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Condução coercitiva e polícia judiciária

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A condução coercitiva que gere consecutiva segregação temporária retrata legítimo procedimento apto a preceder uma “prisão para investigação”, essência da prisão temporária, e não irregular “prisão para averiguação”, com mera captura infundada.

A condução coercitiva, no âmbito policial entendida como a compelida apresentação de uma pessoa para realizar determinado ato instrutório legal, é admitida nas hipóteses de não comparecimento injustificado após regular notificação assim como de urgência para prestar esclarecimentos, e pode acarretar eventual responsabilização pelo delito de desobediência (Código Penal, art. 330).

Essa modalidade autônoma de condução coercitiva não se confunde com aquela intrínseca à captura de pessoa “procurada” pela Justiça - com mandado prisional pendente, tampouco com a “prisão-captura”, compreendida pela abordagem e apresentação de indivíduo surpreendido em aparente estado de flagrante delito à delegacia para as medidas legais de polícia judiciária consoante juízo técnico-jurídico do delegado de polícia.

Nota-se que a condução coercitiva isolada não consiste em restrição à liberdade ou qualquer outra espécie de segregação (a pessoa não está presa). Trata-se da imposição de cumprimento de dever legal de comparecimento. Não há que se falar em “reserva de jurisdição” para uma providência inerente à regularidade da atividade policial, seja por ser consectário lógico da função de investigação criminal e correlata instrução extrajudicial, seja por invocação de poderes implícitos para viabilizar a identificação, a oitiva ou outro ato que reclame a presença da pessoa.

Os dispositivos legais que cuidam da negativa de comparecimento autorizam a condução coercitiva, seja de vítimas (CPP, art. 201, § 1º), de testemunhas (CPP, art. 218), de acusados (CPP, art. 260), de peritos (CPP, art. 278) e mesmo de adolescentes (ECA, art. 187) e são seguramente aplicáveis à etapa preliminar da persecução penal.

O manto constitucional que garante a liberdade e restringe a prisão por crime comum à ordem judicial e à situação de flagrante delito (CF, art. 5º, caput e inciso LXI) e que fundamenta o Estado Democrático na dignidade da pessoa humana (CF, art. 4º, III) não sofre qualquer abalo em virtude da providência de compelir fisicamente a pessoa que se recusa a comparecer na delegacia para prestar as informações as quais está legalmente obrigada.

Mesmo o investigado ou preso, conquanto possa se quedar silente (CF, art. 5º, LXIII), pode ser conduzido coercitivamente para que seja, pelo menos, identificado e qualificado. O averiguado ou indiciado não pode invocar o direito ao silêncio e tampouco o direito de não se autoincriminar para se recusar a informar dados sobre a própria identidade ou qualificação ou mesmo para mentir sobre tais informações pessoais, porque estas não se referem aos fatos apurados e, assim, não implicam em assumir responsabilidade penal.[1]

A ordem de condução coercitiva deve ser emanada do delegado de polícia presidente da investigação e utilizada com prudência, vale dizer, evitando-se sua banalização e destinada aos casos em que o intimado se recuse injustificadamente a atender o chamamento ou em que a urgência reclame tal medida, ainda que sem prévio mandado de intimação.[2]

Nessa senda posiciona-se a jurisprudência nacional, como já decidiu o Insigne Superior Tribunal de Justiça:[3]

1. De acordo com os relatos e informações constantes dos autos, percebe-se claramente que não houve qualquer ilegalidade na condução do recorrente à delegacia de polícia para prestar esclarecimentos, ainda que não estivesse em flagrante delito e inexistisse mandado judicial.

2. Isso porque, como visto, o recorrente em momento algum foi detido ou preso, tendo sido apenas encaminhado ao distrito policial para que, tanto ele, quanto os demais presentes, pudessem depor e elucidar os fatos em apuração.

3. Consoante os artigos 144, § 4º, da Constituição Federal, “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”, sendo que o artigo 6º do Código de Processo Penal estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito.

4. A teoria dos poderes implícitos explica que a Constituição Federal, ao outorgar atribuições a determinado órgão, lhe confere, implicitamente, os poderes necessários para a sua execução.

5. Desse modo, não faria o menor sentido incumbir à polícia a apuração de infrações penais e, ao mesmo tempo vedar-lhe, por exemplo, a condução de suspeitos ou testemunhas à delegacia para esclarecimentos.

É evidente que a condução coercitiva, além de se justificar somente quando escorada na recusa do intimado ou na urgência plausível da diligência, deve ser executada com reta observância das garantias do indivíduo, mormente a assistência de advogado que seja solicitada, assim como o emprego moderado e progressivo de força e de algemas.[4]

Não se pode negar que, em situações extremas, a condução coercitiva poderá se desdobrar em representação pela prisão temporária do indivíduo suspeito da prática de delitos graves pretéritos, justamente aqueles que admitem a aludida medida cautelar pessoal.

Vale assinalar a existência de debate sobre referido ponto específico. Para uma primeira linha argumentativa, é possível sustentar que a breve mantença de investigado aguardando a provável e iminente decretação de sua prisão temporária supostamente seria uma “prisão para averiguação”, por não se tratar de prisão em flagrante delito e ainda não consubstanciar plenamente prisão por ordem judicial (conquanto esta esteja prestes a ser determinada), acompanhada da leitura superficial do parágrafo 5º, do art. 2º, da Lei nº 7.960/89: “A prisão somente poderá ser executada depois da expedição de mandado judicial”.

De outro lado, há posicionamento doutrinário e jurisprudencial que considera que a hermenêutica do citado dispositivo mais coerente e consentânea ao sistema jurídico e à realidade é no sentido de que, se o sujeito foi surpreendido e conduzido, e estão presentes os requisitos da prisão temporária, o delegado de polícia por ela representará instantaneamente, e o agente aguardará em ambiente separado na repartição policial (em cartório por exemplo e não segregado com outros indivíduos presos), realizando-se atos instrutórios afetos ao investigado como a formalização de sua oitiva ou conforme o caso de seu interrogatório (integrante de seu formal indiciamento)[5] durante a apreciação do pedido e, exarada a decisão do magistrado, será efetivamente executada a prisão, vale dizer, será o sujeito encarcerado com outros presos temporários. Para essa corrente, até então, o suspeito não é considerado “preso”, e o lapso temporal deve ser o indispensável para a análise e deliberação da autoridade judiciária.

Sobre o tema, é de bom alvitre a transcrição de ementa de julgado do Egrégio Supremo Tribunal Federal:[6]

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDUÇÃO DO INVESTIGADO À AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO ART. 6º DO CPP. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRISÃO OU DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. DESNECESSIDADE DE INVOCAÇÃO DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR DECISÃO JUDICIAL, APÓS A CONFISSÃO INFORMAL E O INTERROGATÓRIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE. OBSERVÂNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. USO DE ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS IDÔNEAS E SUFICIENTES. NULIDADES PROCESSUAIS NÃO VERIFICADAS. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA.

Como se observa e consta em trecho da decisão, a Suprema Corte entendeu que o período em que um cidadão é mantido em dependência policial enquanto é analisada a representação por sua imperiosa segregação temporária não é considerado prisão e essa permanência seria decorrência imanente do exercício da função constitucional de investigação criminal (CF, art. 144, § 4º).[7]

Para melhor ilustração, cita-se como exemplo cenário não incomum na rotina de polícia judiciária: prática de crime de roubo cuja autoria até então é desconhecida. Afastado o estado de flagrância delitiva, um indivíduo é visto e reconhecido indubitavelmente por vítimas ou testemunhas presenciais como suspeito de participação no delito e, por tal motivo, é ele abordado e conduzido coercitivamente até a delegacia de polícia, desencadeando a imediata coleta de lastro probatório como o formal reconhecimento do agente e a redução a termo das oitivas, com pronta representação pela prisão temporária do agente, se necessário em sede de plantão judiciário (Lei nº 7.960/1989, art.5º). Adotando a posição jurisprudencial capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal, o juiz de direito plantonista pode determinar que o suspeito lhe seja apresentado e, ao decretar a prisão temporária, será o agente submetido a exame de corpo de delito cautelar como garantia de não ter sofrido ofensa à sua integridade física (Lei nº 7.960/1989, art. 2º, § 3º), assim viabilizando o prosseguimento das investigações com vistas a identificar eventuais comparsas, localizar a res furtiva ou o instrumento empregado na ação criminosa bem como para evitar que as vítimas ou testemunhas sejam colocadas em evidente situação intimidatória e de iminente perigo. De outra banda, caso se opte pelo entendimento contrário, de que esse curto interstício temporal e procedimental seria uma suposta prisão ilegítima (“prisão para averiguação”), o suspeito seria liberado após a formalização dos respectivos atos de polícia judiciária e durante a avaliação judicial da representação por sua prisão temporária e, emitida a ordem prisional, os policiais sairiam à procura do agente, o qual, ciente da iminência da provável ordem prisional, livre estaria para empreender fuga para paradeiro desconhecido, dificultar sua localização, avisar comparsas, destruir ou ocultar objetos e bens relacionados à prática criminosa ou até coagir vítimas e testemunhas.

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Oportuna a reprodução de julgado do extinto Tribunal de Alçada Criminal Paulista, que reclamava a adjacente representação pela segregação cautelar nessas hipóteses:[8]

abuso de autoridade - Delegado de Polícia que determina medida privativa de liberdade a suspeito de crime sem, contudo, requerer a prisão temporária ou a custódia - crime caracterizado - condenação mantida. Comete crime de abuso de autoridade o Delegado de Polícia que ordena encarceramento de suspeito de crime, sem, contudo, representar ao Poder Judiciário, solicitando a prisão temporária que entender imprescindível à investigação policial.

Impende enfatizar ainda que, independente do posicionamento ao qual se filie, caso o suspeito do cometimento de fato delituoso grave já esteja devidamente identificado e contra ele tenham sido obtidos elementos de convicção e suporte probatório que demandem sua prisão temporária para a investigação criminal, a ordem prisional sempre deve ser pleiteada antes de sua captura. A condução coercitiva que possa em seu desenrolar eventualmente culminar numa prisão temporária deve ser tratada como exceção, apenas em casos nos quais a efetiva suspeição surja exatamente durante a abordagem e identificação do agente.

Destarte, de acordo com a posição jurisprudencial citada, a condução coercitiva que gere consecutiva segregação temporária retrata legítimo procedimento apto a preceder uma “prisão para investigação”, essência da prisão temporária, e não irregular “prisão para averiguação”, com mera captura infundada sem qualquer respeito aos direitos do suspeito ou submissão a atos investigatórios velados despidos da garantia de defesa, acesso à advogado ou plena ciência ao Poder Judiciário.

De igual modo, agindo o delegado de polícia nos termos acima expostos (pronta representação pela prisão cautelar), não há que se cogitar em caracterização de abuso de autoridade (Lei 4.898/65, art. 4º, “a”) porquanto não existe o imprescindível dolo de segregar indevidamente o sujeito na postura da autoridade policial (Código Penal, art.18, p.u.). Ao contrário, a intenção é justamente exercer o poder-dever de buscar a preservação da ordem pública e a tutela da sociedade empregando as respectivas formalidades legais, apenas aguardando a manifestação judicial para executar ou não a prisão provisória pleiteada, cuja necessidade premente é vislumbrada na ocasião. O suposto abuso, nesses casos, acaba fulminado, sobretudo, face à inexistência de elemento subjetivo da infração penal.

Repise-se que, baseado no entendimento mencionado, não comete abuso aquele que conduz coercitivamente pessoa sobre a qual então se descubra recair suspeita fundada de participação pretérita em determinado delito grave enquanto é formulada sua prisão temporária à Justiça. Quem assim age, não está imbuído em perseguição, capricho, vingança ou maldade, e sim em assegurar a devida instrução extrajudicial e proteger a sociedade pelas vias legais adequadas. Prender, deliberada e imoderadamente, sem qualquer imputação ou fundamento idôneo, é conduta criminosa. Conduzir coercitivamente, para a adoção imediata de medidas de ofício visando a escorreita aplicação da lei é dever, acima de tudo, moral de todo policial.[9]


NOTAS

[1] Prevalece o entendimento segundo o qual a oferta de dados qualificativos falsos pelo investigado caracteriza o delito de falsa identidade (CP, art.307), enquanto a negativa omissiva em fornecer referidas informações pessoais configura a contravenção penal de recusa de dados sobre própria identidade ou qualificação (Lei das Contravenções Penais - Decreto-lei nº 3.688/1941, art.68, caput).

[2] Nesse sentido: CABRAL, Bruno Fontenele; SOUZA, Rafael Pinto Marques de. Manual prático de polícia judiciária, 2013, p. 59.

[3] STJ, RHC nº 25.475/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, j. 16.09.2010.

[4] Conforme parâmetros delineados na Súmula Vinculante nº 11: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a  excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

[5] De acordo com o caso concreto e com a convicção jurídica motivada do delegado de polícia presidente da investigação este poderá, via juízo de probabilidade (“indiciamento material”), determinar fundamentadamente o formal indiciamento do agente, se reputar já presentes elementos suficientes para imputá-lo como provável autor ou partícipe da infração penal apurada. Para maiores detalhes sobre o assunto: “O indiciamento sob o enfoque material e a Lei Federal nº 12.830/2013”, disponível em: < http://jus.com.br/artigos/26390>.

[6] STF, HC nº 107.644-SP, 1ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06.09.2011.

[7] Nesse sentido: ZANOTTI, Bruno Taufner, Delegado de Polícia em ação, 2013, p.133.

[8] TACrimSP, rel. Sergio Pitombo, EJSTACrim, v. 11, p. 38, jul./set. 1991.

[9] LESSA, Marcelo de Lima. A independência funcional do delegado de polícia paulista. São Paulo: Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, 2012, p. 6/7.

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Sobre o autor
Rafael Francisco Marcondes de Moraes

Mestre e Doutorando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Professor concursado da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol). Autor de livros pela editora JusPodivm: www.editorajuspodivm.com.br/autores/detalhe/1018

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Rafael Francisco Marcondes. Condução coercitiva e polícia judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4487, 14 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34866. Acesso em: 19 abr. 2024.

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