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O imoral nas indenizações por dano moral

Resumo:


  • O texto aborda a relação entre liberdade e responsabilidade na condição humana, destacando a capacidade de escolha do homem.

  • Reflete sobre a responsabilidade individual e coletiva, mostrando como a liberdade de escolha implica em assumir as consequências de nossos atos.

  • Discute a evolução da responsabilidade objetiva na sociedade contemporânea, destacando a importância do dano e a questão dos danos morais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A banalização da conversão do dano moral em compensação financeira é questionável. A responsabilidade por danos morais é tão significativa quanto a complexidade de sua reparação.

1. Quando refletimos sobre o que constitui o essencial da condição humana, duas coisas de logo ressaltam – liberdade e responsabilidade. Isso já foi intuído desde milhares de anos atrás e está representado, simbolicamente, no documento mais representativo do mito fundamentador da civilização ocidental – a Bíblia. No Livro do Gênesis, narra-se que Deus criou o céu e a terra e para faze-lo disse Haja luz e houve luz. E assim prosseguiu, sempre ordenando. Ordenou às águas que existissem, o mesmo às estrelas e a tudo enfim. No momento final da criação, entretanto, ele não disse Haja o homem, colocando-o sob o inelutável de sua vontade. Agiu diferente. Disse: Façamos o homem e nesse façamos inseriu, no que era também criatura, um atributo negado a todas as outras já existentes – o poder de opção. Tudo quanto existente até aquele momento era apenas criatura, a partir dele, entretanto, surgia um ser distinto, ao mesmo tempo criatura e criador, porque compelida a tomar decisões e capaz de acrescentar ao quanto já criado tudo que viesse a criar. Por isso Deus prescreveu-lhe uma norma, um dever ser- Não deves comer da arvore da ciência do bem e do mal, porque se comeres dos seus frutos, morrerás ao certo. Deixou-lhe, assim, o poder da desobediência. Nesse preciso instante se pôs o dilema inafastável. Ou permanecer o homem, como todas as coisas, sob o império da necessidade e dos instintos, renunciando a sua humanidade, ou romper essa barreira e assumir todos os riscos de ser livre, tornando-se também responsável pelo seu próprio destino, submetendo-se ao imperativo da regulação social de sua conduta, obrigado a definir, individual e socialmente, o que deve e não deve ser feito.

2. Porque capaz de opção, o homem fez-se responsável. Tendo condições de fazer acontecer o que sem seu agir jamais teria acontecido, tornou-se obrigado a responder pelas conseqüências de seus atos. O relato bíblico consigna também esse primeiro momento. No episódio de Abel e Caim, está o começo da história de nossa responsabilidade. Abel, que sem dúvida morreria um dia, morreu, contudo, por ato de vontade de Caim. Por isso Deus o interpelou perguntando-lhe sobre seu irmão. E pouco lhe valeu ter respondido: Serei eu acaso guardião de meu irmão? Foi amaldiçoado, por haver matado o que ainda não tinha chegado à hora de seu perecimento, segundo o imperativo das leis que obrigam inelutavelmente tudo quanto existe. O homem revelou-se não só apto para criar, como para destruir. Tornou-se capaz de serhomicida, genocida, ecocida e até mesmo suicida. Conseqüentemente, pode ser interpelado:: Que fizeste a mim?, Que fizeste ao teu irmão? E nossa responsabilidade se instituiu em face do outro e na medida em que podemos ser interpelados pelos outro a respeito dos danos que lhe causamos, a ele ou às coisas que lhe pertencem. Impossível cogitar-se de responsabilidade sem a culpa e sem o dano. Portanto ela é impensável dissociada de um protagonista identificável, com um rosto, um nome e uma atividade, não o homem enquanto vocábulo, conceito, espécie, grupo ou coletividade, sim como alguém que pode ser interpelado: O que fizeste a teu irmão? Quando não sabemos a quem culpar, simplesmente suportamos o mal, por não podermos identificar quem no-lo causou ou, irracionalmente, praguejamos ou destruímos pessoas e coisas, acometidos de fúria, sejam elas culpadas ou não.

3. Pensar nesses termos a responsabilidade também exige de nós refletirmos sobre o que é, afinal, isso que chamamos de liberdade , de capacidade, diria mesmo, necessidade de opção de que não nos podemos libertar. A mim, sempre pareceu que ser livre é muito menos sermos capazes de fazer o que nos aprouver, pois temos perfeita consciência dos muitos obstáculos que limitam o nosso querer, e muito mais não sabermos o que devemos fazer e no entanto estarmos compelidos a decidir para viver. Por isso mesmo a liberdade já foi qualificada de "maldição". Ela não nos fez poderosos, sim temerosos. Sabemos que há um futuro, mas ignoramos o que ele será. Por força disso, experimentamos medo e ansiedade e nos embriagamos cultivando o mito da salvação ou nos deixando afogar no fugidio instante de nosso presente, porque, em verdade, se é significativo o nosso poder de agir é bem precário o nosso poder de previsão. O amanhã é sempre uma porta aberta para o imprevisível. Cada decisão humana aponta para o inesperado e para o incontrolável, pelo que lutamos por tornar o futuro sempre cada vez mais controlável e previsível. Para minimizar o medo que essa perpetua interrogação gera em nosso espírito, o homem busca soluções em termos de fé, de ciência e de técnica.

4. Quando, entretanto, aprofundamos a reflexão sobre nossa culpa, paradoxalmente concluímos que não somos rigorosamente responsáveis por nada. A sociedade nos faz e nos molda predominantemente. Há uma precompreensão que condiciona nossa abordagem dos fatos e dos acontecimentos. Sabemos sobre as coisas já pré-informados por um saber que nos foi inculcado. A par disso, nosso agir se dá num tecido de instituições que nos precederam e que não podemos, nem individual nem coletivamente, modificar em curto prazo. Somos, outrossim, condicionados por um código genético que nos impele em direções das quais, comumente, nem mesmo temos consciência. Daí a expressividade dos versos de Adélia Prado: visto do alto da janela, nenhum homem tem culpa de nada. Sempre que aprofundamos nossa análise, abrandamos nosso julgamento. E se fossemos rigorosamente justos, chegaríamos à conclusão de que ninguém é culpado sozinho por nada do que faça, por mais livre que aparente ser. Para cada falta nossa, convergiram muitas causas não percebidas, um sem numero de fatores e variáveis, pelo que, em última análise, toda culpa é sempre coletiva. Muitos se ocultam sob a capa do único que é escolhido para ser responsabilizado, deixando na sombra a culpa de todos. A necessidade de conviver sobrevivendo, entretanto, obriga-nos a responsabilizar o homem e esta determinação individual da responsabilidade sempre se fez necessária. Assim foi e é porque, simplificando, dizemos que ao homem é sempre possível dizer não em qualquer situação concreta de seu existir. Nem podemos fugir desse dilema, por mais questionável que seja a sua justiça. Se não personalizarmos a culpa, impossível cogitar de responsabilidade e reparação de danos. Tudo que acontece sem a participação do homem ou sem que seja possível identificar seu causador é inapto para gerar responsabilidade.

5. Porque tudo isso, tão evidente, problematizou-se em nosso tempo e deixou de responder às necessidades da convivência humana? Por que passamos a falar de responsabilidade objetiva, tornando-se muitas vezes irrelevante o problema da culpa? Por que se diz que o foco do interesse deslocou-se da culpa para o dano? Por que se afirma que a ilicitude do ato é descartável para determinação da responsabilidade? Em resumo – por que se excluiu da cena o mais importante dos protagonistas, o homem enquanto ser livre e responsável? Ou dizendo melhor: Por que o homem, enquanto ser inédito e irrepetível, pessoa humana, como o qualificamos, deixou de ser preservado, buscando-se apenas fixar um preço para sua mutilação ou destruição? Para tentar responder a essas perguntas, precisamos lembrar-nos de que nada acontece aos homens, em termos coletivos, como fruto do acaso ou de alguma necessidade que nos compele a percorrer predeterminados caminhos. Recuso adesão aos que afirmam sermos livres, ou aparentemente livres, em termos individuais, porém socialmente tão determinados quanto todos os seres existentes. Se a sociedade nos molda, e o faz poderosamente, não podemos esquecer que somos nós que fazemos a sociedade que nos faz. É o agir individual, tornado hábito que, socializando-se, molda as instituições da estrutura social. Sendo assim, as mudanças que se derem na origem do processo geram necessariamente transformações ao seu término, pelo que a sociedade de amanhã pode ser diferente da de hoje, como a de hoje é diferente da de ontem. Necessário, conseqüentemente, refletirmos sobre o que adquiriu força suficiente para determinar as mudanças que ocorreram e moldaram a sociedade de nossos dias, a qual, por sua vez, igualmente nos conforma.

6. A modernidade assentou em três pilares – o do Estado, o do mercado e o da comunidade. A par disso, deu visibilidade à dialética da convivência humana que se processa pela interação entre regulação e emancipação. Traduziu-se, em termos ideológicos, pela trilogia da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade; O Estado no papel de fiador da liberdade; o mercado como propiciador da igualdade; a fraternidade seria mera conseqüência da realização de ambas. A lógica intrínseca do capitalismo e o fato de haver-se confundido o desenvolvimento da racionalidade econômica com o da racionalidade tecnocientífica importou, entretanto, num déficit de fraternidade e de solidariedade. Todas as tentativas de se compatibilizar a liberdade com a igualdade resultaram frustrantes ou insuficientes para colocar a fraternidade em condições de efetivar-se. Nem o logrou o Estado como, por igual, o mercado, inexistindo, mesmo em médio prazo, no contexto da filosofia capitalista, perspectiva de que isso se faça possível. Essa realidade foi precisamente o que levou à teorização da responsabilidade objetiva que, antes de ser um avanço teórico, é uma conseqüência inelutável dos pressupostos de natureza sócio-político-econômica que a determinaram. Ao falarmos em responsabilidade sem culpa, usamos, na verdade, de um eufemismo encobridor de algo que ideologicamente precisa ser dissimulado. O puro fato da natureza, quando nos causa dano, se situa no âmbito do infortúnio, da fatalidade, da impotência humana diante de tudo quanto ainda não é capaz de controlar. Em verdade, todas as hipóteses de responsabilidade sem culpa são ocorrências em que o causador do dano e responsável por ele ou se tornou anônimo, dada a intensa mecanização e massificação da vida moderna, ou de tal modo está distanciado da vítima que seria uma injustificável exigência atribuir ao lesado o dever de identificá-lo. Sem esquecer que, em seu núcleo, a teoria do risco, a mais objetiva das teorias objetivas, apenas atende ao fato de haver-se tornado, em si mesmo, perigoso, em nossos dias, viver e conviver. E se todos somos coletivamente culpados pela adesão emprestada a esse estilo de vida, que legitimamos com o nome de progresso, tornamo-nos todos também coletivamente responsáveis. Os proveitos e vantagens do mundo tecnológico são postos num dos pratos da balança. No outro, a necessidade de o vitimado em benefício de todos poder responsabilizar alguém, em que pese o coletivo da culpa. O desafio é como equilibra-los. Nessas circunstâncias, fala-se em responsabilidade objetiva e elabora-se a teoria do risco, dando-se ênfase à mera relação de causalidade, abstraindo-se, inclusive, tanto da ilicitude do ato quanto da existência de culpa.

7. Sobre esse estado de coisas Niklas Luhmann e Raffaele de Giorgi, em trabalho intitulado de L’analisi e lo studio del rischio nelle società complesse, afirmam poder este tema " ser objeto de pesquisa sociológica e de pesquisa orientada para uma teoria da sociedade", tal sua relevância. Lembram caber às ciências sociais a tarefa de fornecer análises que tornem possível uma compreensão das condições de vida da sociedade contemporânea. O horizonte de percepção desta sociedade, esclarecem, é caracterizado por uma crescente possibilidade de decisão. E se entendermos perigo como a probabilidade de um evento futuro danoso, resultante do que pode ser imputado a algo externo, colocado fora do poder de opção do agente, será possível falar-se de risco quando um dano, qualquer que seja, for passível de ser entendido como conseqüência de uma decisão, seja ela imputável ao agente ou atribuível a um outro que não ele. Nesses termos, a sociedade contemporânea caracteriza-se pela diminuição do perigo e incremento do risco. A ciência, a tecnologia, a economia de nossos dias contribuíram para a redução do perigo. A previsibilidade e o controle que a tecnologia já permite no tocante aos acontecimentos externos autorizam esta conclusão O que é danoso por determinação externa se tornou altamente previsível e controlável, graças aos avanços da ciência. Contudo, na medida em que se tornam evidentes e mais numerosas as possibilidades de decisão em relação a comportamentos, ou na medida em que podem se tornar visíveis as possibilidades das quais depende a ocorrência de danos futuros efetivos, impõe-se a tematização dos riscos. O horizonte do futuro se retrai, a sua prospectiva se desloca do âmbito do perigo para o âmbito do risco. Os riscos, agora, estão estreitamente relacionados ao desenvolvimento da própria sociedade, ao desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da medicina, da política e em geral às transformações da estrutura nas quais se torna possível a comunicação social. Em suma, concluem, o risco se fez integrante do próprio modo de ser da sociedade contemporânea.

8. A par desse fenômeno da incorporação do risco à dinâmica da sociedade de nossos dias, fala-se também, hoje, com total procedência, em sociedade de massa, produção de massa, consumo de massa, comunicação de massa, contrato de massa, evidenciando-se o que já não pode mais ser ignorado por ninguém – um nível de interdependência entre os homens como jamais existiu antes, a par da capacidade das organizações privadas de atingirem, com impositividade bem próxima da que é especifica dos organismos estatais, um universo ponderável de sujeitos impotentes para lhes oferecer resistência eficaz. No campo delimitado por essas duas coordenadas – o incremento do risco e o crescente esgarçamento e anonimato das relações sociais - a velha responsabilidade civil viu-se compelida a buscar outros fundamentos que não a culpa individual, deduzida de um comportamento sobre o qual teria o agente algum poder de opção, procurando, contudo, ocultar a culpa social que a substituiu. Daí porque, na atualidade, deslocou-se o ponto focal da responsabilidade, justamente em sua dimensão mais significativa, a do causador imediato do dano e de sua culpa, para o imperativo da reparação do dano que, embora experimentado individualmente, tem sua causa em algo de que, mesmo indireta e remotamente, se beneficia a própria vítima.

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9. As luzes se dirigem, agora, para o que se fez centro, por sua relevância – o dano. É ele que cumpre seja reparado, independente da investigação de quem seu real causador e de sua culpabilidade, uma vez que se tornou produtora de danos a própria convivência humana na sociedade do capitalismo avançado e da revolução tecnológica. Dissociada da culpa, a responsabilidade foi vinculada ao nexo causal entre o evento e o resultado danoso, imputando-se ao agente mais facilmente identificável a responsabilidade pelo ressarcimento, ainda quando nenhum ou quase nenhum seu poder de influir sobre os acontecimentos. Responsável e vítima são apenas peças de uma engrenagem que opera segundo uma lógica impiedosa que, paradoxalmente, premia e pune tanto vitimador quanto vitimado. Para essa realidade nova, as respostas antigas se mostraram ou iníquas ou inócuas. As conseqüências dramáticas e imobilizantes a que conduziria a persistência do antigo entendimento, segundo o qual a responsabilidade se vinculava à culpa individual, já reclamara sua ultrapassagem pela teorização da culpa presumida, avançando para a responsabilidade objetiva que se pretende seja ultrapassada pela teoria do risco,, só justificável se entendida como responsabilidade coletiva, porque fruto de uma sociedade que incorporou o risco ao seu quotidiano como preço a pagar pelo que foi erigido em prioridade – o progresso tecnológico, casado à filosofia capitalista. Os danos que decorrem de atividades cuja licitude foi admitida em proveito (teoricamente) de todos, conseqüentemente em benefício da convivência social, em que pese seu componente de risco, devem ser por essa mesma sociedade suportados. Revelou-se induvidoso que se admitir a responsabilidade pelo risco, de matriz social, mantendo-se a antiga técnica de reparação às custas do patrimônio do responsável mais próximo, significaria inviabilizar-se a atividade produtiva, incapaz de arcar com o ressarcimento dos danos inerentes a essa mesma atividade, caso conservada a velha perspectiva. Para se tornar operacional a teoria do risco, sem acarretar graves disfuncionalidades, impôs-se a solução pelo seguro, que institucionaliza, em termos técnicos, um tipo de solidariedade impositiva numa sociedade de riscos. O que surgiu como um contrato entre pessoas, no qual uma delas assumia os riscos de indenizar a outra por força de algum sinistro que viesse a atingir o seu patrimônio ou a sua pessoa, tornou-se um instrumento a serviço do interesse geral, mais adequadamente definível como seguridade social ou segurança social, publicizando-se, ou socializando-se, se assim se preferir, sua configuração e sua finalidade.

10. É nesse contexto que a responsabilidade por danos morais deve também ser analisada. Para fazê-lo, impõe-se uma reflexão prévia sobre o que entendemos por dano. Tenho para mim que o elemento central do conceito é a existência de um prejuízo, da perda ou desfalque de algo que ao sujeito é passível de ser integrado, quer em termos de patrimônio, quer por inerente ao seu corpo ou a sua personalidade. Porque ocorreu o dano, deixamos de ter o que tínhamos ou se fez impossível obter o que certamente conseguiríamos. Os danos materiais, isto é, os que afetam econômica e financeiramente nosso patrimônio, são de fácil determinação. Constituem-nos os já bem conhecidos e badalados danos emergentes e lucros cessantes. Mesmo quando a lesão afeta o nosso corpo, sendo possível restabelecer-se o estado anterior, conceituam-se como danos materiais quanto seja necessário dispender para lograr esse resultado, acrescido do que deixaremos de auferir por força da lesão. Tudo quanto se fizer indispensável para retornar-se ao statu quo ante ou para minorar a perda sofrida, deve ser da responsabilidade do causador da lesão. Resta o problema da indenização devida quando a recuperação se torna inviável. Conseqüências materialmente avaliáveis podem resultar desse fato. A incapacidade total ou parcial da vítima para o trabalho, a fragilização de sua saúde e provável redução da expectativa de vida etc. Tudo isso suscetível de avaliação. Há, danos, contudo, que não afetam nosso patrimônio nem nosso corpo. Eles representam perda naquela dimensão do existir especificamente humano, todo ele constituído do sentido e da significação que emprestamos ao nosso agir, algo que se situa não nas coisas nem na materialidade de nosso corpo, porém na dimensão de nossa subjetividade. Por falta de um nome adequado, ou pela inconveniência de denomina-los por exclusão, denominamo-los de danos morais, ao invés de simplesmente serem considerados como danos não-materiais. Porque insuscetíveis de avaliação e dada a necessidade de também serem materializados, devem ser estimados em termos monetários. Outras reparações possíveis para eles foram descartadas, por incompatíveis com uma civilização em que tudo se fez mercadoria, deve ter um preço e submete-se às leis do mercado. Essa particularidade torna bem complexa a técnica do seu ressarcimento ou, com mais acerto, bem mais arbitrária e aleatória. Ainda mais entremeado de dificuldades é o problema do ressarcimento dos danos que afetam a nossa personalidade, os que provocam mudança no modo como nos víamos ou como éramos vistos (avaliados) pelos outros. Em que pesem essas peculiaridades, tenho para mim que se deve afirmar como necessário, para serem atendidos, uns e outros, os critérios fundamentadores da liquidação dos danos materiais – devem ser precisamente provados, repelindo-se, tanto como critério para certificação de sua existência quanto para sua estimativa, o juízo de valor que a vítima faz de si mesma, cingindo-nos rigorosamente a padrões socialmente institucionalizados, o que assegura o mínimo de objetividade exigido de toda e qualquer aplicação do direito ao caso concreto.

11. Há mais uma observação que gostaria de fazer. Todo e qualquer dano insere em nosso existir um incômodo, algo que se soma à perda sofrida. Os contratempos derivados do conserto do carro objeto de colisão, por exemplo, mesmo que sejam pagas as despesas com a utilização de outro veículo, nosso quotidiano foi perturbado e algum desconforto ocorreu que jamais teria ocorrido não fosse aquele ato causador do dano. O sofrimento e o risco inerentes à cirurgia e ao tratamento a que tivemos de nos submeter etc. Assim sendo, é da própria essência do dano esse acréscimo de desconforto e quebra de normalidade em nossa vida. Será este o dano moral indenizável? Se a resposta for positiva, o correto seria acrescermos ao gênero perdas e danos, além dos danos emergentes e dos lucros cessantes essa nova espécie, representada pelo incômodo ou dor que todo dano determina. Seriam eles não danos morais, sim um consectário inerente a todo dano material, devendo ser estimados em função desses mesmos danos materiais. Se não é disso que cuidamos, o que será o dano moral puro, ou seja, possível de existir inexistindo danos materiais ou que nenhuma relação mantém com os mesmos? Só nos resta afirmar que nos situamos, aqui, no espaço do que se qualifica como valor, algo especificamente humano e insuscetível de objetivação, salvo se considerado em sua legitimação intersubjetiva. Sem esse consectário, torna-se aleatório, anárquico, inapreensível e inobjetivável. Não são os meus valores os tuteláveis juridicamente, sim os socialmente institucionalizados, porque é da essência mesma do direito seu caráter de regulação social da vida humana.

12. Essa minha percepção sempre me levou a não compreender o que seja a famosa reparação pela dor experimentada por alguém, associada ao ato do sujeito a quem se atribui tê-la provocado e que, não fora isso, jamais teria sido experimentada. Nada mais suscetível de subjetivizar-se que a dor, Nem nada mais fácil de ser objeto de mistificação. Assim como já existiram carpideiras que choravam a dor dos que eram incapazes de chora-la, porque não a experimentavam, também nos tornamos extremamente hábeis em nos fazermos caripideiras de nós mesmos, chorando, para o espetáculo diante dos outros, a dor que em verdade não experimentamos. A possibilidade, inclusive, de retiramos proveitos financeiros dessa nossa dor oculta, fez-nos atores excepcionais e meliantes extremamente hábeis, quer como vitimas, quer como advogados ou magistrados. Para se ressarcir esses danos, deveríamos ter ao menos a decência ou a cautela de exigir a prova da efetiva dor do beneficiário, desocultando-a. Hipocritamente descartamos essa exigência, precisamente porque, quando real a dor, repugna ao que sofre pelo que é insubstituível substituí-lo pelo encorpamento de sua conta bancária. Daí termos também, na nossa sociedade cínica, construído uma nova forma de responsabilidade objetiva – a responsabilidade por danos morais à base de standards de moralidade abstrata, já que a moralidade concreta já nem consegue se fazer ouvir, de tão debilitada que está. O anonimato do culpado ou seu rosto coletivo e a adesão à sociedade do risco desvinculou o problema moral da culpa por danos morais, desnaturando-a. A par disso, ou como consectário disso, o anonimato da moral, por força de suas muitas e mudáveis faces, porquanto se tornou kaleidoscópica, levou à responsabilidade por danos morais sem se indagar concretamente sobre o problema moral no caso concreto. Se o filho é vitimado, o pai é premiado com uma indenização, sem se cogitar das verdadeiras relações afetivas que existiam entre este reprodutor, chamado de pai, e o fruto de sua ejaculação. Antes quanto menos dor realmente ele experimenta tanto maior é sua dor oculta para fins de indenização Não se indaga se aquele que se enche de furor ético porque teve recusado um cheque de sua emissão teve, por força disso, forte abalo emocional, ou é simplesmente um navegador esperto no mar de permissividades e tolerância que apelidamos de ousadia empreendedora. Quando a moralidade é posta debaixo do tapete, esse lixo pode ser trazido para fora no momento em que bem nos convier. E justamente porque a moralidade se fez algo descartável e de menor importância no mundo de hoje, em que o relativismo, o pluralismo, o cinismo, o ceticismo, a permissividade e o imediatismo têm papel decisivo, o ressarcimento por danos morais teria que também se objetivar para justificar-se numa sociedade tão eticamente frágil e indiferente, O ético deixa de ser algo intersubjetivamente estruturado e institucionalizado, descaracterizando-se como reparação de natureza moral para se traduzir em ressarcimento material, vale dizer,o dano moral é significativo não para reparar a ofensa à honra e a outros valores éticos, sim para acrescer alguns trocados ao patrimônio do felizardo que foi moralmente (?) enxovalhado.

13. Precisamos refletir seriamente sobre que relação traduzível em dinheiro há entre a ofensa à hora e as pessoas do ofensor e do ofendido. A honra, no mundo capitalista, também tem uma valor de mercado. Se não vale a lei da oferta e da procura, vale a lei do desencoraja e enriquece. O ofendido precisa lucrar com a ofensa e o ofensor estimar que o preço pago convida-o a sair do mercado, porque não compensador o negócio. Não me parece justo, entretanto, que o ganho do ofendido seja tão estimulante que ele se sinta tentado a explorar esse rendoso negócio. Sem esquecer o sócio de ambos os contendores, o advogado, sempre beneficiado com uma parcela não muito desprezível do resultado obtido, resultado esse impossível de ser alcançado sem que entre na cena um terceiro personagem também suspeito – o magistrado. Nossa medo é que talvez tenhamos, dentro em breve, empresas especializadas no treinamento de pessoas para habilitá-las a criar situações que levem alguém a ofende-lo moralmente. Sem esquecer que a transmudação do dano moral em dinheiro nem pede mais a repercussão social da ofensa. O que se tem que avaliar é a dimensão "subjetiva" da dor, tanto maior quanto menor o senso moral do ofendido, o que lhe dá desenvoltura para traduzir em cifras o tamanho da ofensa experimentada. Mas há também alguma esperança. Nosso tempo, tão rico em avanços tecnológicos e fantásticas descobertas no campo da biologia, já se anunciando que poderemos fabricar, no futuro, homens dos tipos que forem socialmente necessários,certamente terá também, dentro em breve, condições de fabricar artefatos eletrônicos capazes de, mediante uma simples inserção de um cartão magnético específico no aparto, registrar quanto nos é devido pela ofensa moral de que fomos vítimas, caso registrável no programa elaborado com esse objetivo.. Com simplicidade e presteza, inclusive aliviando a tremenda sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário a as diabólicas tentações que acometem advogados, vítimas e julgadores, resolveremos tudo com presteza, objetividade, eliminando o risco de sermos achacados pelos excessivamente ambiciosos que postulam e dos excessivamente magnânimos que concedem.

14. Gostaria de encerrar este meu trabalho referindo-me a quatro casos concretos nos quais tive participação como parecerista. São paradigmáticos sob dois pontos de vista – ocorreram sem que nenhuma punição houvesse para advogados, magistrados e vítimas em face de seu escancaradamente imoral e criminoso comportamento e nada têm de excepcional no quotidiano na vida forense. (a) O primeiro deles envolve um magistrado integrante de um dos nossos tribunais superiores, que acionou um grande banco de nosso país pleiteando R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) a título de danos morais, com base nos seguintes acontecimentos. Fora durante alguns anos correntista desse banco, tendo deixado de movimentar essa conta por cerca de dez anos. Ocorre que alguém, jamais identificado, apoderou-se de um talonário referente a essa velha conta corrente e que não se explicou porque, sendo inútil, foi conservado por tão longo tempo e guardado com tanto descuido, a ponto de ter sido furtado sem que do furto se desse conta o magistrado.. Esse ladrão incógnito, de posse do talonário, preencheu alguns cheques de pequeno valor, firmando-os grosseiramente com o nome do correntista negligente. O banco devolveu-os todos por impossibilidade de resgata-los, visto como inexistiam fundos para honrá-los. Obediente às normas do Banco Central, comunicou-lhe a ocorrência. O correntista descuidado, desejando obter um cheque especial de outro banco, foi informado de que era impossível consegui-lo, por ter seu nome incluído na lista elaborada pelo BACEN. Pois bem, sem ter postulado do banco de que foi correntista qualquer providencia saneadora do episódio, inclusive jamais tendo avisado ao banco de que seu talonário fora furtado, acionou-o postulando a respeitável quantia já indicada para ter sua dor oculta amenizada. Entre os fundamentos do pedido constavam as alegações de que o banco não lhe informara sobre o furto do talonário (!) e for descortês deixando de entrar em contato com ele antes de recusar o pagamento dos cheques. O julgador reduziu a indenização para R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) tendo julgado antecipadamente.a lide. (b) O segundo caso não é menos representativo. Uma microempresa da área de metalurgia comprou, em mãos de uma multinacional do ramo de alumínio, alguns tubos desse material e de determinada especificação pelo valor de R$ 2.600,00. Ingressou em juízo, depois de ter requerido e obtido uma antecipação de prova pericial realizada sem citação da requerida, com uma ação principal pleiteando danos morais no valor de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais) por danos morais, porque com os tubos, à semelhança do que ocorreu com o milagre dos peixes e dos pães. iria fabricar milhares e milhares de aros para rodas de bicicleta e dada a imprestabilidade do material vendido (apurada na tal perícia inaudita altera parsl) teve que desfazer vários contratos e ficou desacreditado na praça, sendo obrigado a vender suas quotas na sociedade. Curioso nessa artimanha primária é que o moralmente vitimado alienou suas quotas, estimadas em R$ 2.000,00 (dois mil reais), e no negócio jurídico de cessão de quotas se estabelceu que a idnenziação que viesse a obter a pessoa jurídica, autora da dmeanda, revedrteria em favor dele, pobre vítima de todas m essa conspiração do capital intenacional sem entrnhas. Para não ser prolixo, esclarecerei que aação fpoi jugalda procedente e com juglamento antecipado, visto como teve o juiz como descenesessaria a produção de provas em audiência. Nem se impressionou muito como um mdoesto ivnestimento de dois mil e pouco reais pode ocasionar tanta repercussão a ponto de proprocionar à feliz vítima um lucro de mais de cem mil por cento. Por isso foi que Pero Vaz de Caminha disse ao rei D. Manuel em aqui, em se plantando, tudo dá, e como dá...

Terceiro caso é o de uma senhorita já balzaqueana há anos que, na casa de sua sogra e no quintal dessa casa, foi atingida por um brinquedo conhecido como fadinha bailarina. Rodopiano e rodopiando, manipulado por uma criança que ficou anônima no feito, o brinquedo atingiu o olho da vítima, que, por sinal, já se submetia a tratamento oftalmológico há algum tempo. Pois bem, em virtude desse episódio doméstico, uma fábrica de brinquedos que tem, sem exclusividade, autorização para importar o artefato, de origem chinesa, foi acionada para pagar modestos cruzeiros de danos materiais e a polpuda quantia da R$ 500.000,00 como danos morais. O curioso dessa tramóia é que a vítima, caso tivesse reclamdo lucros cessantes, por ter ficado (e não ficou) totalmente incapacitada para trabalhar o resto de sua provável vida, não obteria nem a metade do reclamado a titulo de danos morais.

Para encerrar o relato, um caso mais requintado. Advogados, juizes e desembargadores se sensibilizaram com a seguinte situação. O advogado, bem acompanhado por sequazes hábeis, mandava uma pessoa humilde (no caso uma empregada de uma loja de departamentos) abrir uma conta no banco. Recebido o talonário, eram emitidos alguns cheques com fundos. Depois disso, um dos integrantes do grupo progressista imitava a assinatura do correntista e emitia cheque que sabia não ter fundos para ser honrado, em favor de um outro grupo da quadrilha. O banco, certamente, recusava o pagamento. O beneficiário do cheque, membro da quadrilha, dava conhecimento do fato à polícia e pedia fosse processada o emitente do cheque como estelionatário. Feita a perícia, concluía-se que a assinatura não era do correntista. Nesse passo, a vítima constituía procurador um dos advogados da quadrilha que acionava o banco por danos morais. No caso em que funcionei, a mpregada de salário mínimo que, inclusive, foi de logo transferida para outra cidade onde passou a trabalhar, exigia indenização de R$ 1.000.000,00, a serem recebidos por seu procurador cujo mandato lhe dava poderes plenos ou pleníssimos. Essa tramóia só mereceu corrigenda no STJ, mas sem que se tenha ouvido falar de punição para quem quer que seja.

O elenco poderia se bastante enriquecido. Acho que as preciosidade narradas são suficientes para exigir de nós alguma reflexão. Ainda quando não seja de estranhar que no momento em que os ganhos tecnológicos e os ganhos financeiros se fazem mais valiosos que a vida humana não é absolutamente de estranhar que o despudor se tenha tornado a expressão mais forte de nossa ética, também uma mercadoria destinada a proporcionar ganhos tecnológicos (teóricos) e lucros (as demandas em que os mais hábeis saberão, certamente, retirar o maior proveito mesmo que seja da menor ofensa. Desculpe, aliás, pela impropriedade do termo, não se cuida de ofensa, mas de dano moral.

11. A circunstância dessa inviabilidade de determinação objetiva, material, do prejuízo experimentado pela vítima, não circunstancial, mas essencial, é que qualifica impropriamente o dano como moral, a meu ver com o grave prejuízo de correlacionar com a moral o que com ela nada tem a ver. Para obviar os inconvenientes que disso resultam, em termos de imprecisão jurídica e arbítrio judicial, temos que desubjetivizar esses danos, construindo referenciais de natureza social como parâmetros para sua definição e estimativa. Se pretendermos sair desses limites, estaremos introduzindo no jurídico o que no jurídico é inaceitável – a tutela do subjetivo não socialmente institucionalizado, a par do arbítrio aleatoriamente controlável do decisor. Sem esquecer a agravante de que na sociedade atual, laica, pluralista, hedonista e em que a "fulguração" dos acontecimentos não deixa rastros duradouros, tal como acontece com as estrelas cadentes, a moral tornou-se algo extremamente relativo, esgarçado e sem profundidade.

Destarte, pensar a responsabilidade civil e o ressarcimento dos danos morais não escapa dessa exigência, sendo mera falácia pretender-se argumentar em termos de valores absolutos, eternos, supra-históricos e universais. Assim como os danos materiais têm que ser cumpridamente provados, os danos morais, essa misteriosa "dor" que se oculta no íntimo das pessoas, deve vir à luz com um mínimo de força de convencimento.

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Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. O imoral nas indenizações por dano moral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -366, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2989. Acesso em: 23 dez. 2024.

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