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A inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade

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01/08/2002 às 00:00
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PARTE I

Sumário: 1. Introdução. 2. Culpabilidade: Evolução Histórica. 3. Elementos da culpabilidade e Causas de Exclusão. 4. A Inexigibilidade de Conduta Diversa como Excludente Genérica da Culpabilidade. 5. Hipóteses de Inexigibilidade de Conduta Diversa não Previstas na Lei Penal.


1.Introdução

O presente estudo trata da possibilidade de adoção da tese da inexigibilidade de conduta diversa como causa da exclusão da culpabilidade, por ausência do elemento reprovação.

Tendo em vista que a censura de uma conduta é informada primordialmente pela possibilidade de realização de um comportamento adequado ao ordenamento jurídico combinada com a violação deste, muitos doutrinadores têm debatido a tese da possibilidade de adoção do elemento inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal de isenção da culpabilidade, independentemente de previsão expressa.

E são esses debates que se pretende enfocar, através do estudo da culpabilidade e de seus elementos.


2.Culpabilidade: Evolução histórica

A Culpabilidade, ao longo dos tempos, sofreu inúmeras mutações até que se chegasse a sua atual concepção, tendo sido explicada, basicamente, por três teorias cronologicamente sucessivas, quais sejam, a Teoria Psicológica, a Teoria Psicológico-Normativa e a Teoria Normativa.

Segundo a Teoria Psicológica da culpabilidade, o crime era um conceito bipartido, de um lado estando o elemento objetivo e de outro o elemento subjetivo.

Partindo desse pressuposto, a culpabilidade era tida exatamente como esse elemento subjetivo do delito, já que consistia na acepção psicológica feita pelo agente a respeito do resultado, baseando-se no seu querer ou na sua possibilidade de previsão do evento.

Assim, para que o fato criminoso pudesse ser imputado a seu agente, não bastava a conduta objetiva contrária ao ordenamento jurídico, sendo indispensável a relação psicológica vinculante entre o sujeito e o resultado, também chamada de nexo subjetivo.

Daí se denota que a Teoria Psicológica entendia ser espécies da culpabilidade o dolo e a culpa, consistindo aquele na vontade e essa na potencialidade de antevisão do resultado. A culpabilidade era vista como um elemento puramente naturalístico, bastando, para sua caracterização, o nexo psíquico entre o agente e o resultado. É por essa razão que se diz que, sob a égide dessa teoria, a culpabilidade era eminentemente causal, eis que a conduta do sujeito (voluntária, ou involuntária com resultado previsível) era a causa do elemento subjetivo do crime, e tão-somente.

No entanto, por incluir em um denominador comum (culpabilidade) conceitos completamente diversos, como são o dolo (psicológico) e a culpa (normativo); por não explicar a culpa inconsciente e por não resolver a questão da inimputabilidade como excludente da culpabilidade, essa teoria mereceu severas críticas que lhe renderam um esquecimento quase total.

Ainda, é preciso registrar que mesmo considerando a culpabilidade como vínculo psíquico, tal teoria reputava a conduta do inimputável isenta desse elemento subjetivo, configurando, pois, um contra senso, vez que esse, mesmo não tendo responsabilidade, pode agir dolosamente de forma a desejar o resultado.

Partindo dos desacertos da Teoria Psicológica, construiu-se a Teoria Psicológico-Normativa da Culpabilidade, que tinha no dolo e na culpa não mais espécies da culpabilidade, mas sim elementos, ao lado de outros.

A construção de tal doutrina baseou-se em um caso de estado de necessidade, o caso da tábua de salvação, onde se verificou que embora o sujeito agisse dolosamente, isto é, mesmo querendo realizar o evento, não merecia ele a reprimenda penal, por não lhe poder ser reclamado comportamento diferente.

Assim, a exigibilidade de conduta diversa (que gera a reprovação do comportamento) passou a ser vista como elemento da culpabilidade, ao lado da imputabilidade, da culpa e do dolo, esse tendo inerente em seu conceito a consciência da ilicitude.

Passou-se a exigir, além da vontade de realizar o evento (dolo) ou da possibilidade de previsão de evento não desejado (culpa), consistentes no liame psicológico, também o juízo de reprovação, consistente no liame normativo.

Daí a denominação Teoria Psicológico-Normativa.

Inobstante tenha colaborado enormemente para a formulação da atual concepção de culpabilidade, pecou por persistir entendendo que o dolo e a culpa dela faziam parte. Diz-se que pecou porque aqueles estão na conduta do réu e esta está no juízo de reprovação a ser feito pelo juiz.

Além disso, o dolo continha em si a consciência da ilicitude: era o chamado dolo normativo ou Dolus Malus, porque se entendia que o agente que quer o resultado conhece sua antijuridicidade.

Partindo-se dessa premissa, aquele que não tivesse consciência da ilicitude (inobstante pudesse ter), por possuir padrões morais invertidos, não agiria com dolo e seria, portanto, isento de culpabilidade, o que é um absurdo, já que um criminoso dessa espécie merece a reprimenda penal.

A partir dos erros da Teoria Psicológico-Normativa e da expulsão dos elementos psíquicos erroneamente inseridos no conceito de culpabilidade, formulou-se a Teoria Normativa, aceita por nossa legislação penal de 1984.

Diz-se Teoria Normativa porque a culpabilidade passou a ser informada unicamente por elementos ensejadores de um juízo de valoração por parte do julgador. A culpabilidade passou a ser puramente axiológica.

Tais elementos passaram a ser a medida, o critério para o nível de reprovação. Daí falar-se em graus de culpabilidade.

Dolo e culpa foram colocados no tipo penal, já que esses são elementos integrantes da conduta do agente, isto é, da sua ação ou omissão (daí o surgimento dos conceitos de tipo doloso e tipo culposo).

Por seu turno, a consciência da ilicitude foi destacada do dolo, uma vez que um independe do outro: pode haver conduta dolosa sem que o sujeito saiba que a mesma é contrária ao direito. O primeiro problema resolve-se no âmbito do tipo penal, ao passo que o segundo encontra solução na culpabilidade.

Deixou-se de falar em dolo normativo, ou Dolus Malus, para se falar em dolo natural. Deixou-se de se falar em consciência da ilicitude como excludente da culpabilidade, para se passar a falar em potencial consciência da ilicitude.

Assim, e consoante já referido, a culpabilidade passou a ser vista unicamente sob o aspecto normativo, consistente na reprovação da conduta.

E, para que tal censurabilidade pudesse ser auferida, colocou-se a disposição do julgador elementos capazes de informar o grau de reprovação, dependendo de sua maior ou menor presença na conduta do agente, o que leva à conclusão de que a culpabilidade é um conceito graduável.

Os elementos da culpabilidade, pois, condicionam a maior ou menor censurabilidade da conduta.

Tais elementos consistem na imputabilidade, na potencial consciência da ilicitude a na inexigibilidade de conduta diversa.


3. Elementos da culbabilidade e causas legais de exclusão

Consoante assentado pela Teoria Normativa, a culpabilidade não passa da censurabilidade da conduta praticada pelo agente, censurabilidade essa a ser auferida pelo julgador.

Para colher o grau de reprovabilidade do comportamento, colocou-se à disposição do magistrado elementos capazes de graduar essa culpabilidade, ao mesmo tempo em que a inexistência de qualquer deles passou a ter o condão de exclui-la, consoante prega a Teoria das Circunstâncias Concomitantes, de Frank.

São eles a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a inexigibilidade de conduta diferente.

Interessa-nos a inexigibilidade de ação ou omissão diversa.

Tal elemento provém do princípio segundo o qual a pena é personalíssima, não podendo ser aplicada contra quem não deu causa ao evento criminoso.

Consoante tal princípio, e como corolário deste, pode-se dizer que para que o agente seja culpável, mister tenha cometido o fato dentro de circunstâncias normais, como algo exclusivamente seu e sob o total domínio de sua inteligência.

Do contrário, estando o sujeito inserido em contexto fático constituído por circunstâncias anormais que influíram na prática do crime, não se pode afirmar que esse proveio inteiramente de sua conduta, por não lhe ser exigível outra dentro daquelas circunstâncias.

Dessa forma, se dentro daquelas particularidade do fato, não era possível ao sujeito agir como normalmente o faria, a conclusão que se chega é a de que a ele não podia ser imposta a prática de outra conduta.

Não podendo o sujeito agir consoante o direito, a reprovabilidade da conduta desaparece, isso porque tal reprovabilidade existe exatamente quando o agente pode realizar a conduta em acordo com o ordenamento jurídico e, no entanto, age de outro modo, violando-o.

Assim, a exigibilidade de conduta diversa aparece como elemento da culpabilidade, excluindo-a quando o comportamento diferente não pode ser reclamado.

Da mesma forma que ocorre com os demais elementos da culpabilidade, o legislador previu especificamente as causas de isenção de pena quando ausente a exigibilidade de comportamento diferente.

No art. 22 do Código Penal, pois, estão previstas a coação moral irresistível e a obediência hierárquica, justamente porque nesses casos o ordenamento jurídico não pode impor que o agente dirija seu comportamento de forma lícita.

Alguns doutrinadores vêem também no art. 348, § 2º, do Código Penal uma causa legal de exclusão da culpabilidade baseada na inexigibilidade de conduta diversa.

Tal norma prevê a isenção de pena do ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso que o favorece a subtrair-se da ação da autoridade pública.

Cremos que a razão lhes assiste, uma vez que em se tratando o criminoso de pessoa intimamente ligada ao agente que comete o crime de favorecimento pessoal, a esse agente não se pode exigir que entregue à autoridade o seu afeto.

Além dessas hipóteses, pode-se dizer que há outra causa legal de isenção da pena fundada na inexigibilidade de conduta diversa: é o artigo 128, inciso II, do Código Penal, que prevê a prerrogativa de aborto consentido pela gestante ou seu representante legal quando a gravidez é resultante de estupro.

Isso porque o legislador e o ordenamento jurídico como um todo não podem exigir da gestante que prolongue ainda mais seu trauma e sofrimento resultante de um delito do qual foi vítima, ao dar à luz, porque não dizer, ao produto do crime.

A existência do estupro com a conseqüente gravidez insere a gestante em um contexto fático anormal capaz de tornar irresistível a prática do aborto, não se podendo afirmar, nesse caso, que está presente o dever de agir diferentemente.

Não se fala em exclusão da ilicitude, exatamente porque não há adequação mediata ao artigo 23 do Código Penal, e, salvo melhor juízo, as mesmas não se enquadram na hipótese sob análise.

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4. Da inexigibilidade de conduta diversa como excludente genérica da culpabilidade

São divergentes os posicionamentos doutrinários quando o assunto refere-se à possibilidade de adoção do elemento inexigibilidade na exclusão da censura.

Data Venia posicionamentos em contrário, pugnamos pela tese da admissibilidade.

Parece lícito afirmar que a única razão para não se entender possível a adoção da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, para alguns doutrinadores, é julgar exauridas no Código Penal todas as possibilidades de ausência de reprovação.

Se assim for, tal entendimento torna-se mutável à medida em que forem sendo demonstradas possibilidades outras de conduta incensurável por não se poder reclamar diferente ação ou omissão do sujeito.

E é justamente em razão de essas hipóteses se fazerem presentes no mundo dos fatos que se vem sustentando a possibilidade de exclusão da culpabilidade nesses termos.

Assim, considerando a faculdade de uso da analogia para normas penais justificantes; considerando a exigibilidade de conduta diferente como elemento (ou pressuposto) da culpabilidade e considerando que o legislador jamais será onisciente a ponto de prever todos os acontecimentos do mundo dos fatos, não será defesa a absolvição do agente, com base no artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal, se não podia o ordenamento jurídico-criminal a ele impor outro comportamento, mesmo que esse ordenamento não tenha antevisto a faculdade.

Mais: em não se adotando a inexigibilidade de conduta diversa como excludente da culpabilidade, mesmo em casos não expressamente cominados, a pena passa a ser contrária à equidade, injusta e, porque não dizer, desumana.

Isso porque não é humano aplicar-se uma reprimenda a alguém quando, segundo FREDERICO MARQUES (1965, p. 227) sua "conduta típica ocorreu sob a pressão dos acontecimentos e circunstâncias que excluem o caráter reprovável dessa mesma conduta".

E não poderia ser diferente.

Em primeiro plano, o argumento segundo o qual a culpabilidade é sinônimo de reprovação, bem como que a falta de exigibilidade de outra conduta não gera esse juízo de censura, é irrebatível.

A partir do instante em que se constatam novas hipóteses de prática de conduta destoante do ordenamento jurídico por impossibilidade de o fazê-lo de outra forma, a aplicação da pena fica destituída de fundamento pela ausência de culpabilidade (leia-se reprovabilidade).

Então, o que se pode afirmar é que o legislador, sabendo da impossibilidade de previsão de todas as hipóteses de inexigibilidade de outra conduta, preferiu elencar as causas de exclusão da culpabilidade nela baseadas através de fórmula meramente exemplificativa, o que possibilita a interpretação analógica. Ou, ainda, que mesmo não tendo idéia de que outras causas poderiam surgir, o legislador não limitou a falta de culpabilidade a casos expressamente previstos.

E, sendo assim, se pergunta: Por que razão tal hermenêutica é autorizada para um dos elementos da culpabilidade, e não o é para os demais?

A resposta é singela, mas, ao que se crê, verdadeira: simplesmente porque quanto aos demais elementos as causas de exclusão são de tal forma genéricas que abrangem todas as hipóteses de inexistência de culpabilidade, por ausência de um dos seus pressupostos.

As causas de exclusão da culpabilidade baseadas na inexistência de imputabilidade não ultrapassam os limites da doença mental, do desenvolvimento mental incompleto ou retardado e da embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior.

Poder-se-ia indagar da existência da inimputabilidade por ebriez completa, dolosamente provocada, mas nesse caso a imputabilidade subsiste em razão da Actio Libera In Causa, tema esse que não é objeto do presente estudo.

Também no que se refere à potencial consciência da ilicitude, o erro de proibição, por ser expresso em um tipo aberto, abrange todas as hipóteses em que não há possibilidade de conhecer a antijuridicidade do fato.

Os casos de inexigibilidade de outra conduta, contudo, não foram esgotados pelo legislador, mesmo que se admita que o aborto proveniente de estupro e o favorecimento pessoal (artigo 348, § 2º, do Código Penal) são causas legais de exclusão da culpabilidade baseadas na impossibilidade de escolha da prática delituosa.

E tal assertiva tanto parece ser verdadeira que, adiante, falar-se-á de algumas causas de isenção da pena não previstas expressamente na legislação penal.


5. Hipóteses de inexigibilidade de conduta diversa não previstas na lei penal

Ressaltou-se que o argumento segundo o qual a inexigibilidade de conduta diversa não poderia ser adotada simplesmente porque o legislador teve a capacidade de prever todas as hipóteses em que essa ocorria era rebatível à medida em que se fizessem presentes no mundo dos fatos acontecimentos outros onde não se pode reclamar comportamento diferente.

Pois bem: a primeira dessas hipóteses a ser analisada diz com o estado de necessidade exculpante, que alguns doutrinadores têm como causa de exclusão da culpabilidade com base na ausência da exigibilidade de conduta diferente.

O estado de necessidade pode ser justificante ou exculpante: aquele ocorre quando o bem jurídico sacrificado é hierarquicamente menos importante que o bem jurídico protegido ou quando ambos têm o mesmo valor; esse se dá, ao contrário, quando o bem que o agente optou salvaguardar tem menor importância que o bem lesado.

No primeiro caso dá-se a exclusão da ilicitude e, no segundo, a exclusão da culpabilidade, por ser inexigível conduta diversa.

Nessa hipótese, por não haver exclusão da ilicitude, poderá ocorrer isenção de pena, por inexigibilidade de conduta diversa, se observadas as condições de sua configuração, ou, nas palavras de ZAFFARONI (1998, p. 656): "Em todos os casos de necessidade exculpante, o deve ser uma necessidade, isto é, devem ser situações em que não se possa juridicamente exigir do autor a realização de uma conduta menos lesiva".

Assim, para que se admita a exclusão da culpabilidade no estado de necessidade exculpante, mister que se adote a inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de isenção da pena.

A presença do excesso em uma causa de exclusão da ilicitude é outra hipótese.

Reza o artigo 23, parágrafo único, do Código Penal, que na legítima defesa, no estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular de direito, o agente responde pelo excesso, seja ele doloso ou culposo.

No caso da legítima defesa, por exemplo, em que o excesso se configura pela extrapolação do uso dos meios necessários ou pela imoderação no emprego desses meios, se a conduta praticada durante esse excesso configurar ilícito penal, merecerá a respectiva sanção.

Mas, no entanto, se o excesso somente ocorreu porque não podia o agente agir de outro modo, sendo-lhe inexigível conduta diversa, nesse caso estará isento de pena porque a conduta ilícita não é, nessa hipótese, culpável, já que sobre ela incide juízo de censura negativo.

Tendo em vista que a conduta praticada durante o excesso é considerada autonomamente, para fins de configurar um fato típico e antijurídico, nada mais lógico do que fazer incidir sobre ela o juízo de culpabilidade.

E, se durante o excesso não era possível que o sujeito agisse de outra forma, por estar movido por sentimento de pavor, medo, ou outro sentimento capaz de lhe tirar a capacidade de autodeterminação, aquela conduta autônoma não pode ser culpável.

Assim, pode-se considerar o excesso, nesse caso chamado exculpante, como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, em razão da inexigência de conduta diferente.

A tese também se enquadra perfeitamente ao aborto eugênico, senão vejamos:

Trata-se de hipótese em que o feto sofre de má formação, havendo forte probabilidade de que nasça sem vida, ou, não sendo natimorto, tenha poucas chances de sobrevivência. É o chamado feto inviável.

A lei não autoriza o aborto eugênico (ou eugenésico), limitando-se aos casos de aborto necessário e aborto sentimental (causa legal de exclusão da culpabilidade).

Mas, nessa hipótese, seria reprovável a conduta da gestante que, sabendo que o filho terá mínima ou nenhuma chance de sobrevivência, vem a adiantar sua morte? É exigível que ela prolongue o sofrimento de carregar consigo um ser que sabe estar prestes a morrer?

Cremos que não.

Assim, muito embora a possibilidade não seja taxativamente prevista, em verdade diz com a inexigibilidade de outra conduta que, por expulsar a reprovabilidade da ação, gera a isenção da culpabilidade.

E, enquanto não ecoa em nossa legislação o aborto eugênico como causa de exclusão da antijuridicidade, ou mesmo como uma causa legal de isenção de pena, correto o entendimento segundo o qual se trata de causa supralegal de exclusão da culpabilidade, diante da impossibilidade de o ordenamento jurídico exigir outra ação da gestante.

Há de ser ressaltado que o caso concreto, analisado em todas as circunstâncias, é que irá demonstrar ao julgador ser ou não ser possível a exigência de outra conduta.

O caso a seguir, trazido por MENDES CAMPOS (1998), bem expressa tal assertiva.

Imagine-se duas pessoas, sendo uma dotada de forte constituição física e poder amedrontante, e a outra fraca, tímida e temerosa.

A primeira pratica contra a segunda, reiteradamente, delitos de ameaça, afirmando que irá lhe matar fazendo uso de meio cruel e mediante surpresa, e isso a ponto de a vítima das ameaças não ter mais sossego.

Essa sabe que na hipótese de confronto corporal entre ambos, por certo restaria prejudicada. Isso sem pensar na possibilidade de ser atacada inadvertidamente, caso em que suas chances seriam ainda mais diminutas.

Certa feita, a vítima (agora possível réu) ataca seu desafeto inesperadamente, quando este estava de costas, vindo a matá-lo.

Nesse caso não se fala em legítima defesa, por ausência de proteção à agressão atual ou iminente.

Também não se configura o estado de necessidade, já que naquela ocasião não havia imperatividade de escolha entre um ou outro bem, eis que o agredido encontrava-se inerte, talvez até sem ter visto seu agressor.

A hipótese do inciso III, artigo 23, do Código Penal, não tem aplicação, da mesma forma.

Então se pergunta: a conduta do agente é culpável?

Pode-se dizer que não, já que o mesmo estava inserido em contexto de anormalidade, capaz de influir em seu ânimo a tal ponto de não ser possível reclamar-lhe outra ação.

Não se podia exigir que aquela situação ameaçadora perdurasse por longo tempo, eis que hábil a retirar o sossego da vítima das ameaças constantemente, o que não é lícito.

Também não era exigível que o sujeito aguardasse a agressão da "vítima" para que então se configurasse a legítima defesa, até porque certamente correria o risco de ser prejudicado no embate e perder a própria vida, já que seu desafeto possuía características físicas mais avantajadas.

Assim, é lícito entender por inculpável o sujeito, diante da inexigibilidade de outra conduta que, por se tratar de hipótese não descrita na lei, configura-se em uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade.

Por seu turno, tem a jurisprudência admitido a adoção da tese em casos de crimes de sonegação fiscal, seja por ausência de pagamento de impostos, seja pelo não recolhimento de contribuições previdenciárias, desde que comprovada de forma assaz a insolvência do devedor a ponto de restar comprometida a satisfação de necessidades mais importantes.

Da mesma forma, e diante do mesmo argumento, têm os Tribunais admitido a isenção da culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa, em casos de defraudação do penhor, desde que comprovada a impossibilidade do pagamento.

Resta salientar, por fim, que com a adoção da tese da inexigibilidade de conduta diversa, encontra-se aberta a discussão a respeito da eutanásia, e a conseguinte possibilidade de sua descriminalização genérica.

A acolhida, no ordenamento jurídico, de referido instituto, começa com a seguinte pergunta:

É exigível do Homo Medius que, ao presenciar o sofrimento e a morte inevitável (mas que tarda) de um ente querido seu, deixe de atender ao pedido de fazer cessar o padecimento? É censurável a conduta daquele que atende ao último desejo do moribundo?

Cremos que não, exatamente em obediência aos princípios da Teoria da Normativa da Culpabilidade que a vê como sinônimo de censura e reprovação e que, com isso, admite a invocação da inexigibilidade de conduta diversa em qualquer circunstância.

Destarte, e para concluir a primeira parte do presente trabalho, pode-se afirmar que diante das inúmeras possibilidades de configuração da não exigibilidade de outra conduta, possibilidades essas não previstas na legislação penal, mas que de qualquer forma retiram a censurabilidade da ação ou da omissão, fazendo, pois, desaparecer a culpabilidade (já que aquela é pressuposto dessa), pode-se entender por insustentável o posicionamento segundo o qual a impossibilidade de autodeterminação como eximente da pena limita-se às hipóteses da coação moral irresistível e à obediência hierárquica, bem como ao aborto sentimental (ou resultante de estupro) e ao favorecimento pessoal cometido pelo afeto do fugitivo, sendo imperativa a adoção da tese da inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.

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Sobre a autora
Fernanda Figueira Tonetto

professora de Direito da UFSM

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TONETTO, Fernanda Figueira. A inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3163. Acesso em: 29 mar. 2024.

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