O asilo como afluente da dignidade da pessoa humana

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18/09/2014 às 05:10
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Espera-se que, no futuro, os indivíduos não tenham de se socorrer de pedidos de asilo ou de refúgio, mas possam viver condignamente no próprio país, ou onde escolherem para residir com ânimo definitivo.

Resumo: : O presente artigo demonstra que durante os séculos a preocupação do ser humano, em constante evolução como ser social, foi primeiramente com a sua sobrevivência, aprimorando meios de se manter isento de perseguições e ameaças, e, em segundo momento, criando dispositivos legais para lhe assegurarem a sobrevivência, com o reconhecimento de todos. Preliminarmente é apresentada a evolução do conceito de asilo, desde as épocas mais remotas da nossa sociedade, em seguida são discutidas suas formas de aplicação e, complementando o tema, mostra-se a evolução dos Direitos Humanos, propiciadores dos institutos do asilo e do refúgio.

Palavras-chave: Asilo; refúgio; direitos humanos; dignidade da pessoa humana.

Sumário: : Introdução; 1. Respaldo histórico; 2. Espécies de asilo; 2.1. Asilo territorial; 2.2. Asilo diplomático, político ou extraterritorial; 2.3. Uma nova espécie: o refúgio; 3. Direitos Humanos; Considerações finais; Referências.


INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é apresentar o instituto do asilo, seus avanços, desafios, adaptações no transcurso dos séculos, em paralelo ao desenvolvimento da sociedade, até chegarmos à Idade Moderna, quando houve uma sedimentação deste instituto com a instituição da sociedade internacional e no século passado, ocorrendo uma adaptação do mesmo, com a formatação do denominado refúgio.

Preliminarmente, será enfocado o desenvolvimento do asilo através dos séculos, suas formas, modos de concessão e seu novo formato. Num segundo momento, será estudada a evolução dos Direitos Humanos, tendo por base a Idade Média até a contemporaneidade, comprovando que, somente com a maturação trazida por sua existência ao longo dos séculos, se tornou possível a concretização do instituto do asilo e do refúgio na sociedade internacional.

Por fim, serão abordadas algumas considerações sobre os temas acima mencionados, demonstrando que o decorrer do tempo foi também responsável por sedimentar e fortalecer os Direitos Humanos, o asilo e o refúgio, pois os dois últimos são originários destes direitos, levando, também, uma reflexão da sociedade internacional sobre a matéria nesse século.


1. RESPALDO HISTÓRICO

Conforme apresentado por M. Cherif Bassiouni, a palavra asilo é oriunda do latim, mas tem suas origens no grego e significa “lugar inviolável”. O conceito de inviolabilidade, inerente ao asilo, estende-se ao requerente de asilo que, por sua virtude, se torna tão inviolável como o lugar onde busca proteção. Historicamente, o asilo era um lugar onde um Estado não podia exercer sua jurisdição sobre um indivíduo, garantindo a inviolabilidade desta pessoa. Tal situação deu origem à conexão legal entre asilo e jurisdição1.

Podemos afirmar que o instituto do asilo é quase contemporâneo à formação da humanidade, pois o instinto de conservação, próprio do ser humano, já nasceu com o ser humano e com a humanidade, que se abriga, foge da intempérie, da própria morte, visando ao encontro de um porto seguro, mediante o qual possa prosseguir em sua vida, são esalvo.

O asilo não foi praticado por todas as civilizações. De fato, a prática era irregular e aplicada eletivamente, mesmo por sistemas que a reconheceram. Mas foi considerado essencialmente um privilégio em vez de um direito. No entanto, os muitos exemplos de sua aplicação, através dos tempos, estão cada vez mais direcionados para dar credibilidade à teoria de Grotius, bem como a de Suarez que o sistema era um direito humano inerente a lei natural2.

Entre as civilizações conhecidas na História da Civilização, somente aqueles da Bacia do Mediterrâneo reconheciam e utilizavam o asilo com algum grau de consistência e sob certas regras. Ele floresceu nessa área entre o século V a.C. e o século XVI da nossa era, tendo a prática sido absorvida dos fundamentos filosóficos da Grécia, e institucionalizado em duas formas: a) aplicável para determinada pessoa, e b) aplicáveis acertos lugares.

As pessoas a quem o asilo se aplicou primeiro foram os atletas que participaram dos Jogos Olímpicos, artistas dionisíacos e embaixadores. Emtermos contemporâneos, adquire o status de imunidade diplomática, considerada uma forma de isenção da aplicação da autoridade jurisdicional sobre quem desfruta deposição privilegiada. Atualmente, essas pessoas são protegidas pela Convenção de Viena de 1963, sobre a proteção de diplomatas, funcionários consulares, membros da família de diplomatas e dos funcionários consulares, pessoal diplomático e consular3.

Os locais de asilo eram historicamente os templos, onde, em certas razões, foi concedido o asilo no santuário. A inviolabilidade de um santuário era respeitada até mesmo a ponto de protegeras pessoas condenadas à morte, enquanto eles permanecessem nas dependências do santuário.Na Bíblia, temos no Livro de Números, capítulo 35: 11-13,referências a cidades de refúgio:

Escolhereis para vós cidades que vos sirvam de cidades de refúgio, para que se refugie ali o homicida que tiver matado alguém involuntariamente.

e estas cidades vos serão por refúgio do vingador, para que não morra o homicida antes de ser apresentado perante a congregação para julgamento.

Serão seis as cidades que haveis de dar por cidades de refúgio para vós.4

Também se observa no Livro de Deuteronômio, capítulo 23:15-16, que o asilo era dado ao escravo fugitivo de seu senhor:

Não entregarás ao seu senhor o escravo que, tendo fugido dele, se acolher a ti. Contigo ficará, no meio de ti;

Contigo ficará, no meio de ti, no lugar que escolher, em alguma de tuas cidades onde lhe agradar; não o oprimirás.5

A tradição árabe pré-islâmica, existente na Península Arábica, consagrada pelo profeta Maomé, ao entrar em Meca em 623 d.C. e, depois de enfrentar seus opositores, proclamou dois locais como santuários. Finalmente, menciona os locais de asilo registrados no Talmud, na Bíblia, no Alcorão e são de fato entre os registros mais notáveis possuidores de cunho histórico6.

Ao longo da história inicial do asilo e em particular no que se refere ao asilo eclesiástico, existia um conceito comum da relação entre punição e as crenças transcendentais. Assim, um santuário não era violado porque os perseguidores se tornariam sujeitos à vingança da divindade cujo santuário foi violado e, em alguns casos, seria sujeito à punição temporal. Na Grécia antiga e na dinastia ptolomaica egípcia (305a.C-30d.C), a violação de um santuário era considerada um crime de traição (crimenmaiestateslaesae)7.Conforme exposto por Sanches:

[...] já no Concílio de Toledo de 638 a imunidade do asilo, surpreendentemente, foi estendida “ao longo dos trinta passos da porta da Igreja”, mas estavam excluídos da proteção aqueles que chegassem armados ou ainda aqueles que estivessem sendo julgados por crimes de traição. Nos Concílios de Coianca (1.050) e de Oviedo (1.115) foi plenamente reconhecido o asilo, excluindo aos servos de nascimento, ladrões públicos, excomungados publicamente, monges e monjas fugitivos e profanadores da Igreja e, foi alterada a extensão para setenta passos contados da porta da Igreja.

Ao longo da Idade Media, em especial a partir do século XIII, o instituto do asilo se viu debilitado pelos abusos frequentes sofridos pela Igreja, tanto pelas invasões e ataques por parte das autoridades civis, como pelo refúgio dado aos criminosos. Alguns autores, como Grotius, Vettel e Beccaria, contribuíram com a falta de glória do instituto, estimulando um sistema de asilo político fora do Estado, com o objetivo de rechaçar os chamados “pequenos reinos, fora da lei, dentro de um Estado legítimo formado”. São as palavras de Cesare Beccaria, em sua obra de 1774, Dos delitos e das Penas: “Dentro das fronteiras de um país, não podem existir lugares onde não são aplicadas as leis. As forças das leis devem seguir todos os cidadãos, assim como suas sombras seguem seus corpos”8.

A partir do século XVI, uma mudança doutrinária se apresenta nos escritos acadêmicos em matéria de asilo, onde as autoridades governamentais e religiosas consideravam as razões do indivíduo para pedir asilo. Na verdade, essa noção já existiana lei de asilo talmúdica e na prática greco-romana9, mas tinha sido limitada à prática de asilo eclesiástico, que contou mais sobre o indivíduo que procurou em seu santuário. Esta ênfase foi devida, em grande parte, a medidas desumanas, punitivas, aplicadas contra criminosos e fugitivos, razão por que ainda é hoje uma base válida para concessão de asilo por forçado Direito Internacional vigente10.

Por volta do século XVI, as ideias sobre a reforma da justiça penal apareceram, e por volta do século XVII, as guerras religiosas que se verificavam nos feudos diminuíram na Europa, especialmente após o Tratado de Westphalia, em 1648. No século XVIII, a reforma penal e preocupação com ordem mundial começaram a se fundir nos escritos de Cesare Beccaria. Este desenvolvimento trouxe novas considerações acerca do asilo: 1) mostrando que já não conferia imunidade absoluta para todos os tipos de fugitivos, porque os Estados foram considerados como tendo o dever de processar os criminosos comuns, conforme preceito criado por Grotius: autdedereautjudicare; 2) os Estados foram considerados como tendo o dever recíproco de promover o desenvolvimento da ordem mundial. Estas duas considerações são tão válidas hoje como quando surgiram no meio para o final do século XVII, na Europa. Curiosamente, este desenvolvimento ocorre una época em que os reformadores penais reuniram apoio suficiente para seus pontos de vista serem esclarecidos, objetivando tornar a justiça penal mais humana. Isto foi concomitante com as opiniões emergentes de publicistas que procuravam desenvolver uma estrutura para uma nova ordem mundial11.

A filosofia política, existente no século XVIII, incluindo a doutrina da separação entre Igreja e Estado, conduziu a novos conceitos e práticas de asilo, calcados em razões políticas e religiosas. As autoridades religiosas (de igrejas, mosteiros, conventos e santuários) davam asilo a fugitivos de autoridades seculares, especialmente quando a questão religiosa estava envolvida, e os Estados cada vez mais davam asilo político a dissidentes religiosos e políticos de outros países. “Mas os Estados não faziam distinção entre teses e outros motivos para a concessão de asilo, que também eram os mesmos, mais tarde servindo de base, no instituto da extradição, para negá-lo em razão de” delitos políticos".

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O asilo religioso diminuiu como surgimento do Estado não-eclesiástico na maior parte da Europa e, após o desenvolvimento das teorias da separação entre Igreja e Estado e do declínio do direito divino dos reis, particularmente após a Reforma. Esse desenvolvimento deu origem ao tipo de asilo que existe hoje: uma forma de imunidade dos processos jurídicos estrangeiros concedidos pelo Estado de refúgio a um estrangeiro que se tornou sujeito à sua jurisdição12.Salienta Bassiouni o seguinte:

Em seus modernos estágios de formação, a teoria do direito de asilo, permeou desde um básico para muitas extrapolações. Um deles foi a doutrina doiusquarteriorum. Os Estados europeus usaram esta doutrina para continuar a sua dominação colonial no Oriente Médio através do sistema de "capitulações" e no Extremo Oriente através das "concessões". Através destes mecanismos, os estrangeiros europeus, no Império Turco Otomano e em partes da China, utilizavam o ius quarteriorum, uma forma de asilo por extraterritorialidade, objetivando protegê-los contra os processos de tomada de decisão de autoridade dos Estados em que forame quede outra forma teria tinha jurisdição sobre eles. O resultado dessa prática era ultrajante, com os estrangeiros colocados acima e além do alcance da lei locais. Ambas as políticas coloniais terminaram durante ou após a Segunda Guerra Mundial.13

O conceito de asilo continua sendo de uma imunidade pessoal, que se apresenta de duas formas: 1) de asilo territorial, por exemplo, negar a outro processo autoritário a capacidade de exercer jurisdição sobre um asilado; 2) asilo extraterritorial, diplomático ou político, por exemplo, a concessão de asilo em uma embaixada ou em um navio. A maioria dos estudiosos que tratam do assunto considera asilo territorial diferente do asilo extraterritorial ou diplomático. A fundamentação apresentada para essa distinção é que a extraterritorialidade nega a soberania do Estado em cujo território é exercida, enquantoa territorialidade afirma a soberania do Estado em cujo território ela é praticada. A distinção é, no entanto, sem diferença quanto a seu efeito, porque cada um deles, na prática, emana da mesma fonte. No entanto, esse aspecto reafirma a ratione materiae da prática, que decorre da mesma fonte. Contudo, o desenvolvimento desta distinção trouxe a dicotomia entre asilo extraterritorial, que é abrangido pela legislação nacional. A distinção entre o asilo territorial e extraterritorial fez com que muitos países, incluindo os Estados Unidos, consideram o asilo territorial uma questão de lei nacional e de rejeitar qualquer aplicação do direito internacional costumeiro, embora o Direito Internacional convencional ainda se aplica 14.


2. ESPÉCIES DE ASILO

No decorrer dos séculos foram sendo delineadas as formas de asilo, que constitui o assunto a ser abordado em seguida.

2.1. ASILO TERRITORIAL

O asilo consiste no recebimento do estrangeiro no território nacional, sem os requisitos de ingresso, a seu pedido, para evitar punição ou perseguição no seu país de origem por requisitos de natureza política ou ideológica. Esta espécie de asilo, admitida em toda a sociedade internacional, está consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 14, bem como na Convenção de Caracas, internalizado pelo Decreto nº 55.929, de 14 de abril de 1965, estando bem delineado que todo Estado tem direito, no exercício de sua soberania, de admitir dentro de seu território as pessoas que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum outro Estado possa fazer qualquer reclamação.

Conforme assinalado na Convenção, o respeito que se deve à jurisdição de cada Estado sobre os habitantes de seu território deve-se igualmente, sem nenhuma restrição, à jurisdição que tem sobre as pessoas que nele entram procedentes de um Estado, onde sejam perseguidas por suas crenças, opiniões e filiação política ou por atos que possam ser considerados delitos políticos, tudo calcado em regras do Direito Internacional Humanitário. Observando-se que qualquer violação da soberania, consistindo em atos de um governo ou de seus agentes contra vida ou a segurança de uma pessoa praticados em território de outro Estado não se pode considerar atenuada pelo fato de a perseguição ter começado fora de suas fronteiras ou de obedecer a motivos políticos ou a razões de Estados.

Cabe ao Estado concessor do asilo a classificação da natureza do delito e dos motivos da perseguição. É razoável que assim seja, porque a tendência do Estado asilado é a de negar a natureza política do delito imputado e dos motivos da perseguição, para considerá-lo comum.

O asilo é uma instituição de caráter humanitário, pelo que não fica sujeito à reciprocidade.

Conforme preceituado na Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 o asilado ficará sujeito, além dos deveres impostos pelo Direito Internacional, a cumprir as disposições da legislação vigente e as que o governo brasileiro lhe fixar (art. 28). Não poderá sair do País sem prévia autorização do governo brasileiro (art. 29), sendo que a inobservância do disposto neste artigo importará na renúncia ao asilo e impedirá o reingresso nessa condição.

O fato do ingresso de uma pessoa na jurisdição territorial de um Estado se ter efetuado clandestina ou irregularmente não afeta a concessão do asilo, posto que serão considerados os motivos que levaram a pessoa a entrar no território nacional de forma irregular.

A manifestação livre do pensamento que é concedida ao habitante de um Estado se estende àquele a quem for concedido o asilo, desde que sua manifestação não se traduza em propaganda sistemática por meio da qual se incite ao emprego da força ou da violência contra o governo do Estado reclamante.

2.2. ASILO DIPLOMÁTICO, POLÍTICO OU EXTRATERRITORIAL

O asilo diplomático começa a ser mais rotineiro a partir do século XVI, quando temos como exemplo a expulsão dos judeus da Espanha, pelos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492. Os judeus expulsos se transferiram para Portugal, onde receberam permissão para ali ficar durante, no máximo, oito meses, por ordem de Dom João II.

Como resultado de um acordo matrimonial entre Dom Manuel com Isabel de Castela e Aragão, filha mais velha dos reis católicos, viúva de Dom Afonso, herdeiro da coroa portuguesa, que, como cláusula para a realização do casamento, deveria ocorrer a expulsão dos judeus de Portugal, tendo Dom Manuel protelado ao máximo sua decisão. Entretanto, por interesses políticos, o rei expulsou de Portugal,em 1497,todos os judeus que não se converteram ao cristianismo.15

Na Europa, sob o clima da Reforma Protestante, vários povos procuraram asilo em outros Estados, fugindo dos confrontos de cunho religioso, tendo Sanches mencionado à situação dos valdenses que se asilaram na Suíça:

Uma questão interessante foi a fuga, para a Suíça, de vinte mil valdenses, quando na Itália, o Duque de Saboia, Victorino Amadeo, emitiu um decreto desconhecendo a religião reformada em Janeiro de 1686. Os valdenses se exilaram em Genebra, até a noite de 27 de agosto de 1689, quando grande parte do grupo retornou a Itália, no célebre episodio conhecido como “Gloriosa Repatriação”. Assim mesmo, na França foi verificado o êxodo de protestantes ao Reino Unido, Suíça, Países Baixos e a antiga Prússia.16

Há pertinência para o nosso estudo o fato de a França, no século XIX, ser o primeiro Estado do mundo a promulgar uma lei específica aos refugiados, denominada: Etrangersrefugies que resideronten France, isto em 1832. Passados mais de 15 anos, o primeiro ministro britânico, respondendo aos governos da Rússia e Prússia sobre suas petições de entrega de autores de uma revolta fracassada na Hungria, afirma:

Se existe hoje uma regra que, mais que qualquer outra, tenha sido observada por todos os Estados, grandes e pequenos do mundo civilizado, trata-se da não entrega de refugiados políticos, a menos que exista um Tratado que obrigue o Estado a isso. As leis de hospitalidade, os ditames da humanidade e os sentimentos gerais de humanidade proíbem tais entregas; e qualquer governo independente que aderisse a um pedido de entrega como este, seria, a justo título, universalmente estigmatizado como inferior e desonrado.17

Verifica-se em Montevidéu, no final do século XIX, especificamente em 1889, a celebração do Tratado de Direito Penal Internacional entre os países Uruguai, Bolívia, Argentina, Paraguai e Peru, que versava sobre jurisdição, asilo, regime da extradição, procedimento de extradição e prisão preventiva. O segundo tema (asilo) proibia a entrega de perseguidos por crimes políticos, a extradição por crimes de duelo, adultério, injurias, calúnias e delitos contra cultos. Ademais, outorgava ao Estado o direito de exigir substituição da pena de morte por outra inferior, se fosse o caso, antes de proceder à entrega do réu18.

No século XX, temos o Decreto nº 1.570, de 13 de abril de 1937, que internalizou as convenções sobre direitos e deveres dos Estados e sobre asilo político, assinadas em Montevidéu em 26 de dezembro de 1933, por ocasião da VII Conferência Internacional Americana e posteriormente, em relação específica à Convenção de Caracas de 1954, tendo esta sido internalizada pelo Decreto nº 42.628, de 13 de novembro de 1957, promovido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), fixando que o asilo diplomático poderá ser outorgado em legações19, navios de guerra e acampamentos ou aeronaves militares20, a pessoas perseguidas por motivos ou delitos políticos. No caso, o agente diplomático, comandante de navio de guerra, acampamento ou aeronave militar, depois de concedido o asilo, comunicá-lo-á com a maior brevidade possível ao Ministro das Relações Exteriores do Estado territorial ou à autoridade administrativa do lugar, se o fato houver ocorrido fora da capital.

A concessão de asilo não se estende àquelas pessoas que, na ocasião em que o solicitem, tenham sido acusadas de delitos comuns, processadas ou condenadas por esse motivo pelos tribunais ordinários competentes, sem haverem cumprido as penas respectivas; nem a desertores das forças de terra, mar e ar, salvo quando os fatos que motivarem o pedido de asilo, seja qual for o caso, apresentem claramente caráter político21.

Concedido o asilo, o Estado asilante, que o for receber, pode pedir a saída do asilado para território estrangeiro, sendo o Estado territorial obrigado a conceder imediatamente, salvo caso de força maior, as garantias necessárias a fim de o asilado não correr perigo sua vida, sua liberdade ou sua integridade pessoal, ou para que, de outra maneira, ele seja posto em segurança, com o correspondente salvo-conduto (art. 12)22.

O asilo terá seu término quando: a) ocorrer a naturalização do asilado no Estado de asilo; b) quando o asilado partir do Estado de asilo; c) quando for expulso do Estado de asilo, fato que somente poderá ocorrer em casos excepcionais; e) quando cessar a causa que motivou o asilo; f) quando o asilado morrer; g) quando o recebedor de asilo for condenado por crime comum.

2.3. UMA NOVA ESPÉCIE: O REFÚGIO

Conforme salientado por Blainey, no início da segunda década do século XX, sobre a necessidade de haver uma entidade internacional organizada no sentido de viabilizar o instituto do asilo, por iniciativa da Sociedade das Nações foi criado o Alto Comissionado para os Refugiados Russos, em 1921, em decorrência dos apátridas surgidos com a queda do Império Otomano e pela Revolução Russa.23

Um dos primeiros instrumentos jurídicos internacionais relativos a refugiados foi a Convenção de Genebra de 1933, que fornecia àqueles por ela protegidos uma condição similar à de estrangeiros privilegiados. Já em 1938, em Londres, foi criado o Comitê Intergovernamental para os Refugiados (IGCR), objetivando sua realocação. Com a proximidade do término da Segunda Guerra Mundial, em 1943, o IGCR atuou em conjunto com a Administração das Nações Unidas de Socorro e Reconstrução (UNRRA), este órgão foi criado por iniciativa dos aliados, cuja principal função era repatriar vítimas de guerra, provenientes dos territórios ocupados.

Após a Segunda Guerra Mundial e com a nova recomposição territorial em decorrência da criação de diversos países, em virtude de vários fatores, inclusive aqueles oriundos de antigas colônias no continente africano, surgiram também problemas de caráter religioso, étnico, econômico, forçando a migração de parcela dessas populações.

Mas, como é normal, os conflitos não eclodem de um dia para outro, levando algum tempo para serem equacionados e apresentadas soluções para eles. Em 28 de julho de 1951 ocorre a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, fruto da Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução nº 429 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1950, entrando em vigor em 22 de abril de 1954, de acordo com o artigo 43 da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).

O refúgio seria uma interpretação ampliada do conceito de asilo. Este último se circunscreve somente à perseguição de cunho político, diverso do refúgio que abrange perseguições étnicas, grupo social, religião, nacionalidade, opiniões políticas. O Estatuto dos Refugiados prevê que o refugiado é

pessoa que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele 24

O refúgio se estende ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que dependerem do refugiado economicamente, desde que se encontrem em sua companhia quando da entrada no território nacional.

Conforme salientado na Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, ficam excluídos da condição de refugiados aqueles que: a) já desfrutem de proteção ou assistência por parte de organismo ou instituição das Nações Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR); b) sejam residentes no território nacional e tenham direitos e obrigações relacionados com a condição de nacional brasileiro; c) tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas; d) sejam considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas.25

Conforme pode ser visualizado, a materialização do refúgio foi a conscientização da sociedade internacional que, percebendo a nova dinâmica mundial apresentada no fim do século XIX e início do século XX, com novos Estados sendo criados, por diversos fatores, trouxe também novos problemas que deveriam ser enfrentados. Entre estes problemas, destacam-se as migrações por razões sociais, econômicas, religiosas e étnicas, levando a formatação do refúgio e propiciando a conscientização de que os direitos humanos são compostos, também, além dos direitos civis e políticos, dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Tal afirmação leva-nos a diferenciar o asilo político do refúgio, sendo que o primeiro é ato discricionário, por parte do Estado concedente, no exercício de sua soberania, devido a perseguições políticas de caráter individual, conforme acima mencionado, enquanto que o segundo demanda a ação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) em virtude de motivação étnica, religiosa, econômica, sociais e culturais, sendo que atingem parcela de uma coletividade.

Por ocasião da Copa do Mundo de 2014 houve uma grande incidência de ganeses entrando no Brasil, sendo que mais de uma centena solicitaram refúgio na Polícia Federal, na cidade de Caxias do Sul (RS), alegando perseguição religiosa.

O maior fluxo de refugiados é do Haiti, sendo que em dezembro de 2011 foram concedidos 3.396 pedidos de refúgio, estando naquele período, além destes, outros 2.000 pedidos aguardando o pronunciamento do CONARE, para poderem entrar no País.

A entrada se dá maciçamente pela região norte, especificamente pelo estado do Amazonas e Acre, sendo que quase a totalidade dos haitianos informa que trabalhavam na construção civil e fundamentam seu pedido na falta de condições de sobrevivência no país de origem e procuram no Brasil uma vida mais digna, respaldados na Declaração Universal dos Direitos Humanos que lhes assegura o direito à vida, à liberdade, de acesso ao trabalho, à moradia, alimentação e vestimenta adequadas.

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Sobre o autor
David Augusto Fernandes

Mestre e Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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