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Virtù e Fortuna em Maquiavel a partir da obra ‘O Príncipe’

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31/05/2014 às 18:19
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2  Fortuna

A figura da Fortuna representa, assim como a Virtù, uma das formas de aquisição do poder. Contudo, diversamente da Virtù, ela não garante a estabilidade. Para Maquiavel, aqueles que somente pela Fortuna de outros se tornam príncipes, sem grandes esforços, encontram sérias dificuldades em manter o principado. Tais apóiam-se exclusivamente na vontade e na Fortuna de quem lhes concedeu o poder, situação, segundo o autor, volúvel e instável. Diz Maquiavel que tais homens não sabem nem porque devem manter o principado, sendo que sempre viveram como particulares.[5] Nas palavras do autor (2008, pg. 28):

Não sabem porque, a menos que sejam homens de grande engenho e Virtù, não é razoável que saibam comandar tendo sempre viveu como particulares; e não podem porque não têm força que lhes possam ser amigas e fiéis. Além disso, os Estado que nascem subitamente – como todas as outras coisas da natureza que nasce e crescem depressa – não podem ter raízes e ramificações, de modo que sucumbe na primeira tempestade. Ao menos que – como já disse – aqueles que repentinamente se tornaram príncipes sejam de tanta Virtù que saibam rapidamente preparar-se para conservar aquilo que a Fortuna lhes colocou nos braços e estabeleçam depois os fundamentos que outros estabeleçam antes de se tornarem príncipes.

A figura da Fortuna é tratada de forma mais exaustiva no vigésimo quinto capítulo da obra ‘O príncipe’ – ‘De quanto pode a Fortuna nas coisas humanas e de que modo se pode resistir-lhe’. Para o autor, muitos pensam que as coisas do mundo são governadas por deus ou pela Fortuna. Contudo, afirma Maquiavel (2008, pgs. 119 ss), há o livre-arbítrio, considerado como possuidor de metade das responsabilidades. A Fortuna possui metade do arbítrio de nossas ações, não sendo exclusiva, determinante na ação. Um príncipe, logo, que se apoia exclusivamente na Fortuna tende a fracassar. Maquiavel utiliza-se de uma metáfora interessante, a do rio caudaloso – nas palavras do autor (2008, pg. 120):

Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam aas planícies, arrasam as árvores e as cassas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que, voltando a calma, os homens tomem providências, construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa. O mesmo acontece com a Fortuna, que demonstra a sua força onde não encontra uma Virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta o seu ímpeto para onde sabe que não foram erguidos diques ou barreiras para contê-las. Se considerares a Itália, que é sede e origem dessas alterações, verás que ela é um campo sem diques e sem qualquer defesa; caso ele fosse convenientemente ordenado pela Virtù, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esta cheia não teria causado as grandes mudanças que ocorrem, ou estas em sequer teriam acontecido.

Mesmo, porém, sendo inconsistente e indomável, para Maquiavel ainda assim a Fortuna poderia ser controlada para o benefício do príncipe. Aqui se associam as variáveis da Fortuna e da Virtù. Segundo Marilena Chauí (2000, pg. 204), a Fortuna para Maquiavel é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferece-se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la.  Portanto, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a inconstância da Fortuna, Maquiavel introduz a Virtù política como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más e a Fortuna como um problema a ser enfrentado e dominado pelo príncipe.

Para Bobbio (1998, pg. 87), por Fortuna Maquiavel entende o curso dos acontecimentos que não dependem da vontade humana. Diríamos hoje: o "momento subjetivo" e o "momento objetivo" do movimento histórico. Entretanto, mesmo não dependendo da vontade, a Fortuna pode ser domada pelo príncipe de virtú.

Em Skinner, temos a Fortuna em Maquiavel como uma referência do pensamento renascentista. A forma da Fortuna é encontrada reiteradamente no texto, sendo encontrada em todo o decorrer da obra -  já no início Maquiavel apresenta a Fortuna como sendo uma das forma de aquisição do poder; também reforça a ideia de que a da Fortuna também pode auxiliar os principados novos. Contudo, o que o autor mais ressalta, segundo Skinner (1996, pg. 141), “é o caráter instável da deusa Fortuna, de que resulta ser louco todo aquele que confiar, por alguma duração de tempo, em seus favores.”

Para Maria Tereza Sadek, Maquiavel parece, no penúltimo capítulo da obra, concordar com a determinabilidade da ação por parte da Fortuna, contudo, nas palavras da autora (Sadek, 1993, pg. 22):

No entanto, o desenrolar de sua exposição mostramos, com toda clareza, que se trata de uma concordância meramente estratégica. Concorda para pode desenvolver os argumentos da discordância. Assim, após admitir o império absoluto da Fortuna, reserva poucas linhas a seguir, ao livre-arbítrio pelo menos o domínio da metade das ações humanas. E termina o capítulo demonstrando a possibilidade da Virtù conquistar a Fortuna. Assim, Maquiavel monta um cenário no qual a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto poder incontrastável da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a possibilidade de se fazer uma aliança com a Fortuna, esta não é mais um a força impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pelos antigos. Ele é mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta a entregar-se aos homens bravos, corajosos, aqueles que demonstram ter Virtù.

Enfim, vê-se que a Fortuna não é uma figura política a ser desprezada pelo governante, mas sim conquistada, administrada através dos preceitos da Virtù. Nesse sentido, mesmo sob certa determinação histórica, o príncipe, desde que com Virtù pode garantir sua liberdade dessa dominação e estabelecer seu principado de forma estável sem a interferência da Fortuna.


Conclusão

O trabalho procurou destacar a grande relevância dos dois principais conceitos da filosofia política de Maquiavel – a Virtù e a Fortuna. Resultado de um pensamento efetivo dos assuntos de estado, Maquiavel expressa através destas variáveis as necessidades de um governante na obtenção e manutenção do poder, sem influências do moralismo tradicional, medieval.

A Virtù, como visto, é uma figura utilizada para representar a liberdade, o livre-arbítrio do governante em relação à imprevisibilidade e determinabilidade da história. Ele, o governante, tem a capacidade, através da Virtù, de superar, controlar as ocasiões e acontecimento do seu governo; construir uma estratégia capaz de conquistar a Fortuna, estratégia principalmente regrada pela flexibilidade política. Também a Virtù representa metade das ações do príncipe. Portanto, vê-se claramente em Maquiavel o espaço da liberdade em seu modelo, restringindo, contudo, a moralidade e o pensamento medieval, isto é, a virtú representa um conceito diverso de liberdade de arbítrio do pensamento tradicional.

Já a Fortuna representa uma deusa grega, uma mulher que, segundo Maquiavel, escolhe entre os mais viris, como maior Virtù, aquele que vai conquistá-la. Refere-se às circunstâncias, as imprevisibilidade dos acontecimentos e a determinação de parte da história. A Fortuna não deve ser evitada ou ignorada pelo príncipe, pois é inevitável e sempre presente, mas deve ser conquistada pelo mesmo. O príncipe não pode depender dela, contudo deve fazer da mesma sua aliada, controlá-la, não através de uma força imoderada ou impensada, mas através da habilidade e flexibilidade política.


Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Filosofia Política. Trad.: Carmen C. Varriale etal. 11ª Ed. Brasília: Ed. UNB, 1998.

______________. Teoria das formas de governo. Tradução: Sérgio Bath. 10ª Ed. Brasília: Ed. UNB, 1994.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

MAQUIAVEL, Nicolo. O Príncipe. Tradução Maria Goldwasser. São Paulo: Martin Fontes, 2008.

SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem Fortuna, o intelectual sem Virtù. Os clássicos da política. Org. Francisco C. Weffort. 4ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.

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SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


Notas

[1] Complementa Maquiavel (2008, pg. 26): A tão elevados exemplos, quero acrescentar outro menor, mas que mantém certa relação com eles e que servirá como modelo a todos os outros semelhantes: é o de Hierão de Siracusa que, de simples cidadão, transformou-se em príncipe de Siracusa. Também ele nada recebeu da Fortuna senão a ocasião. Quando estavam os siracusanos subjugados, escolheram-no para capitão e a partir daí mereceu tornar-se seu príncipe. Foi de tamanha Virtù, mesmo quando cidadão particular, que sobre ele se dizia que quod nihil illi deeerat ad regnandum preater regnunt. Hierão extinguiu a milícia antiga e organizou uma nova, deixou as amizades antigas e contraiu novas, e assim que teve seus próprios amigos e soldados pode construir, sobre esta base, todo um edifício; assim teve muito trabalho para conquistá-lo mas pouco para conservá-lo.

[2] Quando ao principado Eclesiástico, diz Maquiavel (2008, pg. 53): Agora, resta-nos somente discorrer sobre os principados eclesiásticos, cujas dificuldades são todas anteriores à sua posse, porque são obtidos ou por Virtù ou por sorte e são mantidos sem uma nem outra, pois têm por base antigas instituições religiosas, de tamanho poder e natureza tal, que conservam seus príncipes no governo, qualquer que seja o modo como procedam e vivam. Somente eles possuem Estados e não os defendem; súditos, e não os governam; e os Estados, embora não sejam defendidos, não lhes são tomado; e os súditos, embora não sejam governados, não se preocupam com isso e não podem separar-se deles; logo, só estes principados são seguros e felizes. Mas, sendo eles regidos por razões superiores, que a mente humana não pode alcançar, não falareis sobre eles, pois sendo erguidos e mantidos por Deus, seria homem presunçoso e temerário se discorresse a seu respeito.

[3] Observa-se, contudo, que apesar de temido entre os soldados, o príncipe jamais se deve fazer odiado ou desprezado, o que também é um aspecto da Virtù. Segundo Maquiavel, o governante de Virtù não deve injuriar a comunidade, utilizando-se da Virtù para jamais ser odiado ou desprezado. (2008, pg.92)

[4] Interessante observar a tradição política dos autores de “espelhos do príncipe”. (Vide Skinner, 1996, pg. 139 e 144) Skinner esclarece tal predomínio do pensamento monárquico e excessivamente ligado à religião em tais autos

[5] Vide Skinner, 1996, pg. 139 ss. acerca da superioridade da vida pública em detrimento da vida priva em Maquiavel.

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Sobre o autor
Rubin Assis da Silveira Souza

Pós-graduando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Pelotas (RS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Rubin Assis Silveira. Virtù e Fortuna em Maquiavel a partir da obra ‘O Príncipe’. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3986, 31 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29050. Acesso em: 3 mai. 2024.

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