5. A causação de dano moral às pessoas jurídicas de direito público
Do mesmo modo que as pessoas jurídicas de direito privado, as de direito público também gozam de determinado conceito junto à coletividade, do qual muito depende o equilíbrio social e a subsistência de várias negociações, especialmente em relação: a) aos organismos internacionais, em virtude dos constantes empréstimos realizados; b) aos investidores nacionais e estrangeiros, ante a freqüente emissão de títulos da dívida pública para a captação de receita; c) à iniciativa privada, para a formação de parcerias; d) às demais pessoas jurídicas de direito público, o que facilitará a obtenção de empréstimos e a moratória de dívidas já existentes etc..
O grande obstáculo que se enfrenta, no entanto, é identificar a base normativa que dá sustentação ao direito à imagem e à reputação das pessoas jurídicas de direito público, que, juntamente com algumas pessoas jurídicas de direito privado, são sujeitos passivos em potencial dos atos de improbidade.
Inicialmente, observa-se que os direitos fundamentais surgiram como fatores de limitação à atuação do Estado, que reconhece e assegura a indenidade de uma esfera jurídica afeta ao indivíduo. Lembrando o título da sugestiva monografia de Paul Kirchhof,[33] o Estado normalmente se apresenta como “garantidor e inimigo da liberdade”. Em consequência, seria contraditório, ao menos sob a ótica de parte da doutrina, que o principal algoz dos direitos fundamentais, justificador de sua própria existência, seja por eles beneficiado;[34] em outras palavras, não seria possível a “confusão” entre destinatário e titular dos direitos fundamentais. Como afirmou o Tribunal Constitucional espanhol, “no pueden desconocerse las importantes dificultades que existen para reconocer la titularidad de derechos fundamentales a tales entidades, pues la noción misma de derecho fundamental que está en la base del art. 10 CE resulta poco compatible con entes de naturaleza pública.”[35] Assim, caso um ente público viole certos aspectos da esfera jurídica de outro ente público, ainda que facilmente enquadráveis na categoria dos direitos fundamentais, o que se teria, em verdade, seria mero conflito de competências.
Mesmo aqueles que apregoam a exclusão das pessoas jurídicas de direito público da titularidade e do âmbito de proteção dos direitos fundamentais, reconhecem que alguns entes públicos, enquanto realidades distintas do Estado-comunidade (rectius: o Poder Público), com interesses próprios e autonomia de ação, como são os conselhos de fiscalização profissional e as universidades, possuem os direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza.[36] Acresça-se, em reverência à juridicidade e por imperativo de ordem lógica, que não se pode negar às pessoas jurídicas de direito público certas garantias processuais, como o devido processo legal e o princípio do juiz natural, sejam, ou não, cognominadas de direitos fundamentais.
Reconheça-se, ou não, que a funcionalidade dos direitos fundamentais projeta-se sobre as pessoas jurídicas de direito público, é inegável que também elas, enquanto unidades existenciais autônomas, dotadas de capacidade jurídica e que estabelecem relações intersubjetivas no âmbito do Estado de Direito, têm uma esfera jurídica própria e, por via reflexa, possuem “direitos”. Esses “direitos” tanto podem estar expressos na Constituição e na lei, como derivar de sua essência, do referencial de juridicidade que permeia todo e qualquer Estado de Direito. Nessa linha, se não se nega a coerência lógica da tese que afirma estarem os direitos fundamentais primordialmente voltados à proteção do indivíduo contra o Estado, não se pode negar, igualmente, que também o Estado possui direitos em relação indivíduo (v.g.: direito de propriedade, direito de defesa etc.).
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais torna evidente que também eles influenciarão na interpretação da ordem jurídica, o que necessariamente contextualiza seus comandos num padrão de juridicidade, terminando por influir no delineamento de todo e qualquer “direito”, seja, ou não, fundamental, seja, ou não, outorgado a pessoas privadas. Não é por outra razão que o Tribunal Constitucional espanhol já reconheceu que as pessoas jurídicas de direito público têm direito à “tutela efectiva de los jueces y tribunales”, o que decorre da capacidade de ser parte num processo;[37] e possuem os mesmos direitos de liberdade de que desfruta a generalidade dos cidadãos, em especial aqueles previstos no art. 20 da Constituição espanhola.[38]
Conquanto seja difícil definir, com precisão, a exata extensão dos “direitos” afetos às pessoas jurídicas de direito público, observa-se que alguns deles, mais especificamente aqueles afetos à sua personalidade jurídica e à sua capacidade de agir, são facilmente perceptíveis. A personalidade jurídica de um ente é claro indicativo de que ele existe juridicamente, configurando uma unidade a que se atribui a capacidade de ter direitos e deveres. Em torno dessa unidade existencial aglutinam-se inúmeros “direitos” afetos à sua própria essência, como são, por exemplo, os de (1) ter denominação ou símbolo próprio; (2) expressar, por meio dos seus agentes, o entendimento a respeito de temáticas específicas; e de (3) ter uma imagem, daí decorrendo a proteção de sua reputação. É plenamente possível, assim, que o ato de improbidade venha a macular o conceito de que gozam as pessoas jurídicas relacionadas no art. 1º da Lei nº 8.429/1992, daí decorrendo um dano de natureza não-patrimonial passível de indenização.[39][40]
Não se sustenta, é evidente, que todo e qualquer ato de improbidade seja suscetível de causar danos não-patrimoniais ao respectivo sujeito passivo. Em múltiplas situações, no entanto, tal será inequívoco. À guisa de ilustração, mencionaremos apenas algumas, dentre as hipóteses previstas na Lei nº 8.429/1992, que poderão eventualmente acarretar um prejuízo não-patrimonial: a) recebimento de vantagem de qualquer natureza para tolerar a prática do contrabando e do narcotráfico (art. 9º, V); b) perceber vantagem para intermediar a liberação de verba pública (art. 9º, IX); c) causar dano ao erário com a realização de operação financeira sem a observância das normas legais (art. 10, VI); d) liberar verba pública ou aplicá-la com inobservância da sistemática legal (art. 10, XI); e) revelar indevidamente o teor de medida econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço (art. 11, VII).
Ao reconhecermos que o direito à imagem e à reputação é ínsito e inseparável da própria personalidade jurídica, integrando a esfera jurídica do sujeito passivo do ato de improbidade, temos de atribuir, por via reflexa, ao sujeito ativo do ato de improbidade, o dever jurídico de respeitá-lo ou, em caso de descumprimento, o dever de ressarcir integralmente o dano causado. Em casos tais, deverá o órgão jurisdicional contextualizar o ilícito praticado, transcendendo os lindes do processo e identificando a dimensão da mácula causada à reputação do ente estatal, o que permitirá a correta valoração do dano não-patrimonial e a justa fixação da indenização devida, que será revertida à pessoa jurídica lesada pelo ilícito.[41]
6. Os atos de improbidade e o dano moral coletivo
Além do dano não-patrimonial de natureza objetiva, é importante perquirir a possibilidade de o ato de improbidade causar um dano não-patrimonial de natureza subjetiva (dor física e moral). Sendo evidente que a pessoa jurídica não pode sofrer uma dor moral, o prisma de análise há de ser deslocado para a coletividade, que efetivamente poderá experimentar um sofrimento com o dano a bens jurídicos de natureza não-econômica. Note-se que estamos perante um evidente redimensionamento do individualismo oitocentista, que estabelecia uma correspondência biunívoca entre direito e personalidade, sendo ontologicamente refratário à própria defesa coletiva de direitos alheios.
O reconhecimento do dano moral enquanto dano in actio ipsa, o que dispensa a demonstração da efetiva dor e sofrimento, exigindo, apenas, a prova da conduta tida como ilícita, é um claro indicativo da possibilidade de sua defesa no plano transindividual, volvendo o montante da indenização em benefício de toda a coletividade, que é vista em sua inteireza, não dissecada numa visão anatômica, pulverizada entre os indivíduos que a integram. Como se percebe, para que seja demonstrada a existência e a possibilidade de reparação do dano moral coletivo, sequer é preciso recorrer à figura dos danos punitivos (“punitive damages”).
Na modernidade, o direito deixa de ser visto como panacéia do indivíduo e assume a funcionalidade de fator de integração e pacificação social, daí a crescente importância atribuída à tutela coletiva de interesses patrimoniais ou puramente morais.
A Lei nº 8.429/1992, como temos defendido, não se destina unicamente à proteção do erário, concebido como o patrimônio econômico dos sujeitos passivos dos atos de improbidade, devendo alcançar, igualmente, o patrimônio público em sua acepção mais ampla, incluindo o patrimônio moral. Danos ao patrimônio histórico e cultural, bem como ao meio ambiente, afora o prejuízo de ordem econômica, mensurável com a valoração do custo estimado para a recomposição do status quo, causam evidente comoção no meio social, sendo passíveis de caracterizar um dano moral coletivo, o qual encontra previsão expressa no art. 1º da Lei nº 7.347/1985, com a redação dada pela Lei nº 8.884/1994.[42]
A reparabilidade do dano moral coletivo, no entanto, suscitará algumas dificuldades. A primeira delas é constatada pelo fato de a Lei nº 8.429/1992 somente abordar os danos causados ao patrimônio das pessoas jurídicas referidas em seu art. 1º,[43] o que poderia não incluir o dano moral causado à coletividade. Para contornar o obstáculo, deve-se observar que o patrimônio público, de natureza moral ou patrimonial, em verdade, pertence à própria coletividade, o que, ipso facto, demonstra que qualquer dano causado àquele erige-se como dano causado a esta. Assim, ao se falar num dano dessa natureza, apesar da separação das partes que atingem a pessoa jurídica lesada e a coletividade, não se está instituindo uma verdadeira dicotomia entre os sujeitos passivos do ilícito, mas, unicamente, individualizando uma parcela do dano experimentado pelo verdadeiro titular do bem jurídico, o povo.
A segunda dificuldade é vislumbrada no mecanismo a ser utilizado para a identificação do dano. Aqui, será necessário aquilatar a natureza do bem imediatamente lesado pelo ímprobo, a natureza dessa lesão e a dimensão do impacto causado na coletividade, o que permitirá a aferição da comoção e do mal-estar passíveis de individualizar um dano moral de proporções coletivas.
Em terceiro lugar, não se pode deixar de mencionar a dificuldade em se mensurar o valor da indenização a ser fixada a título de compensação pelo dano moral causado, o que, em passado recente, chegou a ser erguido à categoria de óbice intransponível à própria reparação do dano moral. Nessa última etapa, entendemos que o valor da indenização deve ser suficiente para desestimular novas práticas ilícitas e para possibilitar que o Poder Público implemente atividades paralelas que possam contornar o ilícito praticado e recompor a paz social (v.g.: o agente público que determine a destruição de área de proteção ambiental diuturnamente utilizada pela população local, além de ser condenado a recompô-la, deve ser condenado a indenizar o dano moral causado à coletividade, que se viu privada da utilização de uma área de lazer, sendo o numerário direcionado à implementação de atividades de natureza similar, como a criação de um horto).
Acresça-se, ainda, que todos os membros da coletividade têm o direito[44] de exigir dos administradores públicos que atuem com estrita observância ao princípio da juridicidade, o que pode ser considerado um direito transindividual e indisponível, de natureza eminentemente difusa, já que pulverizado entre todas as pessoas. Essa concepção, no entanto, em que pese o fato de todos auferirem os efeitos de uma boa administração, não deve ser conduzida a extremos, culminando em identificar a ocorrência do dano moral sempre que for violado algum princípio administrativo ou mesmo lesado o erário.
Por último, observa-se que a indenização do dano moral causado à coletividade não deve reverter à pessoa jurídica lesada, tal qual preceitua o art. 18 da Lei nº 8.429/1992 em relação aos danos causados aos sujeitos passivos dos atos de improbidade. Apesar da unidade do ato ilícito, os seus efeitos devem ser vistos de forma bipartida, vale dizer, aqueles causados ao sujeito passivo do ato de improbidade e aqueles causados à coletividade, aplicando-se, em relação aos últimos, o disposto no art. 13 da Lei nº 7.347/1985 (“Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo...”).
Epílogo
A contenção da improbidade administrativa, enquanto ato ilícito que desestabiliza as relações político-administrativas e causa um evidente custo social, exige sejam envidados esforços no sentido de se buscar a máxima efetividade da Lei nº 8.429/1992, o que inclui o “ressarcimento integral do dano causado”. Na medida em que o sujeito passivo do ato de improbidade, titular de direitos e deveres por força de sua personalidade jurídica, pode sofrer um dano não-patrimonial que comprometa a sua imagem e reputação, tem-se o surgimento, para o sujeito ativo, do dever de ressarci-lo. Acresça-se que a unidade existencial do ato de improbidade permite que, na mesma relação processual, seja igualmente imposta a obrigação de ressarcir o dano não-patrimonial causado à coletividade.
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