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Em busca de uma justiça possível:

considerações acerca de um modelo de justiça em face do desenvolvimento humano e transformação social

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24/06/2016 às 13:24
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A JUSTIÇA ENQUANTO TEORIA

Todas as questões que envolvem a justiça, bem como sua onipresença nas culturas humanas e sua absoluta pluralidade conceitual, sempre aguçaram as mentes de muitos pensadores e pesquisadores que buscaram, sob a luz da ciência, conhecer mais sobre o tema.

Provenientes das mais diversas áreas do conhecimento e das mais diversas vertentes filosóficas, esses pensadores se propuseram a traçar um perfil teórico da justiça. Certamente esses autores enfrentaram e enfrentam os revezes naturais de se trabalhar com a ciência filosófica, que envolve, como já dito, lidar com a elevada coloração emotiva que esse assunto carrega nas mentes das pessoas.

Para alguns autores da teoria da justiça, essa carga emocional que acompanha o termo “justiça”, fruto do senso comum, é prejudicial à elaboração de uma teoria consistente sobre o tema, distorcendo o foco conceitual do que é a justiça. Esse foi o mote da filosofia clássica ocidental que perdura até a época contemporânea.

Algumas correntes, como a dialética clássica de Platão, Sócrates e Zenão, bem como os autores do iluminismo europeu como Baruch Spinoza e Descartes e mais recentemente Habermas e Rainer Forst, negavam, ou relegavam a um segundo plano, a importância do senso comum, tendo traçado seus estudos baseados na importância suprema da razão. Segundo Perelman:

O papel da dialética de Zenão, de Sócrates e de Platão será o de demonstrar claramente as incoerências a que leva o senso comum, do qual se tem de purgar o pensamento para chegar a uma filosofia, que se inspira nas matemáticas e se deixa guiar pela razão; essa razão, que o cristianismo, a partir de Santo Agostinho, considerará um pálido reflexo da razão divina. Essa tradição será continuada pelo racionalismo do século XVII que, através de Descartes, Spinoza, Leibniz, desprezará tanto o senso comum como a língua vulgar. Em busca das ideias claras e distintas, desdenha-se o sentido habitual das noções. (Perelman, 2005, p.236 - 237).

Alguns filósofos que se afastam da tradição racionalista, crêem que é necessária e proveitosa a consideração do pensamento corriqueiro na construção de uma teoria da justiça. Esses pensadores, tais como os utilitaristas Hume, Jeremy Bentham, L. Wittgenstein e Henry Sedgwick e mais tarde e com menos intensidade John Rawls[4], também usariam o senso comum como fonte principal de seus trabalhos.

Outros autores contemporâneos como Chaïm Perelman, Amartya Sen e Ronald Dworkin, por exemplo, conseguem acomodar tanto a racionalidade como o senso comum nas suas construções teóricas sobre a justiça. Esses teóricos entendem que a racionalidade é fundamental para se ter melhor compreensão de eventos que para nós ainda são obscuros, como também é uma forma de basear questões de justiça e injustiça em razões objetivas. Por sua vez, bom uso do senso comum é também muito importante, uma vez que exercem um papel ampliador e libertador para o próprio raciocínio.

Essa união entre razão e emoção está bem delineada no trabalho de Amartya Sen:

Embora seja certamente verdade que a ideologia e as crenças dogmáticas podem surgir de outras fontes que não a religião e os costumes, e foi assim que com frequência surgiram, isso não implica a negação do papel da razão na avaliação do fundamento por trás das atitudes instintivas, não menos do que na apreciação dos argumentos apresentados para justificar políticas deliberadas. O que Akbar[5] chamou de “caminho da razão” não exclui prestar atenção ao valor das reações instintivas, nem ignorar o papel informativo que nossas reações mentais frequentemente desempenham. E tudo isso é bastante coerente com não conceder a nossos instintos não analisados uma incondicional palavra final. (SEN, 2009, p. 81).

A noção de união entre a racionalidade e o senso comum na contrução de uma teoria da justiça, é fundamental para que haja um equilíbrio entre as necessidades corriqueiras das pessoas e a segurança que o uso da razão proporciona para o suprimento dessas necessidades.

As diferentes correntes filosóficas também influenciam e podem ser úteis para se classificar uma teoria de acordo com o que ela defende. Conhecer qual é o posicionamento de cada teórico é fundamental para que se possa realizar uma reflexão sobre a possibilidade de aplicação prática das suas teorias em cada caso específico.

O liberalismo na teoria da justiça está representado por John Rawls, que defende a justiça como equidade, principalmente de oportunidades[6]. Já a linha comunitarista conflita diretamente com a ideia liberal. Nas palavras de Wallace Ferreira:

Os comunitaristas surgem a partir da crítica que elaboram em relação às concepções liberais e libertárias. Aqui, eles vêem a comunidade como o lugar onde aparece o espaço comum da cultura, da política, dentre outras esferas sociais. A cultura dentro da comunidade é que vai definir esse espaço de compartilhamento das práticas sociais. No comunitarismo, a concepção de bem é o que informa o direito, é aquilo que é justo ou injusto, portanto. (FERREIRA, 2013).

A teoria da justiça compartilhada pelos libertarianistas como Robert Nozick advém da ideia de que as liberdades individuais são acima de tudo o valor mais caro para a justiça, sendo qualquer intervenção estatal uma afronta à necessidade autoreguladora da sociedade. O bem comum não deve ser levado em consideração para a teoria libertária, sendo o individualismo a resposta para solução das injustiças.

A centralização que uma instituição como o estado pode promover, inclusive no caso da distribuição de bens primários, por exemplo, é inaceitável para os partidários da teoria libertária, uma vez que interferiria nas liberdades individuais dos sujeitos (NOZICK, 1994).

Ronald Dworkin por seu turno defende a teoria igualitária, que pode ser considerada como um meio termo entre o liberalismo de Rawls e o libertarianismo de Nozick. Para Dworkin, as liberdades individuais devem sim ser respeitadas com total ênfase, porém sem desconsiderar a importância da instituição do estado.

Nesse sentido, Dworkin defende que o estado deve se abster de qualquer intromissão nas decisões privadas de qualquer indivíduo, negando a premissa de que as pessoas devem agir de uma forma determinada como na teoria rawlsiana. Entretanto o autor aduz também que o estado deve intervir no sentido de prover os bens básicos para que as pessoas possam buscar uma vida boa, contrariando a teoria de Nozick (DWORKIN, 2003).

 Também é muito importante o trabalho do filósofo alemão Rainer Forst, que propõe uma visão crítica, própria da Escola de Frankfurt para compor a sua teoria da justiça. Para Forst os autores liberais, partindo da ideia de que as realizações da justiça se dariam apenas num plano transcendental, alheio às reais ações dos indivíduos e das instituições, estaria demasiado distante dos contextos da justiça.

Direcionando dessa vez a crítica aos comunitaristas, autor acredita que ao restringir o foco das discussões sobre a justiça apenas nas realizações do bem comum e na ligação entre valores, moral e direitos, os partidários dessa corrente estariam obcecados com os contextos envolvidos na discussão da justiça.

Forst acredita que, ao invés de persistir na polarização da discussão entre liberais e comunitaristas, é necessário sobretudo uma análise crítica sobre os aspectos que permeiam as discussões sobre a justiça. Para o autor, quaisquer concepções absolutas e universalistas sobre a justiça não são razoáveis pois impõe de forma dominadora valores éticos e morais que podem ser conflitantes com as concepções íntimas de algum indivíduo ou grupo de pessoas.

Partindo da premissa que nem a moral universal dos liberais e nem o contextualismo dos comunitaristas pode responder as questões da justiça de forma satisfatória, Forst propõe uma terceira via, a da justificação. Para o filósofo alemão as ações para serem justas, devem ser acima de qualquer coisa justificáveis através da razão prática e da crítica bem fundamentada[7] da situação de injustiça apresentada (FORST, 2010).

Dessa maneira, vê-se que a justiça se apresenta também como tema central de um número extenso de teorias, vinculadas às mais diversas correntes de pensamento, sem deixar, contudo de ainda estar presente no universo emocional humano. 

Assim sendo, como visto a ideia de justiça não pode se afastar de sua origem cultural e nem dos aspectos éticos e morais, sob pena de, sob uma razão pura e desonesta a justiça ser injusta aos que lha é aplicada. Tampouco a justiça deve ser fruto de ação meramente instintiva e desarrazoada, movida apenas pelas normas morais, pois nem sempre o que é habitual é analogamente justo.

Para esse trabalho, em que se pretende relacionar a ideia de justiça ao desenvolvimento e à mudança social, duas teorias merecem maior destaque, por tratarem de forma bem precisa sobre esse tema. A seguir será apresentada uma breve análise dos trabalhos do liberalista John Rawls e do adepto da teoria das capacidades, o indiano Amartya Sen.


A teoria da justiça para John Rawls

O trabalho realizado por John Rawls reinaugurou na filosofia e nas ciências jurídicas a questão da justiça enquanto objeto de uma teoria que havia sido deixada um tanto de lado na segunda metade do século XIX. Rawls, principalmente em seu livro Uma Teoria da Justiça, constrói um elaborado conceito de justiça como equidade, que se tornaria influência direta em grande parte dos trabalhos sobre o tema da justiça nos anos posteriores à sua publicação.

A importância do trabalho de Rawls é inegável, porém atualmente não se pode deixar de identificar alguns pontos de sua teoria que não se encaixam com o sentido de justiça que se quer demonstrar nesse trabalho, baseada substancialmente na ideia de Amartya Sen. Dessa forma, apresento, de forma bastante resumida, as ideias de John Rawls sob a forma de crítica, oportunizando o conhecimento de sua teoria e, oportunamente, dos pontos que dela se discorda.

Sua teoria divide-se em dois momentos. Segundo o autor:

A teoria da justiça pode ser dividida em duas partes principais: (1) uma interpretação da situação inicial e uma formulação dos vários princípios disponíveis para escolha ali, e (2) uma demonstração estabelecendo quais dos princípios seriam de fato adotados. (RAWLS, 1997, p. 57).

A justiça, do ponto de vista de Rawls, primeiramente deve ser alcançada sob a exigência prioritária da equidade. A noção de equidade tem papel substancial na teoria da justiça do autor, uma vez que é a partir dela e em seu entorno que começa e se desenvolve todo o seu trabalho.

O autor conceitua a equidade como um estado de completa igualdade entre as pessoas, onde são considerados os interesses de todos com total ausência de auto-interesse, excentricidades pessoais ou preconceitos. Basicamente essa ideia de equidade é uma exigência de imparcialidade; imparcialidade essa que será fundamental para o desenvolvimento da segunda etapa de sua teoria. De acordo com o autor:

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Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo [...] A essa maneira de considerar os princípios de justiça, chamarei de “justiça como equidade.” (RAWLS, 1997, p. 12).

Como visto, Rawls depende de um consenso equitativo (dependente da imparcialidade) para que os princípios da justiça possam se realizar. Esse consenso se daria em um momento hipotético de contrato social[8] no qual um grupo de pessoas, nos termos do filósofo, “vestindo um véu de ignorância” (que seria um estado de ignorância acerca dos interesses pessoais e concepções autoconstruídas sobre o que é uma vida boa), unanimemente elegem os princípios de justiça.

Esses princípios determinariam as instituições sociais que irão regular os atos dessa sociedade justa, em contraste com o status quo ante. As instituições seriam como o governo da recém criada sociedade, dando início à criação de normas regulamentadoras que serviriam como mantenedoras do que foi acordado na posição original. De acordo com Rawls:

A posição original é, poderíamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcançados são equitativos. Isso explica a propriedade da frase ‘justiça como equidade’. [...]

A justiça como equidade começa, como já disse, como uma das mais genéricas dentre todas as escolhas que as pessoas podem fazer em conjunto, especificamente, a escolha dos primeiros princípios de uma concepção da justiça que deve regular todas as subsequentes críticas e reformas das instituições. Depois de haver escolhido uma concepção de justiça, podemos supor que as pessoas deverão escolher uma constituição e uma legislatura para elaborar leis, e assim por diante, tudo em consonância com os princípios da justiça inicialmente acordados. (RAWLS, 1997. p. 13-14).

Esse sistema, desde que devidamente fiel à sua gênese, é a chave para o desenvolvimento de uma sociedade perfeitamente justa. Para que isso ocorresse, as pessoas, no mundo pós-contrato, deveriam comportar-se em conformidade com a concepção de justiça emanada da posição original.

A “justiça como equidade” de Rawls, é uma construção política da justiça, devendo as pessoas que democraticamente participaram de sua realização agir de forma razoável, apesar de suas doutrinas contrárias. Para ele, as pessoas deveriam ser razoáveis durante a maior parte do tempo, mas preferencialmente quando forem pautados casos sobre fundamentos constitucionais e questões de justiça básica.

De acordo com o autor, as pessoas podem discordar de pontos de vista gerais, como religião, preferências artísticas, sobre o que é ou não uma vida boa, etc., porém devem sempre ser uníssonas no que diz respeito ao respeito às diversidades e aos princípios gerais de justiça.

Esse arranjo imaginado por Rawls pode ser resumido em três estágios: (a) eleição dos princípios básicos de justiça, (b) seleção das instituições reais que governariam a sociedade justa de acordo com os princípios previamente escolhidos[9] e (c) da formulação das leis que regulariam e resguardariam a aplicação dos princípios de justiça dessa sociedade. O desdobramento desses estágios culmina na segunda etapa da sua teoria de justiça: o surgimento dos “dois princípios de justiça”, de importância seminal para a sua teoria de justiça.

Rawls inaugura a segunda parte da sua teoria, esclarecendo que é nesse momento que serão estabelecidos os princípios adotados pelas instituições que regrarão a sociedade. Segundo o autor, Os princípios para as instituições não devem ser confundidos com os princípios que se aplicam aos indivíduos e às suas ações em circunstâncias particulares. (RAWLS, 1997, p. 57-58).

Para ficar mais claro, o autor de Uma Teoria da Justiça ainda dá alguns exemplos de instituições.

Como exemplos de instituições, ou, falando de forma mais geral, de práticas sociais, posso pensar em jogos e rituais, julgamentos e parlamentos, mercados e sistemas de propriedade. Pode-se considerar uma instituição de dois modos: primeiro, como um objeto abstrato, ou seja, como uma forma possível de conduta expressa por um sistema de regras; segundo, como a realização das ações especificadas por essas regras no pensamento e na conduta de certas pessoas em uma dada época e lugar. (RAWLS, 1997, p. 58).

Em suma, as instituições são as estruturas básicas de uma sociedade, são todos os elementos coletivos, corpóreos e incorpóreos que estabelecem alguma adequação organizacional a compõe. Rawls indica quais os princípios que os indivíduos, na posição original, deveriam escolher para regerem as ações institucionais. São dois, os seguintes:

Primeiro[10]: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.

Segundo[11]: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro do limite do razoável[12], e (b) vinculadas a posições e cargos disponíveis a todos. (grifo nosso). (RAWLS, 1997, p. 64).

Esses princípios serviriam para direcionar a atuação dessas instituições no sentido da plena justiça ou reduzir ao máximo a possibilidade de injustiça. Somente através da adoção unânime e consensual – obtida através de um processo político razoável e equânime – desses princípios é que a teoria da justiça de Rawls se realiza. Analisa-se agora os princípios individualmente.

O primeiro princípio propõe uma prioridade absoluta da liberdade, com sua prevalência acima de qualquer outra prioridade humana. As liberdades políticas, econômicas, de expressão, de locomoção, etc. devem ser estar incólumes de qualquer ação institucional, ou seja, nenhuma liberdade pode, por exemplo, ser diminuída para que se possa promover uma maior distribuição de renda.

A primeira parte do segundo princípio diz respeito à necessidade de se buscar a equidade distributiva e assume a forma de fazer com que os membros da sociedade em pior situação sejam beneficiados tanto quanto possível. (SEN, 2009, p. 90).[13] A segunda parte do segundo princípio traz a ideia de que as instituições devem oferecer oportunidades públicas iguais para os indivíduos, sem apresentar quaisquer barreiras ao ingresso de cidadãos por conta de etnia, religião, orientação sexual, etc.

Com a observância indesviável desses princípios institucionais, bem como com a conduta individual razoável e em acordo com os preceitos de justiça adotados na posição original, a sociedade estaria em franco avanço rumo à justiça plena. Segundo o autor de Uma Teoria da Justiça:

E tendo procedido assim, elas [as pessoas] pode, independentemente de sua geração, reunir em um único sistema todas as perspectivas individuais e atingir juntas princípios reguladores que podem ser afirmados  por todos, na medida em que vivem de acordo com eles,  cada um de seu próprio ponto de vista. A pureza de coração, se pudéssemos atingi-la, consistiria em ver isso claramente e agir com graça e autocontrole em virtude desse entendimento (RAWLS, 1997, p. 655).

É evidente a importância e a influência que o trabalho de John Rawls e sua teoria da justiça têm acerca do que se pensa atualmente sobre a justiça, sendo esse o motivo da inserção desse ponto no presente estudo. A noção de justiça como equidade, a defesa da democracia e das liberdades, e a capacidade que as pessoas podem ter de possuir um senso moral de conceber o bem e a justiça a despeito do interesse próprio são substanciais para o entendimento das atuais teorias da justiça.

 Contudo, serão apresentados por alguns autores, principalmente Amartya Sen, alguns pontos da teoria rawlsiana que entram em conflito com a ideia de justiça que é defendida nesse trabalho, e que merecem toda a nossa atenção nesse momento. A começar com a radical primazia que é dada à questão da liberdade.

Para que se possa conquistar um desenvolvimento justo e se promover mudanças sociais justas, é necessário se relativizar o primeiro princípio da justiça de Rawls. Em alguns casos, como, por exemplo, no princípio da função social da propriedade (adotado pelo sistema jurídico brasileiro), são defendidos bens tão ou mais importantes – o direito à moradia, ao trabalho – do que o direito a se ter uma propriedade privada.

Esse exemplo demonstra que é possível adotar critérios mais flexíveis para a questão da liberdade como prioridade e mesmo assim se alcançar a justiça.

Outro ponto crucial da teoria de Rawls que merece atenção é a questão dos bens primários. Para o autor, bens primários seriam os bens que todo o ser humano racional deseja e necessita para ter uma vida boa, a despeito de qualquer concepção de o que seja uma vida boa.

Esses bens primários dizem respeito basicamente aos princípios de justiça de Rawls, e podem ser resumidos como sendo (i) direitos e liberdades fundamentais, (ii) liberdade de movimento e livre escolha de ocupação em um contexto de oportunidades diversificadas, (iii) poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica, (iv) renda e riqueza e (v) as bases sociais do autorespeito.

Ora, a concepção de bens primários não leva em consideração as enormes variações que se apresentam nas vidas das pessoas, podendo fazer com que surjam desigualdades irremediáveis no momento da distribuição desses bens.

Por exemplo, ao se conceder o mesmo salário para empregados de uma empresa, se está respeitando o preceito da equidade de oportunidades, entretanto não se leva em consideração o que cada empregado é capaz[14] de fazer com esse salário; um empregado solteiro tem muito mais capacidade de viver bem com um salário mínimo do que um obreiro que sustenta uma numerosa família.

Também digno de crítica é o fato de que não se pode esperar que ocorra na prática um padrão comportamental esperado das pessoas e instituições – o qual primaria pela razoabilidade, compreensão e respeito aos princípios de justiça. Qualquer desvio das normas de adequação organizacionais propostas por Rawls já abalariam profundamente as estruturas básicas da sociedade justa por ele proposta.

Ao necessitar de um padrão de comportamento rígido que sustente sua teoria, Rawls não considera a realidade multifacetada das relações e aspirações humanas. Essa abordagem exige a submissão do comportamento humano a apenas uma visão ética e política, o que é inalcançável e ao mesmo tempo encarcerador, contradizendo a sua própria ideia de primazia da liberdade.

A corrente contratualista adotada por Rawls na construção de sua teoria também merece uma análise crítica. Amartya Sen acredita que a abordagem unicamente transcendental[15] de Rawls seja ideal para se elaborar uma teoria de justiça. Nas palavras do autor indiano:

A ideia de abordar a questão da equidade através do artifício do espectador imparcial smithiano permite algumas possibilidades que não estão imediatamente disponíveis na linha contratualista de argumentação utilizada por Rawls. Temos de analisar os aspectos pelos quais a linha smithiana de argumentação, envolvendo o espectador imparcial, é capaz de levar em conta possibilidades que a abordagem do contrato social não pode facilmente acomodar, incluindo: (1) lidar com a avaliação comparativa e não apenas a identificação de uma solução transcendental; (2) atentar para as realizações sociais e não apenas para as demandas das instituições e das regras; (3) permitir a incompletude na avaliação social, mas ainda fornecer orientação sobre importantes problemas de justiça social, incluindo a urgência de eliminar os casos de manifesta injustiça; e (4) prestar atenção em vozes além dos participantes do grupo contratualista, seja para levar em conta seus interesses, seja para evitar cair na armadilha do paroquialismo. (SEN, 2009, p. 101).

Inúmeras críticas foram dirigidas a Rawls, em grande parte por parte de autores do liberalismo, que diziam ser impossível, dentro de uma teoria liberal, se buscar um consenso universal sobre princípios de justiça, tornando contraditório, por exemplo, o alegado respeito à liberdade de pensamento que Rawls sempre defendeu. É certo que num cenário onde somente um pensamento prevalece sobre os outros, estão feridas opiniões divergentes, que num contexto liberal merecem toda a liberdade de existir.

Nesse sentido, o autor reconhece a existência de contradição, admitindo que o que se buscava anteriormente em um plano hipotético ou metafísico, agora só pode ser concretizado numa sociedade politicamente democrática, adquirindo um claro propósito prático. Nas palavras de John Rawls:

Há uma coisa que não consegui dizer ou, em todo caso, colocar suficientemente em evidência em TJ[16]: que a teoria da justiça como equidade está concebida como uma concepção política da justiça. Se é  evidente que uma concepção política de justiça é uma concepção moral, é necessário especificar que ela é feita para se aplicar a um certo tipo de objeto, a saber, instituições econômicas, sociais e políticas. A teoria da justiça como equidade visa em especial àquilo que chamei de ‘estrutura básica’ de uma democracia constitucional moderna. (RAWLS, 2000, p. 203).

Assim sendo, o autor defende que sua teoria de justiça somente pode ser aplicada às sociedades que adotam um sistema político democrático, sendo deixados de lado os aspectos da sua teoria que fossem intangíveis pela práxis política. Rawls aduz nesse momento que as razões que definem os princípios de justiça não devem ser unânimes por serem unas, mas porque foram decididas de forma democrática numa esfera política, e não mais numa situação hipotética e metafísica.

Ao restringir a aplicação de sua teoria apenas aos Estados que adotam um sistema político democrático, Rawls também não se preocupa em adotar uma abrangência global para sua aplicação. O processo da escolha razoável dos princípios de justiça (na posição original) se dá por um grupo específico de indivíduos[17], sendo os efeitos dos princípios somente suportados pelo mesmo grupo que os elegeu.

Embora talvez não seja a intenção de John Rawls a construção de uma teoria de aplicação global, não se pode negar que as escolhas, sejam políticas, econômicas ou até mesmo culturais de um povo muitas vezes transcendem os limites originais de sua aplicação. Exemplificando: a adoção de políticas neoliberais nos EEUU levou esse país, nos últimos anos, a uma grave crise econômica, que por sua vez afetou toda a economia mundial, culminando em prejuízos na vida de pessoas em países com orientações políticas bem diferentes das norteamericanas.

Uma abordagem mais global da justiça tem sua importância, pois torna seu objeto pessoas e instituições que estão à margem da sociedade idealizada por Rawls. Adotando uma análise universalista da questão da justiça, se pode, com mais legitimidade, observar e apontar situações de injustiça não somente de dentro da sociedade, sem sofrer nenhum confinamento posicional[18].

   Em que pesem esses pontos dissonantes entre a teoria da justiça rawlsiana e a ideia de justiça de Amartya Sen, não se deve esquecer que a ideia de Sen é fortemente influenciada por Rawls, que inclusive foi professor do autor indiano. Assim sendo, embora a ideia de justiça de Sen se distancie bastante da teoria rawlsiana, se deve reconhecer que existem pontos importantes em que existe intersecção entre o pensamento dos dois autores.

A noção de justiça como equidade é de importância basilar na construção da ideia de Sen, sendo a aplicação dos princípios da justiça o ponto de partida para a teoria do autor indiano. A busca de Amartya Sen por uma diminuição das injustiças por meio da oferta equânime de oportunidades, bem como a importância das liberdades, mostram a força da influência rawlsiana no trabalho do filósofo e economista indiano.

Ainda que existam imensas divergências entre os trabalhos dos dois autores, se pode entendê-las como sendo fruto da própria proximidade entre Rawls e Sen.

 O profundo conhecimento de Amartya Sen do trabalho de John Rawls foi substancial para a formulação de sua própria teoria de justiça.

Assim sendo, apesar das críticas bem direcionadas de Sen, Uma teoria da Justiça de John Rawls ainda é obra seminal para se compreender a justiça enquanto parte fundamental da agência das instituições, bem como das nossas próprias ações.

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Sobre o autor
Arthur Votto Cruz

Advogado graduado pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Arthur Votto. Em busca de uma justiça possível:: considerações acerca de um modelo de justiça em face do desenvolvimento humano e transformação social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4741, 24 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34626. Acesso em: 2 mai. 2024.

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