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A (im)prescindibilidade do inquérito policial

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21/06/2014 às 16:22
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3 A (IM)PRESCINDIBILIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL

É possível observar que o estudo do inquérito policial se realiza em segundo plano por parte dos juristas pátrios, já que parcas são as lições destinadas a esse instituto, apesar de haver uma substanciosa quantidade de artigos – vinte no total – dispostos no Livro I, Título II do Código de Processo Penal. Constata-se, assim, uma falta de conhecimento prático da matéria e, especialmente, uma lacuna científica quanto ao estudo das reais potencialidades que o inquérito policial detém para garantir uma justiça eficiente e garantidora dos direitos fundamentais.

A doutrina clássica define o inquérito policial como sendo uma peça meramente informativa, dispensável, de natureza inquisitiva, preparatória da ação penal, destinada apenas à apuração de uma infração penal e de sua autoria. Em face disso, poucos doutrinadores se aprofundam no assunto, atuando de forma descomprometida com o instrumento, como se ele não possuísse grande significância. Ademais, há, ainda, aqueles que advogam sua eliminação do ordenamento jurídico.

Muitas foram as tentativas de expurgar o inquérito do ordenamento pátrio, e isto ocorre porque os juristas se prendem a uma visão demasiadamente técnica, valendo-se apenas da interpretação literal dos artigos. Além disso, alguns doutrinadores defendem a criação dos juizados de instrução, enaltecendo apenas as supostas facetas negativas do inquérito, reduzindo-o em suas funções e potencialidades.

Com efeito, eles proclamam que o inquérito policial constitui instrumento a serviço da acusação, como se ele somente servisse para imputar condutas ilícitas a alguém. Destacam, ainda, a sua característica inquisitiva, a inobservância ao princípio do contraditório e da ampla defesa, relacionando-o com procedimentos ultrapassados, absolutamente desrespeitosos aos direitos e às garantias individuais. Já outros, menos radicais, pregam apenas que o inquérito deve deixar de ser presidido pela autoridade policial para o ser pelo Órgão Ministerial.

Por outro lado, não obstante densa doutrina nacional composta por juristas argumentando a dispensabilidade do inquérito, ousa-se discordar e ainda afirmar que tal instituto é fundamental. E mais: é imprescindível.

As funções do inquérito policial, que são da natureza do processo criminal, existem de longa data e especializaram-se com a aplicação efetiva do principio da separação da polícia e da judicatura. De fato, no Código de Processo de 1832, já existiam alguns dispositivos sobre o procedimento informativo, mas não havia o nomen juris de inquérito policial.

O inquérito policial, esse nomen iuris e características fundamentais próprias, surgiu no Brasil com a edição da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, encontrando-se no art. 42 daquela lei a seguinte definição:

O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito.[47]

Destarte, há quase um século e meio, o inquérito policial é instrumento oficial de persecutio criminis extra-juditio[48].

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que inovou na ampliação dos direitos e das garantias individuais, estabelecendo um novo modelo de atuação estatal, buscou-se adequar o inquérito às diretrizes impostas pela nova constituinte. Contrariamente, as constituições anteriores estabeleciam apenas limites à atividade do Estado, protegendo os direitos e as garantias individuais, que constituem os direitos de defesa das pessoas com relação às violações praticadas pelos representantes do Estado, chamados “direitos negativos” ou “liberdades públicas”.[49]

Com a evolução e a humanização da sociedade, as aspirações das pessoas foram se modificando e o Estado assumiu um novo papel no que se refere à proteção da dignidade humana. O Estado abandonou a posição de mero coadjuvante e assumiu a condição de protagonista da promoção e defesa dos direitos e das garantias individuais. Da fase de reclamar, passou-se à de reivindicar os meios para que os direitos se tornassem efetivos. São os denominados direitos positivos, pois reclamam não a abstenção, mas a presença do Estado em ações voltadas à proteção desses direitos.[50]

Por outro lado, a investigação criminal, principal atribuição da Polícia Judiciária, pela sua natureza invasiva, viola, muitas vezes, os direitos individuais das pessoas investigadas. Por isso, a “Constituição Cidadã” estabeleceu uma série de princípios com a finalidade de evitar arbitrariedades de modo a proteger a dignidade da pessoa humana.[51]

Entre os dogmas constitucionais, ganham relevo os seguintes princípios e diretrizes: o princípio da inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas; o princípio da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário, proibição dos chamados “juizados de exceção”, garantia do “sistema de persecução criminal acusatório”, e o princípio do devido processo legal, da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.

Nesse contexto, as características da investigação criminal e a natureza do inquérito policial precisaram se adequar aos princípios estabelecidos pela nova ordem constitucional. Assim, diante da necessidade de compatibilizar a atuação da Polícia Judiciária com o ordenamento jurídico vigente, principalmente, no que se refere aos direitos individuais da pessoa investigada, o inquérito policial se revestiu de novo aspecto, transformando-se em um instrumento de promoção de justiça criminal, por intermédio da busca da verdade real das circunstâncias e da autoria dos delitos.

O procedimento que materializa as investigações criminais é, portanto, considerado instrumento de promoção de justiça criminal, na medida em que concilia a defesa dos direitos e as garantias individuais da pessoa investigada com a atividade de repressão criminal.

João Romano da Silva Junior prega que:

Via de regra os doutrinadores apenas limitam-se em asseverar que o inquérito policial é peça meramente informativa e prescindível, cingindo-se, assim, a uma visão técnica mais apressada e descomprometida com o instituto, em interpretação restrita da lei. Deve-se ter em mente que a técnica não pode estar divorciada de princípios balizadores, muito menos da prática.

[...]

Todo o arcabouço jurídico processual-penal tem como supedâneo o Inquérito Policial, e sua principal característica dentro do nosso Estado Democrático de Direito é de ordem garantista, ou seja, ele é pedra angular da segurança jurídica, e bem assim, atua decisivamente para a tão almejada justiça.[52]

Nesse esteio, a Polícia Judiciária, objetivando se adequar à nova ordem constitucional, criou a Portaria nº 18 da Delegacia Geral de Polícia de São Paulo, de 25-11-1998, que instituiu procedimentos extremamente éticos e técnicos a serem adotados pelas autoridades policiais na condução dos seus trabalhos. Dispõe sobre medidas e cautelas a serem adotadas na elaboração de inquéritos policiais de modo a assegurar o respeito aos direitos da pessoa humana. Criou condições propícias para que o Delegado de Polícia possa, na presidência do inquérito policial, respeitar os direitos do investigado, assegurando transparência à primeira fase da persecução penal, preservando a dignidade e a cidadania daquele que é investigado e, ao mesmo tempo, afastando qualquer atitude arbitrária.

Dessa forma, o inquérito policial vem sendo otimizado, coadunando-se no atual contexto garantista processual penal, constitucional, democrático, observando os direitos humanos e preservando a dignidade e a cidadania do investigado, levando sempre em consideração os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Sem motivos para a eliminação do inquérito policial, na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, justifica-se a preferência pela conservação do inquérito policial, argumentando:

O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do território de jurisdição sejam fáceis e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiquidade.[53]

Considerando a vasta extensão territorial do Brasil, as dificuldades de acesso a muitas regiões e a considerável falta de instrução do povo, ficaria difícil, senão impossível, dispor a Justiça dos mecanismos necessários com os quais pudesse amealhar a instrução preliminar através do juizado de instrução. Ademais, cumpre ressaltar que o inquérito policial não é, nem encerra um juízo de formação de culpa ou de pronúncia, como existe nos países que adotam, em substituição ao inquérito, os juizados de instrução, os quais são presididos por um juiz que conclui uma atividade com o veredicto de possibilidade, ou não, de ação penal. No sistema brasileiro, o inquérito policial simplesmente investiga, colhe elementos probatórios, cabendo ao acusador apreciá-los no momento de dar início à ação penal e, ao juiz, no momento do recebimento da denúncia ou da queixa.[54]

Constatando-se a impossibilidade prática da utilização dos juizados de instrução, analisar-se-á a possibilidade de dispensa do inquérito, por parte do Ministério Público, como supedâneo da denúncia. Observa-se que os artigos 12, 27, 39, § 5º, 40 e 46, §1º do Código de Processo Penal até dão a falsa noção de que o inquérito policial é dispensável, já que o Ministério Público pode deflagrar ação penal sem que se passe pela fase de instrução provisória.[55]

O artigo 12 do Código de Processo Penal preconiza que o inquérito policial acompanhará a denúncia ou a queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. Portanto, caso não sirva de base à denúncia ou à queixa, não acompanhará nem uma nem outra, podendo, dessa forma, ser dispensado.[56]

O artigo 27 do Código de Processo Penal prega que qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que cabem a ação penal pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria, indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Logo, haja vista que a função do inquérito policial é fornecer os elementos necessários à propositura da competente ação, ele ficaria dispensado caso os elementos imprescindíveis estiverem presentes.[57]

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Com efeito, o artigo 39, § 5º, do Código de Processo Penal é bem claro ao dispensar o inquérito policial nos casos em que o Ministério Público, com a representação, oferecer todos os elementos que o habilitem à promoção da ação penal[58]. Por sua vez, o artigo 40 do Código de Processo Penal dispõe que, caso os juízes e os tribunais verifiquem, em autos e papéis, a existência de crime de ação pública, deverão remeter ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia, portanto, caso em tais papéis existam a prova da materialidade delitiva e os indícios de autoria, estaria dispensado o inquérito policial.[59]

Nesse sentido, o artigo 46, § 1º, do Código de Processo Penal é taxativo quanto à dispensabilidade do inquérito policial quando reza que, dispensado o inquérito policial , o prazo para oferecimento da denúncia começará a contar a partir do recebimento das peças de informação ou da representação.[60]

Ocorre que, na prática, quase a totalidade das ações penais em curso ou já transitadas em julgado foram precedidas de um inquérito policial. Ademais, é muito comum a instauração de inquéritos por meio da requisição dos próprios promotores de justiça, além de pedidos de realização de diligências durante o curso da ação penal, objetivando obter novas provas imprescindíveis.

Assim, se há previsão legal para se recorrer a um órgão técnico-jurídico – a Polícia Judiciária, órgão especializado na investigação criminal, que, na sua essência, está muito mais próxima da atividade criminosa –, não há que se falar na dispensabilidade do inquérito policial. A Polícia Judiciária constitui o único órgão estatal que se faz mais presente nas cidades do território brasileiro, possibilitando uma maior interação com os problemas de uma comunidade, e que dispõe de um instrumento especializado, o inquérito policial, idôneo a amealhar elementos sólidos e coerentes para ancilar futura ação penal. Assim, não há justificativa razoável para se pular essa fase integrante do nosso sistema processual acusatório.[61]

Nesse diapasão, é força admitir que o Estado tenha de esgotar todos meios de que dispõe, colimando a preservação de direitos do cidadão ante o seu jus libertatis[62], a manutenção do prestígio e da credibilidade das instituições e a aplicação correta do jus puniendi[63]. Sem embargo, é cediço que o processo configura-se como uma pena em si mesmo, uma vez que causa ao réu inocente um grande descrédito social e uma profunda humilhação, ainda que seja absolvido ao final do processo.

Em Criminologia, fala-se na teoria do labeling approach [64]ou teoria do etiquetamento, em que a pessoa processada acaba sendo estigmatizada pela sociedade como uma pessoa criminosa, deixando-se absolutamente de lado o princípio constitucional da presunção de inocência. Frente ao exposto, é incontestável o fato de que o processo acaba causando severas consequências desabonadoras ao réu. Daí a importância do inquérito policial para se evitar processos infundados.[65]

Nesse sentido, a professora Ada Pellegrini Grinover leciona que o processo criminal é um dos maiores dramas para a pessoa humana. Para sua instauração, portanto, exige-se um mínimo de fumo do bom direito.[66]

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, é possível observar, na exposição de motivos do próprio Código de Processo Penal, razões suficientes para considerar indispensável o inquérito policial:

[...] há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido. Por que, então, abolir-se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena.[67]

Guilherme de Souza Nucci advoga nesse mesmo sentido:

O simples ajuizamento da ação penal contra alguém provoca um fardo à pessoa de bem, não podendo, pois, ser ato leviano, desprovido de provas e sem um exame pré-constituído de legalidade. Esse mecanismo auxilia a Justiça Criminal a preservar inocentes de acusações injustas e temerárias, garantindo um juízo inaugural de delibação, inclusive para verificar se realmente se trata de fato definido como crime.

[...]

 O inquérito é um meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis, mentiras ardilosamente construídas para prejudicar alguém, evitando-se julgamentos indevidos de publicidade danosa.[68]

Nesse esteio, também sustenta Paulo Rangel: “Na democracia, ninguém pode ser acusado sem provas, e o inquérito policial é exatamente este suporte de que serve o Estado para proteger o indivíduo”[69]. Assim, o inquérito impede que a ação penal seja desencadeada, de forma desnecessária, comprometendo indevidamente a imagem das pessoas.

Os direitos e as garantias individuais, notadamente, os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, são violados quando o integrante do Ministério Público, com suposto fundamento no art. 27 e no § 5º do art. 39 do Código de Processo Penal, dispensa o inquérito policial e oferece a denúncia com base apenas nas informações sobre o fato e a autoria, contidas em representação formulada por pessoa do povo, muitas vezes, sem fundamento[70]. Tendo em vista os danos que a instauração precipitada da ação penal acarretam, tais informações, de acordo com a nova ordem constitucional, precisam ser confirmadas pela Polícia Judiciária, antes de serem utilizadas pelo órgão da acusação. O inquérito policial funciona, assim, como um filtro processual, evitando que acusações infundadas cheguem até a fase do processo, considerando que o processo configura-se como uma pena em si mesmo, uma vez que causa ao réu inocente um grande descrédito social e uma profunda humilhação, ainda que ele seja absolvido ao final do processo.

Ademais, a fase de investigação pré-processual tem seu caráter de economia processual, evitando a mobilização desnecessária do Judiciário em situações nas quais, na realidade, após uma melhor verificação, apura-se não haver conduta criminosa a ser perseguida, ou mesmo em casos nos quais, embora haja fatos típicos, não se conseguem elementos suficientes para embasar uma acusação consistente. Além disso, a realização dessa fase pré-processual poupa o indivíduo das agruras de um processo açodadamente instaurado sem um mínimo probatório que justifique a persecução penal em juízo.[71]

 Para que se instaure o inquérito policial, é necessário apenas que se vislumbre a possibilidade de ter havido um fato punível, independentemente do conhecimento de sua autoria, já que uma das funções da investigação preliminar é, justamente, descobrir o autor do crime. Assim, deve haver um maior grau de certeza com relação à autoria do crime para que se possa exercer o direito constitucional de ação.

Fogem da realidade aqueles que imaginam a possibilidade de uma pessoa ser processada, julgada e condenada sem que seja feita pelo magistrado uma análise detalhada, criteriosa e ponderada de tudo. Pode-se dizer ainda que o inquérito policial oferece segurança também aos magistrados, sendo mais fácil corrigir uma eventual falha policial do que um erro judiciário.

Tal assertiva conduz à conclusão de que os artigos 12, 27, 39, § 5º, 40 e 46, §1º, todos do Código de Processo Penal, que consideram o inquérito policial um procedimento dispensável, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988[72]. Como se sabe, o fenômeno da recepção material assegura a preservação do ordenamento jurídico anterior e inferior à nova Constituição, desde que, com ela, se mostre materialmente compatível, visto que, caso as leis infraconstitucionais não sejam compatíveis com a nova Constituição, perderão a validade e, assim, não poderão conviver com esta simultaneamente.

Deve-se lembrar que a Constituição Federal[73] foi clara em seu artigo 144 ao estabelecer as funções da polícia, seja ela civil, seja federal, para investigar e servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário (daí o nome Polícia Judiciária) na atribuição de investigar infrações penais e sua autoria.[74]

Em suma, os dispositivos do Código de Processo Penal, que consideram dispensável o inquérito policial, apesar de não terem sido revogados por uma lei posterior, não têm validade, porque não estão em harmonia com a nova Carta Política.

Nesse sentido, Luiz Flávio Borges D'Urso entende que o inquérito policial é indispensável:

Fico a meditar sobre a origem do inquérito policial, sua utilidade e conveniência e invariavelmente concluo por sua indispensabilidade como supedâneo a enfeixar as provas que são produzidas durante esta importante fase, que é preliminar ao processo criminal, aliás, talvez a fase que justifique o próprio processo.[75]

Mais adiante, o advogado arremata: “De outra parte, a elucidação do crime, por intermédio da busca da verdade real, revela o caráter imparcial da investigação realizada pela Polícia Judiciária”[76].

No que tange às críticas realizadas ao inquérito e no que diz respeito ao seu caráter inquisitorial, realizar-se-ão as seguintes considerações.

 A inquisitoriedade do inquérito, já tratada anteriormente, mas precisamente no tópico 2.5.8 do capítulo anterior, significa que as atividades persecutórias se concentram nas mãos de uma única autoridade e não há o cabimento dos princípios da ampla defesa e do contraditório. No entanto, deve-se atentar que, na fase pré-processual, ainda não existem partes, apenas uma autoridade investigando o indiciado, que se apresenta como objeto da atividade investigatória, resguardados, entretanto, seus direitos e suas garantias individuais. Na fase investigatória, não há a incidência da ampla defesa e do contraditório, pois no inquérito não há a incriminação de ninguém, uma vez que não há acusação nem defesa.

Ademais, a Constituição Federal[77], em seu artigo 5º, LV, proclama os princípios do contraditório e da ampla defesa, referindo-se aos litigantes e aos acusados em geral, não podendo aplicá-los, consequentemente, ao indiciado, já que não há, nessa fase pré-processual investigativa, uma acusação propriamente dita, pois existe apenas uma autoridade realizando investigações.

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues explanam que:

A inquisitoriedade permite agilidade nas investigações, otimizando a atuação da autoridade policial. Contudo, como não houve a participação do indiciado ou suspeito no transcorrer do procedimento, defendendo-se e exercendo contraditório, não poderá o magistrado, na fase processual, valer-se apenas do inquérito para proferir sentença condenatória, pois incorreria em clara violação ao texto legal.[78]

A inexistência de contraditório, nessa fase preliminar, que é o inquérito policial, proporciona, assim, maior eficiência investigativa, garantindo a boa atuação da Polícia Judiciária. Há ainda doutrinadores, como Rogério de Lauria Tucci e Luiz Flávio Gomes, que defendem a subsistência do princípio do contraditório postergado ou diferido, isto é, no inquérito policial a prova pericial será produzida, a qual poderá ser posteriormente contraditada posteriormente em juízo.[79]

Não obstante, o inquérito policial possui valor probatório relativo, com fundamento na inexistência de contraditório e ampla defesa.

No tocante ao valor probatório do inquérito, Mário de Leite Barros Filho proclama:

 [...] quando se afirma que os elementos de convicção produzidos no inquérito policial têm valor probatório relativo pretende-se dizer que a validade desse material depende da compatibilidade com as provas colhidas na fase judicial. Em razão do sistema do livre convencimento motivado, adotado no ordenamento normativo vigente, as informações produzidas na fase inquisitiva deverão ser confrontadas com as provas colhidas na etapa do contraditório, verificando se existe entre elas consonância.[80]

Com efeito, recentemente, a Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, alterou a redação do art. 155, do Código de Processo Penal, estabelecendo que o juiz não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação criminal, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.[81]

É relevante registrar que a utilização do advérbio “exclusivamente”, no caput do art. 155 do CPP, é uma demonstração inequívoca de que o juiz poderá se valer, também, dos elementos de informações produzidos no inquérito policial para fundamentar sua decisão. Em expressões menos técnicas, isso significa que a alteração legislativa em tela valorizou o inquérito policial, possibilitando que o material colhido durante a fase inquisitiva seja levado em consideração pelo magistrado na formação de sua convicção. Esse novo texto do caput do artigo 155 do Código de Processo Penal atribui valor às provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, coligidas no inquérito, concedendo às partes o direito ao contraditório, na fase judicial.

Realizadas tais considerações, cabe agora argumentar a impossibilidade de o representante do Ministério Público presidir o inquérito policial. Embora esse seja um tema que admite várias colocações doutrinárias, inviável é a postura do membro do Ministério Público ao assumir a função de órgão investigatório, substituindo a Polícia Judiciária.

 De fato, a Constituição Federal foi clarividente ao estabelecer as funções da polícia para investigar e servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário na atribuição de apurar a ocorrência e a autoria de crimes e contravenções penais. Ao Órgão Ministerial fora destinado a titularidade da ação penal, ou seja, a exclusividade no seu ajuizamento, salvo quando, diante de sua inércia, a ação penal não for intentada no prazo legal, caso em que o particular tem a faculdade de manejá-la, conforme o art. 5, LIX, CF[82].  Ainda há que constatar que o art. 129, III, da Constituição Federal[83] prevê a possibilidade de o promotor elaborar, apenas, o inquérito civil.[84]

Guilherme de Souza Nucci, nesse sentido, assevera:

O que não lhe é constitucionalmente assegurado é produzir, sozinho, a investigação, denunciando a seguir quem considerar autor de infração penal, excluindo, integralmente, a polícia judiciária e, consequentemente, a fiscalização salutar do juiz. O sistema processual penal foi elaborado para apresentar-se equilibrado e harmônico, não devendo existir qualquer instituição superpoderosa. Note-se que, quando a polícia judiciária elabora e conduz a investigação criminal, é supervisionada pelo Ministério Público e pelo Juiz de Direito. Este, ao conduzir a instrução criminal, tem a supervisão das partes – Ministério Público e advogados. Logo, a permitir-se que o Ministério Público, por mais bem intencionado que esteja, produza de per si investigação criminal, isolado de qualquer fiscalização, sem a participação do indiciado, que ouvido precisaria ser, significaria quebrar a harmônica e garantista investigação de uma infração penal.[85]

Portanto, ao Ministério Público cabe, tomando este a ciência da prática de um delito, requisitar a instauração da investigação pela Polícia Judiciária, controlar todo o desenvolvimento da persecução investigatória, requisitar diligências e, ao final, formar sua opinião, optando por denunciar ou não a eventual pessoa apontada como autora.

Nesse diapasão, vale lembrar que o ordenamento normativo brasileiro adotou o sistema de persecução criminal acusatório. Tal sistema se caracteriza por ter, de forma bem distinta, as figuras do profissional que investiga (a autoridade policial), do que defende (o advogado), do que acusa (o integrante do Ministério Público) e do que julga (o magistrado) o crime, oferecendo, assim, condições para o delegado de polícia trabalhar sem a preocupação de produzir provas para absolver ou condenar o investigado.[86]

Não obstante o promotor de justiça ser conhecedor dos elementos necessários para a deflagração da ação penal, não é admissível que ele investigue ou dirija as investigações e ainda figure como órgão acusador, embaraçando a total imparcialidade que deve munir a instrução pré-processual. Efetivamente, a Polícia Judiciária, por não ser parte, não se envolve, nem se apaixona pela causa investigada. O delegado de polícia não está vinculado a nenhum dos lados, acusação ou defesa, pois, agindo como um magistrado, tem apenas compromisso com a verdade dos fatos.[87]

É forçoso ressaltar que, no que tange às infrações penais, cabe exclusivamente à Polícia Judiciária, dirigida por delegado de polícia de carreira, a realização das investigações preliminares, uma vez que é um órgão especializado nessa função, possui contato direto com o evento criminoso e é absolutamente imparcial, pois está desvinculado ao posterior processo. Ademais, o delegado de polícia é aquele que tem o primeiro contato com o crime e que, portanto, apresenta as melhores condições para efetivar a investigação. Daí ter-se-á de ter em mente que a autoridade policial atua como um juiz da fase pré-processual, já que é imparcial e age como um garantidor dos direitos fundamentais dos sujeitos passivos da investigação.

Tudo isso evidencia a importância do inquérito policial, esse instituo que, apesar de haver movimentos que almejam sua eliminação, o direito brasileiro jamais poderá expurgar, visto que é uma peça informativa imprescindível. Isso, porque ele constitui a efetiva coleta das provas que ainda se encontram latentes, pois com o tempo se torna ainda mais difícil a obtenção destas.

Ainda cumpre destacar que, apesar de o Ministério Público ser o destinatário imediato do inquérito policial, este não tem como finalidade o oferecimento de denúncia, mas apenas fornecer elementos comprobatórios da autoria e da materialidade de um crime visando, assim, à busca da verdade real. Ademais, devemos lembrar também de outro argumento usado por aqueles que defendem o poder investigatório do Ministério Público, qual seja: a teoria dos poderes implícitos. Segundo essa teoria, aquele que pode o mais também pode o menos. Ou seja, o representante do parquet[88], como titular da ação penal, também poderia realizar as investigações necessárias para a propositura da ação.

Contudo, a teoria mencionada não tem cabimento quando se trata de matéria na qual se verifique a atribuição de poderes explícitos. Nesse contexto, conforme já expusemos alhures, o artigo 144 da Constituição Federal é expresso no sentido de dar atribuição exclusiva às polícias judiciárias para a apuração de infrações penais. Assim, pode-se afirmar que a explicitude exclui em absoluto a implicitude, não sobrando espaço para qualquer interpretação em sentido contrário.

Ainda com relação à teoria dos poderes implícitos, caso seja aceito tal argumento, também os magistrados poderiam realizar as investigações preliminares, uma vez que quem pode o mais (julgar) também pode o menos (investigar). É sabido que o juiz não pode substituir-se à atuação das partes na produção probatória, pois o papel do magistrado é complementar, objetivando esclarecer dúvida sobre ponto essencial à demonstração da verdade. Assim, a proatividade do julgador na determinação da produção de provas encontra limites na imparcialidade exigida para o julgamento do feito.[89]

Deve se atentar ainda que:

[...] embora muitos, dentre eles, grande parte de representantes do Ministério Público, defendam a eliminação do Inquérito Policial, é comum se ver Inquéritos Policiais serem instaurados mediante requerimento do Ministério Público, ou ainda, autos de inquérito policial que retornam as mãos da autoridade policial para demais diligências imprescindíveis à propositura da ação, posto que o que se vê na prática é que, quase sempre, o inquérito é a única base de que se serve o órgão acusador para o oferecimento da denúncia. Ainda, não obstante seja o Inquérito Policial peça informativa, é o mesmo, um dos poucos recursos do órgão do Ministério Público, de que se utiliza o promotor de justiça para o oferecimento da denúncia.[90]

Ressalte-se que é difícil imaginar o membro do Ministério Público se encarregando das infiltrações no meio criminoso, dos cumprimentos de mandados de busca e apreensão e da efetuação das prisões. Deve-se atentar ainda que as investigações preparatórias da ação penal, da qual o Ministério Público é o titular, só poderiam ser conduzidas por um órgão estranho àquele, pois assim se confundiria o inquisidor e o acusador na mesma pessoa, o que ocasionaria grave lesão ao sistema acusatório.

Ademais, não há que se olvidar das críticas feitas ao trabalho de investigação efetuado pela Polícia Judiciária. Entre tantas críticas, é sustentado que a polícia possui muita discricionariedade para selecionar as condutas a serem perseguidas, daí o porquê, segundo os críticos, seus atos devem ser fiscalizados pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.

Tal argumento, todavia, não prospera. Ora, uma polícia séria se pauta pelo princípio da legalidade. Dessa forma, sempre que se verificar a ocorrência de uma infração penal que esteja sujeita a ação penal pública incondicionada, a autoridade policial tem o dever de instaurar o procedimento cabível. Claro que, na condução das investigações, a autoridade policial possui certa discricionariedade, que é inerente a função investigativa, porém, sempre pautada na lei, agindo sempre de modo impessoal e preservando o interesse público.

Por sua vez, vale destacar que, no Brasil, o cargo de delegado de polícia é exercido por pessoas com excelente formação jurídica: bacharéis em Direito. Ademais, para exercerem tal cargo, eles se submetem a concursos públicos extremamente qualificados, assim como ocorre com promotores de justiça, juízes de direito, defensores públicos, procuradores do estado, entre outros.

Diante do exposto, é impossível negar a importância do inquérito policial para a persecução penal e a garantia que ele proporciona para concretização dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. O sistema penal pátrio funciona de modo interligado, e as funções estabelecidas na Constituição Federal aos órgãos que compõem a persecução penal são todas de crucial importância para o resultado final. O importante é que tais órgãos funcionem de maneira integrada e eficiente, garantido, assim, uma melhor prestação do serviço público em prol da sociedade.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Talita Regina Souza. A (im)prescindibilidade do inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29625. Acesso em: 6 mai. 2024.

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