A Medida Provisória nº 656/2014 e o Registro de Imóveis

O princípio da concentração na matrícula

27/10/2014 às 16:12
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A Medida Provisória nº 656/2014 traz importantes modificações no que diz respeito à segurança jurídica dos negócios imobiliários, com restrições ao risco de evicção, mediante a utilização da técnica de concentração de informações na matrícula do imóvel.

A Medida Provisória nº 656/2014, que, dentre vários assuntos, trata de temas relacionados ao Registro de Imóveis em seus artigos 10 a 17, vem sendo recebida com grandes controvérsias pelo meio jurídico. Os  comentários e referências que vêm sendo divulgados pelos meios de comunicação, por blogs e redes sociais, pelo próprio Governo Federal, e até mesmo por publicações em tese voltadas para a comunidade jurídica, são extremamente díspares e pouco esclarecedores, variando dos epítetos de “RENAVAM imobiliário” até “MP do calote”. O propósito deste artigo é, por meio da visão de um registrador imobiliário, destacar as vantagens e as desvantagens do novo sistema, que entrará em vigor dentro de poucos dias, em 7 de novembro de 2014, trazendo repercussões importantes para os negócios imobiliários e para a atividade forense. Face à importância do assunto para o homem comum, tentar-se-á, tanto quanto possível, utilizar uma linguagem acessível, que não dificulte a compreensão do tema por pessoas leigas no Direito. 

Para um melhor entendimento das modificações legais que serão introduzidas, é preciso que, inicialmente, se faça um retrato, ainda que singelo, do sistema até agora vigente.

Atualmente, quando alguém busca segurança na aquisição de um imóvel, o profissional assistente (advogado, corretor de imóveis ou tabelião) recomenda, dentre outras medidas, a obtenção da certidão de distribuição de feitos ajuizados em nome do vendedor. Da mesma forma, quando uma instituição financeira é solicitada a fornecer um empréstimo ou financiamento tendo por garantia um imóvel, é exigida, igualmente, essa certidão.

O que é a certidão de feitos ajuizados e qual o seu propósito? A certidão de feitos ajuizados indica se existem ações judiciais em curso contra o proprietário do imóvel. Caso existam, e se o resultado final da ação for desfavorável ao proprietário, o imóvel, em certos casos, pode ser atingido, mesmo que já tenha sido transferido a outra pessoa. É o que, nos meios jurídicos, se chama de evicção, ou seja, a perda da coisa em virtude de uma sentença judicial que a atribui a um terceiro.

O sistema atual parte do princípio de que, verificada a inexistência de ações judiciais em curso contra o vendedor, ou devidamente esclarecidas as possíveis repercussões das ações existentes, o comprador estaria em uma situação de relativa segurança quanto ao risco de perder o imóvel que está adquirindo.

Esse sistema, entretanto, é falho, principalmente por duas razões.

A primeira razão é o fato de que não existe um cadastro centralizado de ações judiciais em curso. Os distribuidores, órgãos que emitem as certidões de feitos ajuizados, têm circunscrições territoriais limitadas. Geralmente são obtidas as certidões de feitos ajuizados do local de domicílio do proprietário e do local onde o imóvel está situado. Dessa forma, se o vendedor estiver sendo processado em outra localidade, ou se declarar um domicílio que não corresponda à realidade, ou se tiver mudado de domicílio, possivelmente as certidões de feitos ajuizados não trarão nenhuma informação que possa alertar o comprador sobre o risco de evicção.

A segunda razão é que é possível que a ação judicial que venha a atingir a propriedade do imóvel ainda não tenha sido ajuizada, e só o seja após o imóvel ter sido vendido, trazendo para o comprador o dissabor de se defrontar com a evicção mesmo tendo adotado todas as cautelas documentais que estavam a seu alcance.

Além de falho, o sistema é dificultoso. Os órgãos de distribuição, em razão da estrutura complexa do Poder Judiciário, são vários. É usual obter certidões de feitos ajuizados da Justiça Estadual cível, da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho. Muitas vezes, nos grandes centros, os distribuidores cíveis da Justiça Estadual são vários, exigindo a obtenção de diversas certidões. E, mesmo assim, o comprador não estaria inteiramente seguro, dada a possibilidade, ainda que mais remota, de o imóvel ser atingido por uma sentença criminal ou de outra natureza, não coberta pelas certidões costumeiramente obtidas.

Em suma: comprar um imóvel, no sistema atual, por maiores que sejam os cuidados do profissional assistente, envolve um certo risco de evicção (ou seja, de perder o imóvel) que fica fora da cautela possível e razoável.

É nesse contexto que surgem as modificações introduzidas pela Medida Provisória nº 656/2014. O art. 10 da MP estabelece que:

"Art. 10.  Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil;

III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil.

Parágrafo único.  Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel."

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Em palavras simples: doravante, com a vigência da MP 656, examinando a certidão da matrícula no Registro de Imóveis, o comprador pode ter a certeza de que existem, ou de que não existem, ações judiciais que possam atingir o imóvel que ele está adquirindo. O que não estiver na matrícula do imóvel, não atinge o imóvel. É o que se tem apelidado nos meios técnicos de princípio da concentração na matrícula.

É claro que todo sistema tem suas vantagens e desvantagens. Pelo quanto se relatou até aqui, são óbvias as vantagens. A alteração traz grande segurança para o adquirente e confiabilidade para o sistema de registro de imóveis como um todo. Virtualmente torna impossível a chamada ação pauliana contra adquirente de boa-fé. Em tese, pode reduzir os juros bancários cobrados em empréstimos e financiamentos com garantia imobiliária. Reduz a burocracia e os custos da transmissão imobiliária, eliminando as inúmeras certidões de feitos ajuizados. 

Vamos, agora às desvantagens. A principal delas diz respeito à possibilidade de um credor do proprietário ficar privado da penhora sobre o imóvel que foi alienado no curso da ação. Daí o apelido maldoso de “MP do calote”. Suponha-se que o proprietário, antevendo que perderá a ação judicial, se desfaça do imóvel, vendendo-o a toque de caixa. Vendido o imóvel, este não poderá mais ser alcançado na execução da sentença, e o dinheiro obtido com a venda pode ser ocultado com facilidade, frustando o efeito prático da condenação.

Para evitar essa desvantagem, cabe ao credor judicial ser diligente, providenciando o quanto antes o registro da citação ou a averbação da existência da ação na matrícula do imóvel. A MP prevê, inclusive, a gratuidade dessa averbação àqueles que não possam custeá-la (art. 12, § 2º).

Daí advém uma segunda desvantagem. É possível que, em certos casos, a realização de inúmeros registros ou averbações na matrícula seja improdutiva, simplesmente porque o proprietário, apesar de muito demandado na Justiça, paga regularmente as condenações de que é alvo. Imagine-se, por exemplo, uma grande construtora, plenamente solvente, que é proprietária de muitos imóveis e é ré em centenas de ações judiciais cíveis e trabalhistas. Caso cada credor requeira a averbação da existência da ação em cada imóvel, haverá uma quantidade considerável de assentos imobiliários que serão feitos e, depois, cancelados.  A matrícula imobiliária ficará sobrecarregada, dificultando sua leitura e trazendo um esforço quiçá inócuo aos serviços de Registro de Imóveis. Caberá, decerto, ao Poder Judiciário estabelecer os limites de razoabilidade para a ordem de averbação de existência de ação, a fim de que essa medida não se banalize indiscriminadamente.

Em conclusão, a meu juízo pessoal, as desvantagens são em muito sobrepujadas pelas indiscutíveis vantagens do novo sistema, que valoriza o papel do Registro de Imóveis, o aproxima do cidadão e, tecnicamente, o torna equiparável aos sistemas de registro de imóveis de confiabilidade absoluta, como o alemão e o australiano. Sendo a aquisição imobiliária, em nossa cultura, vista como uma conquista pessoal, fruto muitas vezes de uma vida de economias, a eliminação dos riscos imponderáveis de evicção expressa verdeira realização dos postulados constitucionais de dignidade da pessoa humana e respeito à propriedade.

Sobre o autor
Francisco José Barbosa Nobre

Registrador imobiliário no Paraná. Ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-professor da Faculdade de Direito da UniBennett. Ex-professor da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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