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A constitucionalidade da Lei nº 9.637/1998 - Lei das Organizações Sociais

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O modelo de parceria entre Organizações Sociais e Estado enfrenta diversas críticas quanto à possibilidade de constituir somente um mecanismo de "privatização dissimulada", visando transferir a responsabilidade da prestação de serviços essenciais.

Histórico e Motivação da Lei

Seguindo a proposta de flexibilização da gestão pública, verificou-se a delegação das funções estatais clássicas, iniciada no Governo Collor e concretizada com a implementação do Programa Nacional de Publicização 1 , criado pela Lei nº 9.637/98, que integra o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, editado pelo Ministério da Administração e Reforma do Aparelho do Estado - MARE, no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. O fim precípuo da Lei era propiciar uma prestação mais efetiva dos serviços públicos, em homenagem, portanto, ao Princípio da Eficiência, transferindo-se, ao findar a década de 90, às entidades privadas que compõem o chamado Terceiro Setor, de acordo com uma terminologia sociológica, a gestão dos bens e serviços públicos dos setores da saúde, educação, cultura, desporto e lazer, ciência, tecnologia e meio ambiente, que integram o denominado “núcleo de serviços públicos não exclusivos”, ou “compartidos”, sob a alegação de que a Constituição Federal, ao mencionar que as atividades desempenhadas por estes setores “são deveres do Estado e da Sociedade” e que são “livres à iniciativa privada”, permite a atuação, por direito próprio, dos particulares. Desta forma, “se prestadas pelo setor público, são atividades públicas de regime jurídico igualmente público”, e “se prestadas pela iniciativa privada, óbvio que são atividades privadas, porém sob o timbre da relevância pública”, nas palavras do Min. Relator Ayres Britto, por ocasião do julgamento da ADI 1923/DF, na sessão plenária de 07 de abril de 2011.


A transição do modelo de atuação do Estado da década de 1990

Após a Segunda Grande Guerra, os Estados Unidos da América assumiram posição hegemônica numa economia que hoje é globalizada, capaz de justificar a significativa influência da corrente neo-liberal, desenvolvida em resposta à crise do Welfare State, o qual, com o seu gigantismo, suas despesas e seus déficits públicos, sua ampla intervenção no campo econômico e no campo social, tornou-se a moldura em que se iniciou a discussão mundial sobre o tamanho do Estado e as medidas que deveriam ser utilizadas para reduzi-lo 2 .

Nesse contexto, ocorreram as privatizações, a liberalização, a desregulamentação, a quebra de monopólios estatais de serviços públicos e a abertura à concorrência das atividades por eles exercidas, bem como a atribuição de novos papéis aos particulares na realização de fins públicos.

Ato contínuo ao redimensionamento do Estado na seara econômica, a partir das últimas duas décadas do século XX, o Brasil implementou os processos de desestatização e de privatização em diversos setores da vida nacional 3 .

Com relação ao processo brasileiro, é importante lembrar que, no Brasil, a crise do Estado surgiu nos anos 90 e não foi a do Estado-Providência (a exemplo dos países centrais), porque ele nunca chegou a existir. O próprio direito à saúde, bem como a garantia de outros direitos sociais, são conquistas mais recentes, datada de 1988, com a Constituição Cidadão 4 .

Portanto, a crise do Estado no nosso país foi muito mais uma crise de gestão e de qualidade. É válido ainda, lembrar que o Estado nunca deixou de tentar minimizar os custos da Constituição de 1988 com os direitos sociais, muitos deles de caráter universal e gratuito, onerosos, pois, para os cofres públicos. A intenção de enxugar o tamanho do Estado sempre esteve presente, e se iniciaria com a transferência dos serviços não exclusivos, como saúde, educação, cultura, para entidades privadas.

Uma das críticas à chamada Reforma Bresser dos anos 90 foi a relegar, preferentemente, para o Terceiro Setor, sob regulação estatal, a realização de serviços públicos, em vez de introduzir modernos processos de gestão no interior da administração pública 5 .

O modelo de administração pública proposto pela Reforma do Estado pauta-se nos seguintes principais objetivos: a redução do déficit público; a contenção dos gastos através de uma gestão mais eficiente; a melhor qualidade dos serviços prestados pelo governo; o incentivo à participação da sociedade nos processos decisórios relativos a tais serviços; e o desenvolvimento da eficácia e efetividade dos gestores de alto escalão do governo via controle de resultados6 .

Ganha força, neste cenário, uma perspectiva de administração gerencial, enfocando-se o setor público. O fundamento é a proposta de desenvolvimento de uma nova economia para este setor, caracterizada pelo declínio do poder dos sindicatos; enfraquecimento da autonomia dos profissionais dentro do setor público; crescimento de uma elite de dirigentes públicos nomeados; combate às práticas de rent-seeking (refere-se às práticas de apropriação da res pública por interesses privados, seja pela própria burocracia, através do nepotismo, seja através da ação corruptora de agentes privados. "O rent-seeking é quase sempre um modo mais sutil e sofisticado de privatizar o Estado")7 .

Neste contexto, emergem novas formas de responsabilidade, com base em uma maior participação da sociedade em atividades antes desenvolvidas pelo Estado (via privatização, descentralização, terceirização, etc.)8 .

De fato, contemporaneamente, tem prevalecido o conceito de que o público é o campo de ação do Estado, mas não mais seu monopólio9 .

Os canais jurídicos de participação, através dos quais o Estado propicia um espaço crescente de colaboração da sociedade na administração pública, são a expressão da aplicabilidade do princípio da subsidiariedade, embasando o “avanço da administração associada”, através da iniciativa popular ou de cooperação privada no desempenho de funções administrativas10 .

A despolitização decorre da pluralização dos interesses, face às “novas categorizações metaindividuais de interesses coletivos e de interesses difusos, articulados com as categorias tradicionais dos interesses públicos e privados, tanto no campo da prestação como no da proteção administrativa11 . Portanto, podem ser identificados certos interesses específicos que prescindem de um debate político, bem como de tramitações burocráticas, pois serão mais eficientemente atendidos por decisões que sejam exclusiva ou predominantemente técnicas ou comunitárias 12 .

A delegação de atividades-fim buscava reorientar ações estatais para a obtenção de uma maior eficiência e melhor qualidade dos serviços prestados, permitindo a ampliação da flexibilidade gerencial em áreas de recursos humanos e materiais, focalizando, prioritariamente, resultados, qualidade, satisfação do cidadão usuário e adequação à ocorrência de mudanças na demanda por serviços públicos13 .

As denominadas transferências referem-se, genericamente, “ao cometimento do exercício de certas atividades da administração pública a entes privados”14 . Às transferências realizadas por instrumento legal denominam-se delegações legais; àquelas cometidas por instrumento administrativo, por sua vez, delegações administrativas, destinadas a entes criados pelo próprio Estado ou pela sociedade. Não se aplicam , assim como as concessões ou permissões, aos “serviços de interesse público” ou de “relevância pública”.

O avanço da consensualidade, bem como “o desenvolvimento do conceito do espaço público não estatal”, têm justificado a multiplicação dos modelos de colaboração entre o Estado e os diversos entes privados existentes, que caracterizam a descentralização social da administração dos interesses públicos.

Há a possibilidade de delegação legal, pactual ou de instituição unilateral de vínculos de parceria e de colaboração para que o Estado se valha de entidades privadas para a execução de atividades de interesse público, mediante vínculos jurídicos contratuais, complexos e unilaterais15 .

A doutrina tem admitido que o fenômeno social contemporâneo citado amplia “o espaço de ações convergentes entre a Sociedade e o Estado”, contribuindo para o “progresso da legitimidade democrática”, sendo responsável pela crescente ação das chamadas entidades intermédias, a qual, por sua vez, tem repercutido na necessidade da instituição de “novos instrumentos de provocação social de controle”16 .

A atuação administrativa legítima do Estado deve se conformar às necessidades e condições conjunturais políticas, econômicas e sociais, cuja complexidade e dinamismo inviabilizam a previsão “na norma legal, em sua expressão geral e abstrata, de modo permanente e integral, em que condições o interesse público deverá ser atendido, em cada caso concreto”17 .

Na evolução da administração, a fase atual de desenvolvimento da democracia representa a valorização da superioridade do interesse da sociedade, o que motivou a transição do modelo de administração burocrática para a chamada administração gerencial18 . Nesta fase são resgatadas antigas aspirações liberais – a impessoalidade e a eficiência, o que se insere no processo de constitucionalização da administração pública19 .

No Brasil, vive-se a citada transição da administração burocrática para o modelo gerencial, “embora subsistam práticas regalianas, cuja permanência vem comumente explicada pelos sociólogos como heranças culturais patrimonialistas e centralizadoras ainda não superadas"20 .

A Administração “despe-se das galas do poder para apresentar-se como uma função, em que as novas tendências reclamam ser desempenhadas não apenas com observância da legalidade – uma administração eficaz – mas com atendimento da legitimidade e da moralidade – uma administração eficiente e efetiva”, ou seja, uma boa administração – “erigida no dever do Estado e direito dos administrados”21 .

A abertura à participação do administrado, propiciando um ambiente de colaboração representa, na visão de alguns doutrinadores, uma vantagem política, pois significa auferir maior legitimidade às decisões da entidade intermédia22 .

Aponta-se, ainda, uma vantagem técnica, já que os resultados passam a ser discutidos e negociados pelos grupos sociais mais diretamente interessados, evitando-se a tomada de decisão por indivíduos das áreas política e burocrática, “descomprometidos pessoalmente com os resultados”23 .

Uma terceira vantagem elencada pela doutrina é a fiscal, pois tais entes de cooperação “podem ser criados sem gerar reiterados ônus para o Estado, prescindindo de novos tributos para custeá-los, uma vez que os recursos necessários para mantê-los e desenvolver-lhes as atividades podem ser auferidos apenas dos diretamente beneficiados.”24

Portanto, diante das idiossincrasias da realidade, a Administração deve aperfeiçoar os paradigmas de gestão, a fim de adequar as prescrições abstratas das normas aos casos concretos, “motivando responsavelmente as opções que forem feitas” 25 .

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Tais tendências “vão modificando o Direito Administrativo tradicional: não mais um direito do Estado, edificado na imperatividade, na desigualdade, no privilégio e na desconfiança entre as partes, fundado, em suma, na crença quase absoluta na coerção como único ou primordial fator civilizatório26 ; agora inspirado na flexibilidade, na colaboração, na competição e, sobretudo, na confiança entre consórcios de interesse, parceiros de relações abertas e associados no desenvolvimento, com a robustecida certeza de que a consensualidade desempenha papel tanto ou mais importante que a coerção no progresso humano.”27

Nessa linha, são apresentados dois diplomas inaugurais de fomento institucional à administração associada de interesses públicos, criando entes intermédios para desenvolverem a colaboração público-privada: a Lei Nº 9.637, de 15 de maio de 1998, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, e a Lei Nº 9.790, de 23 de março de 1999, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como organizações da sociedade civil de interesse público.

O Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE) apresenta vários elementos dos diferentes modelos, mas pode-se afirmar que a figura das Organizações Sociais aparece como modelo de passagem da administração burocrática à gerencial para os setores sociais28 .

As Organizações Sociais, “são pessoas de direito privado sem fins lucrativos, destinadas por seus objetivos sociais estatutários, a atuar em seis setores de interesse público: o ensino, a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico, a proteção e preservação do meio ambiente, a cultura e a saúde29 ”.

Uma vez qualificadas, mediante ato administrativo unilateral e discricionário, outorgado pelo Poder Público Federal, ficam declaradas de interesse social e utilidade pública para todos os efeitos legais, podendo se associar ao Poder Público, através de contratos de gestão para o fomento e execução de atividades de interesse público30 .

Salienta-se a imprecisão técnica do termo contrato de gestão, pois não se verifica a natureza contratual das relações pactuadas entre as organizações sociais e o Estado, mas um ajustamento de prestações solidárias e conjugadas, dirigidas à satisfação de um interesse público que lhes é comum31 .”

O contrato de gestão é uma modalidade de acordo de programa, caracterizado pelo “pacto no qual duas ou mais partes, sendo ao menos uma a Administração Pública e sob sua coordenação, acordam entre si a constituição de uma relação jurídica de mútua cooperação ou de colaboração, mediante a expansão legalmente admitida da autonomia gerencial de uma entidade ou órgão participante, para programar atividades de interesse de todas as acordantes32 .”

Esta modalidade de acordo “se dirige ao controle concomitante da atividade administrativa na busca de resultados, por isso mesmo, no caso, precisamente designada como acordo de resultados, como na Lei Nº 14.694, de 30 de junho de 2003, do Estado de Minas Gerais33 , possivelmente um dos melhores exemplos do ato complexo a ser seguido, a serviço de um efetivo controle de resultados34 .”

Com relação aos contratos de gestão, como se trata de um tema novo no direito brasileiro, ainda é “pouco tratado pela doutrina e praticamente inaplicado no âmbito judicial”, bem como ainda não disciplinado, “de forma genérica, no direito positivo, a não ser em leis esparsas relativas a contratos específicos com entidades determinadas35 ”. Além disso, “assumem diferentes contornos, conforme o interesse da administração Pública em cada caso”; e, como são transposições do direito estrangeiro, adaptam-se mal à rigidez de nosso direito positivo36 .

Um aspecto complicador, ao se analisar o tema dos contratos de gestão decorre do fato de a aplicação prática ter antecedido o “labor legislativo”, exigindo-se um trabalho de interpretação, e até de ‘acomodação de um instituto novo ao ordenamento jurídico vigente37 .”

O contrato de gestão é o instrumento que estabelece um vínculo jurídico entre a organização social e a Administração Pública, no qual são estabelecidas as metas a serem cumpridas pela entidade, bem como a forma de fomento do Poder Público, quer mediante a cessão de bens públicos e de servidores públicos, ou mesmo com a transferência de recursos orçamentários38 .


Finalidades do contrato de gestão

O contrato de gestão tem como finalidades39 40 :

1.    1) estimular a descentralização da gestão;

1.    2) conferir maior responsabilidade aos gestores e equipes locais;

1.    3) controlar os desempenhos quantitativo e qualitativo dos prestadores;

1.    4) ajudar no planejamento local;

1.    5) estimular a utilização de ferramentas e tecnologias de informação;

1.    6) focalizar as necessidades em saúde da população do território sob sua responsabilidade (no caso da atenção primária);

1.    7) buscar o envolvimento e compromisso de toda a equipe na busca de resultados;

1.    8) estimular a cultura de negociação;

1.    9) proporcionar mais transparência, em conjunto com o controle social.

Para a efetivação desse processo, o contrato de gestão deve apresentar: metas, meios, controle e incentivos41 . Metas bem definidas servem para orientar a ação de gestão; os meios criam condições para o alcance de metas; o controle permite acompanhar os processos, a alocação de recursos, avaliar a implantação das ações; e os incentivos constituem os elementos mobilizadores do comportamento humano em direção das metas.

Uma vez extinta a entidade federal, a Organização Social que a suceder, prestará serviço público e não atividade privada, estando sujeita a “todas as normas constitucionais e legais que regem esse serviço, até porque não poderia a lei ordinária derrogar dispositivos constitucionais42 .”

As Organizações Sociais são entidades constituídas ad hoc, inteiramente ao arbítrio do Administrador, sem patrimônio próprio, sede própria, ou vida própria, vivendo exclusivamente por conta do contrato de gestão com o Poder Público, sem a exigência de demonstração de idoneidade financeira e sequer qualificação técnica, diferentemente do que ocorre quando é celebrado um contrato administrativo. Também não se exige limitação salarial aos empregados das organizações sociais, o que diverge dos objetivos da Reforma Administrativa, especialmente no que concerne à contenção de gastos com o quadro de pessoal43 .

Considerando que a entidade vai administrar recursos orçamentários e bens públicos, não é razoável a “total ausência de lei”, de limitações salariais aos empregados das organizações sociais44 .

O Decreto nº 5.504, de 05 de agosto de 200545 , representou um esforço de moralização do uso de verbas públicas por entidades privadas, exigindo que os instrumentos de formalização, renovação ou aditamento de convênios, instrumentos congêneres ou de consórcios públicos, com relação aos recursos por elas administrados, oriundos de repasses da União, realizassem licitação para as obras, compras, serviços e alienações (art. 1º). Quanto à aquisição de bens e serviços comuns, impunha-se, pelo mesmo dispositivo, a modalidade de pregão, preferencialmente na forma eletrônica.

Posteriormente, o Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007 (alterado pelo Decreto nº 6.428, de 04 de abril de 2008) 46 , o qual cuida especificamente de convênios, contratos de repasse e termos de cooperação com entidades privadas sem fins lucrativos, passou a exigir que bastaria, na aquisição de produtos e contratação de serviços com recursos da União, apenas cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato47 .

Importante ressaltar que “cabe às unidades federadas suplementarem a legislação federal sobre organizações sociais, embora com observância das normas gerais de competência privativa da União sobre licitações e matéria financeiro-orçamentária”48 .


Terceiro Setor: conceitos e considerações gerais

O Terceiro Setor é definido nas palavras de José Eduardo Sabo Paes como, “o conjunto de organismos, organizações ou instituições dotados de autonomia e administração própria que apresentam como função e objetivo principal atuar voluntariamente junto à sociedade civil visando ao seu aperfeiçoamento”49 . Congrega as Fundações, Entidades Beneficentes, Fundos Comunitários, Entidades Sem Fins Lucrativos, Organizações Não Governamentais, Empresas com responsabilidade Social, Empresas Doadoras, Organizações Sociais, e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.

De maneira até simplista, nas palavras de Josenir Teixeira50 , Terceiro Setor é o nome que se dá ao conjunto de entidades sem fins lucrativos, de direito privado, regidas pelo Código Civil, que realizam atividades em prol do bem comum e auxilia o Estado na solução de problemas sociais.

O Terceiro Setor é ainda, considerado complementar às políticas universais de caráter redistributivo e de desenvolvimento, orientadas para a superação de desigualdades estruturais51 .

O Terceiro Setor é reconhecido como um importante vetor de mudança e de desenvolvimento social a partir de alianças, e, sob esse aspecto, seria um instrumento de implantação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas junto ao Estado 52 . Além do que, é definido, como um conjunto organizacional diferenciado no bojo do processo de redemocratização 53 .

Afirma-se que no Brasil, as entidades do Terceiro Setor foram vitimadas pela insuficiência de políticas públicas e acabaram ou enredadas pela rigidez burocrática, ou contaminadas pela excessiva proximidade com o poder54 e que, atualmente, diversas entidades viveriam uma crise de identidade entre o não-governamental e o paraestatal.

Montaño é um grande crítico da tendência de expansão do Terceiro Setor no desempenho das funções típicas do Estado, e, contundentemente, nos alerta para a estreita ligação entre a reforma gerencial do Estado e o consenso de Washington – ou seja, tivemos apoio maciço do governo por agências internacionais, que, segundo seus ditames, mostraram-nos que as reformas políticas estavam subordinadas aos imperativos econômicos, isto é, que a obediência aos fundamentos macro-econômicos eram patentes. No que se refere ao conceito de Terceiro Setor, destaca as suas debilidades55 : #1) não se definiu e parece ainda não haver consenso de quais entidades o integrariam; #2) inclui sujeitos com aparentes igualdades nas atividades, porém com interesses, espaços e significados sociais diversos, contrários e até contraditórios; e #3) parece não ser fiel o dito “não-governamental”, “autogovernado” e “não-lucrativo” de entidades do terceiro setor, à medida que essas são financiadas por entidades governamentais para desempenhar as funções do Estado de forma terceirizada.

As controvérsias e ambigüidades não se restringem ao conceito de Terceiro Setor, estendendo-se, preocupantemente, à definição do seu papel e à relação com o Estado. Para alguns autores, o Terceiro Setor representa a substituição do Estado nas questões sociais, por meio da terceirização disfarçada de publicização, em consonância com o projeto neoliberal de minimalismo estatal56 57 .

Na profusão de ações assistenciais desenvolvidas, as ações de saúde permanecem meramente pontuais e isoladas, não se conformando enquanto parte de uma política pública, e, nesse caso, as entidades pesquisadas parecem estar muito mais próximas da condição de paraestatais, enquanto ‘muletas do Estado’, em suas diversas disfuncionalidades58 .

No entanto, sob outra ótica, o Terceiro Setor seria um espaço de participação e mobilização social importante para o aprimoramento da democracia, no trato das questões sociais59 60 61 .

Aponta-se a filantropia como forma de relação tradicional e, possivelmente, ainda, a mais institucionalizada, entre o Estado e a Sociedade. Na saúde, por exemplo, as entidades filantrópicas detêm, há tempos, destaque na assistência hospitalar por sua ampla distribuição geográfica, responsabilizando-se, atualmente, por cerca de 1/3 da capacidade instalada hospitalar. Cumprem, inegavelmente, relevante papel na universalização do acesso aos serviços de saúde62 63 .

A expansão do Terceiro Setor no Brasil tem evidenciado a necessidade de se implementar um sistema regulatório e de fiscalização adequados, o que, efetivamente, ainda não se concretizou. Podem ser citadas, até o momento, iniciativas regulatórias, dentre as quais se destacam as Rodadas de Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária (1995-2002), resultando na criação de leis aplicáveis ao Setor, como a Lei nº 9.608 e a Lei nº 9.790/99.

O Brasil, na condição de "país em desenvolvimento", vem encaminhando sua redemocratização tendo como prioridade a estabilidade da moeda e a modernização econômica, a fim de termos condições de inserção no cenário competitivo internacional, em que a oferta de ações em áreas como a Saúde, Educação e ação social são cada vez mais restritas64 .

Nessa linha, afirma-se que a responsabilidade cívica passará a ser das organizações do Terceiro Setor, dadas a redução do papel do Estado (que delega verbas e programas) e a dominância do Mercado pelo processo de globalização65 . Ou seja, a transposição de um modelo em que o Estado é dominante para um modelo em que sua presença é reduzida (não mais provedor), transpondo sua força para o gerenciamento e a regulação.

Foram, ainda, implementadas algumas medidas de 2003 a 2010 que garantiram maior transparência, um dos maiores óbices para se otimizar a eticidade e a fiscalização da atuação das entidades sem fins lucrativos, destacando-se a uniformização da prestação de contas ao Ministério da Justiça e as modificações nas atribuições dos Conselhos Nacionais de Educação, as quais ocorreram como resposta ao trabalho da comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal, de 200166 , que investigou a malversação dos recursos públicos da União a entidades do Terceiro Setor.

As entidades do Terceiro Setor apresentam um perfil heterogêneo, cujas características variam em função da política social que desenvolvem. Estão submetidas aos pressupostos legais e jurídicos que definem o desenho atual de gestão social, predominando as parcerias com o Poder Público.

A expansão do Terceiro Setor na gestão social foi estimulada pelo Estado com o objetivo de criar uma rede de prestação de serviços sociais mais ampla e eficaz, abrangendo um número maior de setores sociais e repercutindo sobre um maior número de indivíduos. Mas a teoria diverge das constatações práticas, quando proliferam notícias de fraudes e desvios de recursos e funções públicas, que causam indignação e apontam para a certeza de que a contrapartida necessária para a desconcentração da prestação do serviço social do Estado para entidades privadas, é o efetivo exercício de fiscalização e regulação67 .

Na relação com o Terceiro Setor, o governo poderá contar com um importante aliado para implementar as políticas sociais, principalmente em áreas em que sua ação é mais ineficaz ou onerosa. No entanto enfatiza-se que, “se essa parceria não acontecer sob a égide de uma política social explícita, com metas claras a serem alcançadas, haverá apenas uma distribuição de fundos públicos que, além de não contribuir para a construção de um exercício de cidadania, poderá concorrer para a apropriação indevida do Estado por parte da sociedade civil68 ”.

Atualmente, as transferências de valores às entidades parceiras não-lucrativas constituem uma mescla de subvenção social, execução de atividades em parceria e, até mesmo, pagamentos de serviços de terceiros“camuflados” na forma de parcerias para driblar a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A parceria entre o Estado e entidade privada sem fins lucrativos tem características diversas daquelas referentes à subvenção, pois aquela materializa a necessidade que o Poder Público tem de buscar apoio na sociedade para o desenvolvimento de atividades que são de sua responsabilidade legal ou constitucional.

Salvo determinação constitucional ou legal expressa em contrário, o Estado pode optar por ofertar serviços públicos, ao invés de fazê-lo mediante execução direta, por contratação de serviços de terceiros ou, ainda, em parceria com entidade privada sem fins lucrativos. Nesse último caso, a escolha da entidade parceria deve recair em uma que já atue na área da atividade em questão, na localidade a ser atendida e com competência técnica suficiente para desenvolver a ação.

A parceria envolve, portanto, a execução articulada da atividade com o Poder Público e a transferência de recursos do Poder Público, a título de fomento. Ao contrário da subvenção, essa transferência de recursos não está assentada na necessidade da prestar auxílio financeiro à entidade para que ela desenvolva suas próprias atividades. Trata-se, portanto, de uma relação mútua de colaboração, em que ambos os partícipes interagem para atingir o resultado almejado 69

Distingue-se a parceria firmada entre o Estado e o Terceiro Setor da prestação de serviços firmada por contrato. A prestação de serviços públicos à população por parte de terceiros, empresas ou entidades, contratados para esta finalidade é uma relação de tipo comercial, na qual o contratante especifica os serviços e paga pela sua prestação. Pressupõe a existência de padrões de qualidade no atendimento à população e a prévia definição de valores unitários para cada tipo de serviço. É o caso, por exemplo, do SUS, que contrata a prestação de serviços junto a hospitais privados para o atendimento à saúde da população70 .

A contratualização da prestação de serviços ou terceirização permite ao Poder Público estabelecer e controlar as regras de execução. A inexecução total ou parcial pode envolver punições severas ao contratado. Importante deixar claro que esse tipo de relação não se confunde com a parceria, a qual envolve um acordo de médio ou longo prazo para execução de serviços continuados a uma determinada clientela. Já a terceirização envolve sempre uma contratação de um objeto específico pelo contratante71 .

Na parceria a relação é consensual, não hierárquica, distinta, portanto de uma relação comercial. Assim, é essencial que, na escolha da entidade parceria, o órgão ou entidade governamental negocie com a instituição os aspectos e princípios que norteiam a adequada prestação dos serviços públicos72 .

Portanto, os modelos de parceria fundamentados na contratualização de resultados entre o Poder Público e as entidades parceiras, permitem que o financiamento das atividades das entidades esteja intimamente relacionado com o cumprimento de metas estabelecidas em comum acordo com o Poder Público, o que inverte, substancialmente, a lógica da relação de parceria, não mais voltada para as necessidades da entidade parceira, mas sim para os interesses dos cidadãos interessados. Nesse aspecto, é instrumento de eficiência e profissionalização na gestão e na prestação de serviços.

O modelo de contratualização de resultados entre o Terceiro Setor e o Governo também propicia a ampliação das capacidades de formulação, coordenação e gerenciamento das estruturas estatais, notadamente no que se refere: #a) à concepção de políticas públicas sociais, com foco nas necessidades e expectativas dos cidadãos; #b) ao estabelecimento de metas e indicadores de desempenho; #c) ao monitoramento e avaliação crítica do desempenho das entidades parcerias na prestação de serviços; #d) aos níveis de eficácia e eficiência obtidos por meio das parcerias.

A legislação sempre teve um papel indutor na criação dessas entidades, e o repasse de verbas representou seu maior estímulo. No entanto, considera-se que, se esse repasse de verbas não obedecer aos princípios de transparência (disclosure) e responsabilidade (accountability), em nada contribuirão para fomentar a vida associativa73 .

Historicamente, os estímulos, isenções e subvenções garantidos nos convênios e parcerias com o setor público tendiam a beneficiar indistintamente as entidades tidas como filantrópicas e eram permeáveis em alto nível ao clientelismo, uma vez que os critérios de escolha de entidades beneficiadas com o repasse direto de verbas, em sua maioria, eram apenas formais.

Seria possível identificar no Terceiro Setor uma especial "aptidão" para a prestação de determinados serviços, sobretudo aqueles que requerem contato direto e atenção pessoal, os quais exigem comprometimento e confiança por parte dos usuários, tais como saúde, educação, capacitação profissional; estes são geralmente prestados com mais eficiência e menor custo por entidades sem fins lucrativos do que quando prestados diretamente pelo governo74 . Dessa forma seria mais do que razoável a realização de convênios ou parcerias entre o governo e o Terceiro Setor no atendimento de determinados serviços.

Entretanto, na formalização do acordo entre o poder público e o Terceiro Setor são encontradas dificuldades, como as seguintes75 :

1.    a) excesso de exigências burocráticas para a participação em licitações e celebração de contratos com o poder público;

1.    b) ausência de responsabilização de dirigentes de entidades por desvio na aplicação de fundos públicos, bem como prevalência de aspectos meramente formais na avaliação da prestação de contas;

1.    c) insuficiência dos recursos repassados, que não cobrem todos os custos administrativos e de pessoal.

Ainda sob uma ótica crítica do modelo de gestão social-participativa, de acordo com as conclusões da conferência da Organização Pan-Americana de Saúde realizada em 1998, as experiências obtidas dentro e fora das Américas parecem demonstrar que os processos de reforma na saúde têm alcançado, como resultado principal, a contenção dos custos e a criação de novas oportunidades de lucro e não alguma melhora na qualidade e cobertura dos serviços básicos. Porém, ainda se acredita ser possível que essas práticas possam ser capazes de estimular a eficiência e propiciar a cooperação voluntária, desenvolvendo a ética da solidariedade e responsabilidade, e aprimorando as capacidades para resolver problemas sociais, como características necessárias ao desenvolvimento do capital social, o qual é determinante no desenvolvimento político e econômico de uma comunidade76 .

Sem o capital social, tenderiam a vigorar relações clientelistas fundadas em relações assimétricas, hierárquicas e verticais, com a consequente utilização de bens públicos como moeda de troca para se auferirem benefícios privados, ou seja, relações que dariam lugar à instauração de práticas autoritárias e de relações sociais predatórias, que impediriam a geração de políticas conducentes ao desenvolvimento77 .

Da análise do papel do setor público não-estatal, conclui-se que o Terceiro Setor compõe, portanto, um novo quadro normativo de prestação de serviços sociais, descentralizado, que necessita de sérios e rápidos ajustes, para que a justiça e a ordem social se concretizem com ações efetivas78 .

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Sobre a autora
Adriana Reis Veríssimo de Lima

Médica e graduanda da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Adriana Reis Veríssimo. A constitucionalidade da Lei nº 9.637/1998 - Lei das Organizações Sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4036, 20 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30311. Acesso em: 19 abr. 2024.

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