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A possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos à luz da doutrina e da jurisprudência

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11/02/2015 às 13:35
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5 Adoção de Crianças e Adolescentes Por Casais Homoafetivos

Primeiramente, importa atentar à inexistência de legislação no Brasil acerca da possibilidade da adoção homoafetiva. Vale observar que, de acordo com Spengler (2011, p. 354), a Holanda é o único país possuidor de legislação pertinente ao tema.

Porém, apesar do silêncio legal, o artigo 42, caput, do ECA, autoriza a adoção homoparental individual, isto é, que um homossexual, solteiro, adote uma criança ou adolescente, na medida em que prevê em seu bojo apenas o requisito da maioridade, ignorando o estado civil do adotante.

Não obstante, Spengler (2011, p. 358) adverte o receio dos casais homoafetivos no indeferimento da inscrição conjunta no cadastro de adotantes, razão pela qual a adoção individual apresenta-se, muitas vezes, como uma “solução”, mas na verdade gera riscos aos menores adotados, visto que não possuem direitos personalíssimos, tais como à sucessão ou à pensão previdenciária, advindos do companheiro que não adotou e que, igualmente, é considerado pai ou mãe.

O receio da adoção homoparental conjunta decorre do requisito presente no artigo 1622, caput¸ do Código Civil, revogado pela Lei n.º 12.010/09, o qual previa que “

Além da revogação do dispositivo legal supracitado, Rossato, Lépore e Cunha (2012, p. 211) entendem que, atualmente, existe a possibilidade da adoção por casais homoafetivos, diante do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no ano de 2011, desde que preenchidos os elementos necessários, com exceção ao da diversidade dos sexos, bem como ausentes os impedimentos previstos no artigo 1521 do Código Civil.

De tal modo, os autores concluem que:

[...] se o Estatuto autoriza a adoção conjunta por casais que vivam em união estável sem fazer qualquer menção quanto ao sexo dos conviventes, e tanto o STJ quanto o STF reconhecem a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, não há mais argumentos para – juridicamente – se dizer que a adoção por casais homoafetivos é ilegal. Portanto, hoje, no Brasil, é lícita a adoção por casais homoafetivos (2012, p. 212).

Apesar de ser lícita a adoção homoafetiva no Brasil, Spengler (2011, p. 359) ressalta que a omissão legal acerca da questão deriva da preocupação com o bem-estar da criança ou adolescente que, diversas vezes, embasa-se no preconceito. Para a autora, a discriminação, o abalo moral e psicológico e o desenvolvimento psicoemocional dos adotados por homossexuais são preocupações afastadas por estudos realizados com famílias ditas não convencionais.

Nesse sentido, Farias e Maia (2009, p. 69) acrescentam o entendimento de estudiosos de que “a orientação sexual da criança independe da orientação sexual dos pais, o importante para seu desenvolvimento global saudável são os valores que lhe são passados sobre ambos os sexos”, da mesma forma que “se a orientação sexual dos pais influenciasse diretamente a dos filhos, nenhum homossexual poderia ter sido concebido e educado dentro de um modelo heterossexual de família”.

Vale transcrever o julgamento do autor Marcos Rolim, há dez anos, acerca do preconceito que impede o deferimento da adoção homoafetiva:

Temos, no Brasil, cerca de 200 mil crianças institucionalizadas em abrigos e orfanatos. A esmagadora maioria delas permanecerá nesses espaços de mortificação e desamor até completarem 18 anos porque estão fora da faixa de adoção provável. Tudo o que essas crianças esperam e sonham é o direito de terem uma família no interior das quais sejam amadas e respeitadas. Graças ao preconceito e a tudo aquilo que ele oferece de violência e intolerância, entretanto, essas crianças não poderão, em regra, ser adotadas por casais homossexuais. Alguém poderia me dizer por quê? Será possível que a estupidez histórica construída escrupulosamente por séculos de moral lusitana seja forte o suficiente para dizer: “Sim, é preferível que essas crianças não tenham qualquer família a serem adotadas por casais homossexuais”? Ora, tenha santa paciência. O que todas as crianças precisam é cuidado, carinho e amor (2002).

Muito embora até os dias de hoje remanesçam preceitos preconceituosos no tocante à possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos, construções jurisprudenciais vêm concedendo a adoção de menores a casais do mesmo sexo, partindo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e da união das condições necessárias para atender aos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.

A exemplo disso, no ano de 2005, a Defensoria Pública do Estado da Comarca de Bagé foi procurada por um casal homoafetivo que desejava adotar duas crianças, as quais já permaneciam sob seus cuidados, a fim de regularizar a adoção conjunta para que os infantes pudessem ser incluídos na dependência previdenciária, no plano de saúde, dentre outros benefícios.

Após o ingresso da ação, o Ministério Público do Estado manifestou-se contrariamente ao pedido e, diante da sentença que o julgou procedente, interpôs recurso de apelação. Todavia, o Tribunal de Justiça do Estado manteve, por unanimidade, a sentença, razão pela qual o órgão ministerial novamente interpôs recursos, desta vez junto ao STJ e ao STF.

Em entrevista realizada no dia 08 de outubro de 2012 com o Promotor de Justiça André Barbosa de Borba, este declarou que, anteriormente, possuía o entendimento da impossibilidade da adoção homoafetiva, “tendo em vista o disposto no artigo 1622 do Código Civil, o qual vedava a adoção por duas pessoas que não fossem casadas ou não vivessem em união estável”, da mesma forma que ponderou o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, o qual prevê que a união estável configura-se entre homem e mulher.

Entretanto, atualmente, o Promotor de Justiça compreende que:

[...] em razão da revogação do artigo 1622 do Código Civil pela Lei nº 12.010/2009 e, principalmente, da decisão do STF reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, inexiste óbice jurídico ao deferimento da adoção em tais situações, cabendo apenas o exame do caso sob a ótica do melhor interesse da criança ou adolescente (verificação, no caso concreto, das condições dos pretendentes e dos benefícios ao infante). 

Por outro lado, em entrevista realizada no dia 10 de outubro de 2012, com a presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, Patrícia Kettermann, a qual ingressou com a ação de adoção homoafetiva, quando atuava como Defensora Pública na Comarca de Bagé, esta ressaltou que a concessão da adoção homoafetiva “trata-se de garantir dignidade e tratamento isonômico e não discriminatório”, da mesma forma que visa tanto à tutela das crianças e adolescentes envolvidos, quanto dos pais e mães.

A entrevistada igualmente abordou a possibilidade jurídica dos adotados terem registrados em suas certidões de nascimento o nome dos pais ou das mães. Ainda afirmou que, mais do que possível, é desejável, uma vez que se trata de juridicizar a situação fática.

Corroborando o pensamento da Defensora Pública, a Promotora de Justiça Luciana Cano Casarotto, atuante no Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Bagé, em entrevista realizada no dia 12 de novembro de 2012, declarou que “o norte que deve guiar o instituto da adoção, como referido no Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre deve ser seu melhor interesse, seu bem-estar”, bem como observou que, de fato, o importante não é a orientação sexual dos adotantes, mas as suas condições psicológicas e sociais. A Promotora de Justiça ainda lembrou que, apesar de não haver discussão a respeito da letra fria da lei prever que cada um possui uma mãe e um pai, seria injusto registrar na certidão de nascimento da criança ou adolescente somente o nome de um dos adotantes, em razão dos prejuízos decorrentes, por exemplo, na esfera sucessória.

Vale registrar a contribuição do casal homoafetivo, autor do processo cuja decisão proferida nesta Comarca foi pioneira no Estado e no país em conceder a adoção de crianças a um casal do mesmo sexo. Em entrevista realizada no dia 10 de novembro de 2012, Lídia e Luciana declararam não sofrerem preconceitos no tocante a sua orientação sexual, advertiram não terem sido influenciadas por algum familiar homossexual e entendem que a homoafetividade é inata, pois não existe a possibilidade de escolha, simplesmente se é. O casal informou que está junto há 15 anos e, em 08 de dezembro de 2012, completará um ano desde que a sua união estável converteu-se em casamento.

Em relação aos filhos adotivos, as entrevistadas responderam que estes entendem que formam uma família, chamando-as, inclusive, de “mamãe Lídia e mamãe Luciana”, e, igualmente, não são alvos de preconceito, mas, mais do que isso, a título de desmistificação dos preconceitos, revelaram que os filhos jamais precisaram realizar tratamentos psicológicos para compreender a formação de sua família.

Finalizando a entrevista, o casal desejou deixar como mensagem que a família independe de parentescos consanguíneos, e que um documento não é capaz de determinar o afeto entre pessoas. Luciana ainda enalteceu a atuação da Defensora Pública Patrícia Kettermann na ação de adoção que concedeu a ela e a Lídia a possibilidade de adotar.

Em suma, mister destacar a conclusão dos autores Gagliano e Pamplona Filho a respeito do julgamento do Recurso Especial interposto pelo Ministério Público Estadual, que teve como relator o Ministro Luis Felipe Salomão, sobre o caso concreto:

[...] a adoção é um ato sagrado de amor, não cabendo ao Judiciário, sob nenhum argumento, se verificada a garantia do bem-estar da criança ou do adolescente, impedir a sua concretização, pois, em assim agindo, desrespeitaria a maior das leis, segundo a qual devemos sempre amar o nosso semelhante como a nós mesmos (2011, p. 505) [grifo do autor].   


6 CONCLUSÃO

Trata-se o instituto da adoção de uma medida protetiva, pois insere a criança ou o adolescente em uma família substituta, na qual permanecerá vinculado através do parentesco civil com o adotante, que, para isso, deverá preencher requisitos subjetivos e objetivos à adoção, disciplinados, desde o advento da Lei n.º 12.010/2009, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Aparentemente um procedimento processual simples, a evolução do modelo familiar fez com que as famílias contemporâneas, chamadas não convencionais, desejassem adotar. Em busca de realizar o sonho da paternidade/maternidade, os casais homoafetivos passaram a reclamar o direito à descendência, bem como desejavam propiciar à criança e ao adolescente o direito à ascendência.

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No entanto, o ordenamento jurídico positivo, apesar da evolução do conceito da homossexualidade para modo de ser e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, não contempla a possibilidade da adoção homoafetiva.

Em razão disso, construções jurisprudenciais foram firmadas a fim de suprir as lacunas legislativas, garantindo os direitos e a igualdade entre os heterossexuais e os homossexuais, os quais tiveram suas uniões reconhecidas como estáveis e, posteriormente, foram convertidas em casamento, por exemplo. Todavia, a decisão jurisprudencial pioneira acerca da possibilidade da adoção homoafetiva de crianças e adolescentes sobreveio somente no ano de 2005, na justiça gaúcha, sendo firmada, em seguida, junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça.

Por derradeiro, conclui-se que, apesar da ausência de previsão legal acerca da adoção homoafetiva e do preconceito referente à incapacidade de pessoas com orientação homossexual exercerem a paternidade/maternidade, prevalece, sobretudo, o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, cujo bem-estar deve ser resguardado pelo Estado, por meio da tutela jurisdicional e do direito à família, que, mais do que constitucional, busca reconhecer a existência de elos formados por raízes do coração.


REFERÊNCIAS

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Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Dias, Maria Berenice. Diversidade sexual e direito homoafetivo/coordenação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

Farias, Mariana de Oliveira; Maia, Ana Cláudia Bortolozzi. Adoção por homossexuais: a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica. Curitiba: Juruá, 2009.

Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. v. IV.

Girardi, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005.

Moscheta, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

ROLIM, Marcos. Casais homossexuais e adoção. Disponível em: <http://www.rolim.com.br/cronic162.htm> Acesso em: 26/10/2012 à 01h42min.

Rossato, Luciano Alves; Lépore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Lei 8.069: artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

Rossato, Luciano Alves; Lépore, Paulo Eduardo. Comentários à Lei Nacional da Adoção – Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009. São Paulo: Ed. RT, 2009.

Silva Júnior, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

UZIEL, Anna Paula. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

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Sobre a autora
Fabiana Janke Batista

Advogada. Pós-Graduada em Direito Contratual pelo Centro Universitário Uniamérica. Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões pla Faculdade Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP. Mediadora Privada de Conflitos Cíveis, Empresariais, Familiares e de Resolução de Disputas On-line. Presidente da Comissão de Direitos Sociais da OAB Subseção Bagé/RS. Membro da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Bagé/RS. Membro da Comissão Especial de Mediação e Práticas Colaborativas da OAB Subseção Bagé/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Fabiana Janke. A possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos à luz da doutrina e da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4242, 11 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31358. Acesso em: 28 abr. 2024.

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