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Radicalismo religioso no Poder legislativo e a liberdade religiosa

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25/11/2014 às 14:22
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VII – O LOBBY NA ELABORAÇÃO DE LEIS

As religiões não apenas podem influir na elaboração de leis, positivamente, ou seja, no seu texto, como, também, negativamente, obstando que certos artigos sejam nela insertos ou que ela seja aprovada como se encontra.

Nesse contexto, imperioso mencionar a insurgência de líderes cristãos aos projetos de lei n.ºs 122/06 e 6.418/2005, que visam a criminalizar condutas homofóbicas (RACHEL, Andrea Russar, 2012).

Isso porque, segundo eles, a aprovação dos projetos ensejaria restrição à liberdade religiosa, porquanto a Bíblia e o Corão, por exemplo, consideram o homossexualismo pecado. Além disso, argumentam que não se poderia mais pregar contra o homossexualismo.

Qualquer intelecção racional, isto é, desprovida de convicções religiosas radicais, chega à conclusão de que disposição legal que vise coibir qualquer tipo de discriminação é bem vinda e, antes de ser crime, de ser texto de lei, qualquer forma de discriminação é anacrônica, imoral e fere os costumes.

Por isso, a nenhuma doutrina religiosa é dado pregar o preconceito e a discriminação, ainda que, historicamente, ela tenha se posicionado dessa forma.

E não há que se argumentar sobre eventual restrição à liberdade de crença, já que da mesma forma que a omissão a certas atrocidades contidas na Bíblia, especialmente no velho testamento, durante a pregação, ou sua interpretação de modo a amenizá-las não prejudica a doutrinação como um todo, omitir ou interpretar de modo diverso o preconceito à homossexualidade certamente não trará prejuízos, muito pelo contrário, porquanto a própria Constituição Federal tem como um de seus objetivos fundamentais promover o bem de todos sem preconceito ou discriminação.

Traz-se à tona, ainda, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n.º 9394/96) que, embora não evidencie radicalismo religioso, comprova o poder do “lobby religioso”. Isso porque o seu artigo 33 dispôs sobre o Ensino Religioso, inicialmente, sem ônus para o governo.

No entanto, no dia 22 de julho de 1997, após lobby de Deputados Evangélicos, que alegaram ausência da expressão “sem ônus” na Constituição, o supracitado dispositivo foi alterado pelo artigo 33 da Lei n.º 9475/97, passando a prever o pagamento do professor de Ensino Religioso.


VIII – SOLUÇÕES DADAS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO

Perfeitamente plausível se argumentar que o próprio ordenamento jurídico prevê os meios de evitar ou corrigir eventuais inconstitucionalidades.

De forma bem singela, pois não é o escopo deste trabalho, existem três momentos para que esse controle ocorra. Nas Comissões, antes do projeto ser levado à votação, ou na própria votação, com a falta de quórum à sua aprovação, ao que se denomina controle preventivo.

Em seguida, caso a lei tenha sido aprovada, mas dentro do controle preventivo, o chefe do executivo pode se negar a sancioná-la sob um dos dois argumentos possíveis: contrariedade ao ordenamento jurídico (veto constitucional) ou falta de interesse social (veto político).

Posteriormente, há o controle repressivo, realizado pelo Poder Judiciário, através do controle de constitucionalidade.

Assim, esse argumento não é apenas correto como tem sido colocado em prática no Congresso Nacional para obstar a votação ou aprovação de projetos de lei dessa natureza, ou seja, imbuídos de dogmas religiosos.

Contudo, não se pode olvidar que projetos de lei ofensivos à liberdade de crença têm sido mais recorrentes do que nunca, portanto, deve-se ficar atento para o risco da doutrina da sociedade por meio da lei. Pois, uma vez sancionada, promulgada e publicada, a lei poderá gerar efeitos nefastos à sociedade, ainda que, supervenientemente, seja declarada inconstitucional.

Nesse diapasão, faz-se oportuno lembrar que o feriado do dia 12 de outubro, destinado à Senhora Aparecida dos católicos, tida como padroeira do Brasil, se deu por meio de lei, a Lei 6.802/80, que, inegavelmente, é inconstitucional, nos termos do que se tem preconizado.


CONCLUSÃO

O direito à liberdade religiosa, de crença ou estado laico (utilizados como sinônimos) remonta à antiguidade, vindo a se tornar previsão constitucional pela inserção das dez emendas à Constituição americana em 1791.

A liberdade religiosa, em qualquer Estado Democrático de Direito, deve ser tratada como direito fundamental, haja vista sua importância para a sociedade.

Qualquer Estado que se diz livre tem que prever e praticar a liberdade de crença.

Contudo, essa liberdade não se deve traduzir em disputa de forças, isto é, na doutrinação do maior número de fiéis, através da imposição de suas crenças, por acreditarem ser a mais legítima ou mais próxima dos ensinamentos divinos.

Isso fere a própria liberdade de crença, especialmente quando se vale do meio mais democrático de impor condutas, que é a lei, elaborada pelos representantes do povo para o povo.

Assim, a inserção, na lei, de dogmas religiosos, é prática, inegavelmente, de doutrinação impositiva, ferindo não só a liberdade religiosa, como a própria liberdade e a dignidade da pessoa humana.

No decorrer deste trabalho, foram citados exemplos de projetos de lei, lei e alteração de lei, nas quais se nota o poder da religião na condução do processo legislativo.

Não se está a argumentar contra a influência que a religião exerce sobre a sociedade e, por conseguinte, sobre a elaboração de leis, mas sim, contra a influência negativa, ou seja, a imposição de certas crenças radicais, que, além de não encontrar ressonância na sociedade, subverte a ordem pública.

Então, a condição de Estado Laico não é ofendida, quando se tem em vista a mera influência religiosa ou existência de bancada religiosa no poder legislativo, pois crenças religiosas são inerentes ao ser-humano, influenciam seu pensamento e modo de agir, mesmo naquele descrente.

O tema ganha importância quando se põe em foco a existência de legisladores religiosos pertencentes à “ala” radical de suas respectivas doutrinas, o que enseja, como se buscou demonstrar, mais que uma influência negativa, mas verdadeira tentativa de imposição doutrinária através da lei.

Isso fica bem claro quando se trata especialmente dos temas, alhures tratados, da homossexualidade e aborto, em que se buscou impor, através da lei, crença calcada em dogmas religiosos completamente alheios à realidade jurídica e científica.

Em um Estado Democrático, cada um é livre para pensar, crer e se manifestar, e isso se estende ao processo legislativo. Entretanto, como não há direito absoluto, toda forma de abuso deve ser rechaçada.

Portanto, todo projeto de lei com finalidade “doutrinária” é manifestamente antidemocrático e, às vezes, subverte a ordem pública (nos exemplos citados, houve manifestações populares contrárias), razão pela qual deve ser peremptoriamente afastado, na primeira oportunidade de controle, ou seja, ainda nas comissões, a fim de evitar que tais projetos sejam recorrentes ou se sofistiquem a ponto de, eventualmente, tornarem-se leis.


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Sobre o autor
Renato Mendonça Cardoso

Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas - Formado pela Universidade de Patos de Minas/MG - Pós-Graduado em Direito Notarial e Registral, e Pós-Graduando em Direito Administrativo e Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes-LFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Renato Mendonça. Radicalismo religioso no Poder legislativo e a liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4164, 25 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30553. Acesso em: 1 mai. 2024.

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