bem menor que os custos marginais dos mesmos serviços arcados pela operadora de planos de saúde. Na medida em que os agentes não arcam com esses custos totais e assim não são incentivados a igualar os benefícios aos custos, haverá uma ineficiência (falha) no mercado, gerando uma redução do bem-estar social[19].

Fica claro que a fixação de um rol de procedimentos penaliza todos aqueles que são cuidadosos para não utilizar de forma leviana o plano de saúde. Em primeiro lugar, os indivíduos saudáveis. Em segundo, aqueles que não utilizam de forma corriqueira os serviços do plano quando não têm infortúnio. Em terceiro, os que não necessitam de tratamentos caros de saúde, ou mesmo prescindem do pagamento pelo mesmo, já que é ofertado pelo Sistema Único de Saúde de qualquer forma. A escolha por ingressar no sistema de saúde suplementar tem se demonstrado cada vez mais difícil para o indivíduo sem grande prognóstico de utilização do plano, já que deve comprar em bloco um sem número de serviços que provavelmente não irá utilizar mas que, de alguma forma, vê-se obrigado por não confiar no sistema de saúde público.

Em razão das regras rígidas e que protegem os usuários consumidores de planos individuais ou familiares, o seguimento dos planos individuais, aqueles que devem seguir o plano-referência, se tornou desinteressante em termos comerciais para pequenos empresários, que tiveram seus preços elevados e agravadas as suas condições de ingresso. A contrario sensu, os planos empresariais, os chamados planos coletivos, propiciaram uma guerra concorrencial muito forte com preços muito mais atrativos ao mercado. A ANS permite a livre negociação para reajuste para esse tipo de produto, diferentemente dos planos individuais, cujo índice de reajuste anual sempre foi determinado por aquele agente regulador.

A tese ora demonstrada é bem clara quando comparamos os reajustes de planos de saúde com o crescimento do país ou mesmo com a inflação. O reajuste para abril e maio de 2014 ficará em 9,04%, muito acima do previsto para a inflação no período, em torno de 5%. Em seu site, a ANS justifica essa discrepância com os fundamentos já destacados aqui. Para o órgão,

é importante esclarecer que o índice de reajuste dos planos de saúde não é comparável com índices gerais de preço, ou “índices de inflação”. Isso porque os “índices de inflação” medem a variação de preços dos insumos de diversos setores, como por exemplo: alimentação, habitação, transporte, educação, além do item saúde e cuidados pessoais. O índice de reajuste divulgado pela ANS não é um índice de preços. Ele é composto pela variação da frequência de utilização de serviços, da incorporação de novas tecnologias e pela variação dos custos de saúde, caracterizando-se como um índice de valor[20].


Conclusão

Diante desse quadro, parece importante flexibilizar a escolha regulatória da ANS para um modelo sem o rol de procedimentos, em que operadoras de planos de saúde possam ofertar planos com menores custos àqueles que não desejam pagar tanto por serviços que não vão utilizar. Essa metodologia ajudaria a conter falhas de mercado como o risco moral, a seleção adversa e a assimetria de informação, hoje alargadas pela ampla cobertura obrigatória.

Nesse sentido, faz-se necessário voltar a regulação para outra teoria do interesse público, a de uma concepção econômica de bem-estar (welfare economics approaches). Segundo Morgan e Yeung, nessas,

em linhas gerais, justifica-se a regulação como uma forma de intervenção estatal no mercado como meio de solucionar as chamadas falhas de mercado. Essas falhas incluiriam, por exemplo, monopólios naturais, externalidades, assimetrias de informação entre firmas e consumidores, etc. Em última análise, a intervenção estatal seria justificada para emular as condições de funcionamento de um mercado perfeito[21].

A persecução de interesses como a melhoria da saúde da população é uma demanda constitucional legítima, e deve ser encorajada, mas por meio de estratos públicos. Forçar o pagamento de prêmio de seguro saúde a eventos a que alguns beneficiários não desejam que sejam cobertos é, além de penalizar o consumidor, desestimular as próprias operadoras, que perdem notória competitividade. A diminuição da competição e a exigência de cobertura de procedimentos de altíssima complexidade reduzem o mercado a empresas grandes e que tendem a criar corpos hospitalares e um conjunto de prestadores próprio para reduzir custos. Dessa forma, o mercado fecha-se ainda mais e o objetivo de atenção à saúde fica comprometido.

Não se busca um retorno completo à regulação puramente econômica anterior ao rol de procedimentos, mas que se flexibilizem as políticas de atenção á saúde no mercado privado, que não tem o condão de substituir ou de complementar o Sistema Único de Saúde.

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Referências

ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA e BRASIL, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Diretrizes Clínicas na Saúde Suplementar 2012. Fls. 41 e seguintes. Obtido via internet. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_clinicas_2012.pdf. Visitado em 09/12/2013

BAHIA, Ligia. Risco, seguro e assistência suplementar no Brasil. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/portal/upload/forum_saude/operacao_sistema/FF1.pdf. Visitado em 15/12/2013

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BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Rol de Procedimentos 2012. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/consumidor/1261-rol-de-procedimentos-2012.

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da ANS. Obtido via internet. Disponível em .http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/tt_as_02_dczeresnia_acoespromocaosaude.pdf. Visitado em 15/12/2013.

LAENDER, Gabriel Boavista. AS TEORIAS DA REGULAÇÃO E AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL. Curso de Pós-Graduação em Direito Público/AGU/UnB

MELO, João Érisson Pimenta. O RISCO MORAL NO MERCADO DE PLANO DE SAÚDE: UMA POTENCIAL CONTRIBUIÇÃO À EFICIÊNCIA REGULATÓRIA DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). VII Prêmio SEAE de Monografias, 2012

MIRANDA, Cláudio Rocha de. Gerenciamento de Custos em Planos de Assistência à Saúde. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/TT_AS_20_ClaudioMiranda_GerenciamentodeCusto.pdf. Visitado em 15/12/2013

ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Brasil: fortalecendo a governança para o crescimento. Relatório sobre a reforma regulatória. OCDE, 2008

SANTOS, F.P., MALTA, D.C., MERHY, E.E. A saúde suplementar e o modelo assistencial brasileiro: situação atual e perspectivas. Ciência &Saúde Coletiva, v. 13, n. 5, 2008


Notas

[1] ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Brasil: fortalecendo a governança para o crescimento. Relatório sobre a reforma regulatória. OCDE, 2008, p. 114 e 115.

[2] Definição de saúde segundo a Constituição da Organização Mundial de Saúde (Obtido via internet. Disponível em http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/OI/OMS/OMS.htm. Visitado em 10/12/2013.

[3] SANTOS, F.P., MALTA, D.C., MERHY, E.E. A saúde suplementar e o modelo assistencial brasileiro: situação atual e perspectivas. Ciência &Saúde Coletiva, v. 13, n. 5, 2008, p. 1463.

[4] LAENDER, Gabriel Boavista. AS TEORIAS DA REGULAÇÃO E AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL. Curso de Pós-Graduação em Direito Público/AGU/UnB, p. 2.

[5] BRASIL, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Atenção à saúde no setor suplementar : evolução e avanços do processo regulatório. Rio de Janeiro : ANS, 2009, p. 23

[6] idem, p. 55.

[7] Idem, p. 56.

[8] Idem, p. 56

[9] BAHIA, Ligia. Risco, seguro e assistência suplementar no Brasil. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/portal/upload/forum_saude/operacao_sistema/FF1.pdf. Visitado em 15/12/2013, p. 15.

[10] Idem, p. 17.

[11] Idem, P. 18

[12] Idem, p. 19.

[13] CZERESNIA, Dina.  Ações de promoção à saúde e prevenção de doenças: o papel

da ANS. Obtido via internet. Disponível em .http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/tt_as_02_dczeresnia_acoespromocaosaude.pdf. Visitado em 15/12/2013.

[14]Gerenciamento de Custos em Planos de Assistência à Saúde. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/TT_AS_20_ClaudioMiranda_GerenciamentodeCusto.pdf. Visitado em 15/12/2013, p. 7.

[15] Idem, p. 57.

[16] BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Rol de Procedimentos 2012. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/consumidor/1261-rol-de-procedimentos-2012. Visitado em 05/12/2013.

[17] ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA e BRASIL, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Diretrizes Clínicas na Saúde Suplementar 2012. Fls. 41 e seguintes. Obtido via internet. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_clinicas_2012.pdf. Visitado em 09/12/2013.

[18] O RISCO MORAL NO MERCADO DE PLANO DE SAÚDE: UMA POTENCIAL CONTRIBUIÇÃO À EFICIÊNCIA REGULATÓRIA DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). VII Prêmio SEAE de Monografias, 2012, p. 12.

[19] Idem, p. 13.

[20] BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Reajuste anual de planos de saúde. Obtido via internet. Disponível em http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/consumidor/2172-reajuste-anual-de-planos-de-saude. Visitado em 15/12/2013.

[21] LAENDER, Gabriel Boavista. AS TEORIAS DA REGULAÇÃO E AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL. Curso de Pós-Graduação em Direito Público/AGU/UnB, p. 1

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Sobre o autor
Felipe Germano Cacicedo Cidad

Procurador Federal, graduado em Direito pela UERJ e especialista em Direito Público pela UNB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. A regulação social na saúde suplementar:: problemas e perspectivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4021, 5 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28534. Acesso em: 6 mai. 2024.

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