1 PROÊMIO
Este artigo analisa o caso específico do foro anual[1] instituído pelo município de Salvador-BA, cuja pretensão foi imposta em face de mais de 40.000 cidadãos proprietários de terrenos nos limites da cidade. Como política superficialmente populista, a fim de acalmar os ânimos, o município resolveu isentar do pagamento do foro aqueles cujos terrenos tivessem valor venal inferior a R$ 80.000,00. Manteve-se, entretanto, a cobrança sobre mais de 27 mil terrenos.
A instituição de foro, relativo à enfiteuse com um ente público, quando legal, demandaria atualização cadastral completa, perfeita e acabada, o que não foi realizado pelo município, que, na maioria dos casos, sequer atualizou os nomes dos logradouros modificados há mais de 10 anos, nada obstante o ente municipal tenha disseminado a falsa ideia de ter procedido a atualização cadastral.
A pretensão municipal teve fundamento em regulamentação referida a Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil, assim nomeado administrador da Coroa portuguesa, portanto, responsável pela gestão da coisa pública do Brasil colônia.
Segundo o município, o não pagamento do Foro 2014 induzirá a inscrição do contribuinte no Cadastro Informativo Municipal – CADIN e outras consequências. O não pagamento do foro por três anos induzirá a expropriação do terreno, sem direito a indenização por incorrer o contribuinte em pena de comisso.
2 DA ATUALIZAÇÃO DO CADASTRO IMOBILIÁRIO
A cobrança municipal de qualquer valor, tributário ou não, referente ao imóvel, precisa considerar as suas especificidades, demandando trabalho específico da administração pública municipal, por seus servidores, para que realizem a atualização dos seus cadastros.
Ao contrário disto, o município procedeu o lançamento do foro 2014 sem realizar detida atualização cadastral, pois em diversos casos sequer o endereço do imóvel estava atualizado, como no caso ilustrativo do Processo Administrativo nº. 79938/2014, em que o município destinou a notificação à Rua Deraldo Mota, quando, em verdade, o logradouro passou a chamar-se Rua da Fauna há mais de 10 (dez) anos. O caso ilustrativo foi escolhido por se situar na região de Piatã porque há uma peculiaridade conhecida pelo município, mas não observado intencionalmente por conta da sede de arrecadação da atual gestão.
A peculiaridade é que a região de Piatã foi doada por Tomé de Souza ao município, que alienou aquelas terras à família francesa Gantois, com a instituição da enfiteuse. A família loteou algumas pequenas terras da região, mantendo, contudo, a maior parte como fazenda própria. Na década de 1960, a família Gantois resolveu resgatar o terreno, extinguindo a enfiteuse e os direitos dela decorrente, inclusive o foro anual.
Sendo o resgate da enfiteuse datado da década de 1960, nem uma certidão vintenária seria capaz de demonstrar o resgate. Além disso, o 7º Ofício dos imóveis de Salvador, responsável pela região, foi instituído somente em 1988, dificultando-se ainda mais a averiguação. Ressalte-se que esta averiguação deveria ter sido feita pelo município, para a instituição do foro anual, e não em matéria de defesa do contribuinte.
Maldosamente, a nosso sentir, o município faltou com o dever de perquirir à situação específica de cada imóvel, agindo de modo temerário na instituição do foro. Transgredindo, portanto, o seu dever, o município lançou cobrança de foro anual em diversos imóveis da região, aleatoriamente.
Também não verificou a área do terreno, valendo-se de planta genérica de valores atribuída ao cálculo do IPTU, enquanto a instituição de enfiteuse deve considerar o Registro Imobiliário e a cobrança de foro ou laudêmio deve ser realizada diante de valor certo e determinado, e não advir de uma planta genérica de valores.
Evidente, portanto, a intenção do município somente na arrecadação, e não a justiça na gestão da coisa pública.
3 ESCORÇO HISTÓRICO NECESSÁRIO
A constituição do foro 2014, pelo município de Salvador, fundamentou-se em (i) doações realizadas, em 1552, pelo Primeiro Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza, administrador da Coroa portuguesa, em (ii) aquisições realizadas face ao Mosteiro de São Bento e (iii) desapropriações. Deste modo, se faz mister perquirir a história, relacionando-a com fundamentos jurídicos, que demonstrarão a inconsistência da pretensão municipal.
No antigo direito português da monarquia lusitana havia instituto jurídico denominado emprazamento ou prazo de aforamento, que consistia na concessão de terras a quem se encarregava de seu cultivo, mediante pagamento de renda anual. Este instituto diferia da enfiteuse do direito romano em função da prestação de serviço referente ao cultivo da terra. Há, portanto, clara vinculação ao pensamento feudal medievo, inteiramente estranha ao instituto romano. O instituto compunha claro complexo de privilégios dos senhores feudais[2]. A regulamentação do instituto estava presente nas ordenações afonsinas, nas ordenações manuelinas e nas ordenações filipinas.
Ao final da Idade Média, ou Idade das Trevas, como preferem os iluminados, alguns recém-formados Estados, como Inglaterra e França, emancipavam-se face ao poder da Igreja, outros, como Alemanha e Itália, tinham poder descentralizado, formados por principados.
Por este motivo, a Igreja Católica resolveu legitimar a ação de Estados fiéis, apoiando as Grandes Navegações empreendidas pelas potências marítimas da península Ibérica: Espanha e Portugal. Reduziu-se, assim, a influência dos países que se afastaram da Igreja, quanto às terras descobertas, de modo a levar-se o catolicismo aos povos bárbaros do novo mundo, catequizando-os, deste modo.
3.1 A ORIGEM DA PRETENSA LEGITIMIDADE DO APOSSAMENTO DAS TERRAS DESCOBERTAS CONTRA OS INDÍGENAS
A validade da posse das terras descobertas pela Coroa portuguesa devia-se à concessão feita por Deus através da sua Igreja, representada, na terra, pela pessoa do Papa. A Igreja considerava tais terras res nullius, pertencentes ao Deus Criador, representado, na terra, pelo Papa, investido na autoridade do Senhor Jesus Cristo.
Valendo-se desse deturpado jusnaturalismo, segundo o qual o Deus Criador era o legítimo proprietário de todas as terras do nosso planeta, o Papa editou, em 06 de janeiro de 1454, a Bula Romanus Pontifex, onde certificou a divina doação de terras da costa atlântica da África ao reino de Portugal.
A Igreja tomou tais deliberações por serem “agradáveis à Majestade Divina”, proibindo a todos qualquer infringência ao documento, quando declarou, constituiu, concedeu, doou, apropriou, decretou, obsecrou, exortou, prestou injunção, inibiu e mandou acerca da legitimação da Coroa portuguesa sobre as terras descobertas. Além disso, ameaçou a Igreja, a qualquer infrator, que incorresse em indignação de Deus Onipotente e dos bem-aventurados apóstolos, São Pedro e São Paulo, pois incorreria na “cólera de Deus Todo-poderoso”.
Na esteira deste entendimento, seguiram-se outros documentos de substância análoga a Inter Coetera e o Tratado de Tordesilhas. Esses documentos implicam histórica e juridicamente em todo o desenvolvimento da estrutura social e política da América Latina, conforme ensina o insigne Cid Teixeira[3].
Como afirma Cid Teixeira, o rei era dono das terras daqui por força de conceitos jurídicos sobreviventes da Idade Média, quando não havia laicidade, nem separação entre os poderes temporal e atemporal.
A Bula Inter Coetera, de 13 de maio de 1456, confirma os termos das precedentes, e concede à Ordem de Cristo todo o poder, domínio e jurisdição sobre a costa africana, antes entregue à jurisdição da Coroa.
Com o Tratado de Tordesilhas, de 07 de junho de 1494, Portugal ganharia o direito sobre as terras do ainda desconhecido Brasil, para que se promovesse a salvação das almas existentes no novo mundo.
O Tratado de Tordesilhas, ao demarcar a posse de Portugal e da Espanha, fixou o prazo de 10 meses para a sua delimitação exata, o que foi alterado sucessivas vezes até encerrarem-se as discussões em decorrência da união das Coroas em 1578. Depois, outras discussões surgiram até a proclamação da República em 1822, quando as questões de limite passaram para o novo reino formado.
De qualquer forma, contanto se desconsidere qualquer soberania dos povos indígenas que aqui viviam, a Baía de Todos os Santos esteve desde o primeiro momento dentro da jurisdição portuguesa.
3.2 O SISTEMA DE CAPITANIAS HEREDITÁRIAS E AS DOAÇÕES POR FORAIS
Com fulcro na legitimação papal pelas posses de terra à família real portuguesa, em 1532, criou-se o sistema de capitanias hereditárias, regido pelo espírito medievalista, nas relações de propriedade da terra, cujas transferências eram dadas aos donatários. Descendente direto da Inter Coetera e do Tratado de Tordesilhas eram os forais, atos pelos quais se que transferiam às propriedades de terras. Através de forais, o rei investia de poderes o Capitão-Mor, ou o donatário, que adquiria as terras mediante doação, havendo, portanto, a transferência de propriedade.
Expedido por Dom João, rei de Portugal, transferindo-se o domínio da terra a Francisco Pereira Coutinho, da área de 50 léguas de terra da costa do Brasil, compreendida da ponta da Baía de Todos os Santos (Barra) até a ponta do rio São Francisco, foi o Foral de Francisco Pereira Coutinho, de 26 de agosto de 1534[4]. O rei transfere o domínio da terra ao donatário outorgando-lhe todos os direitos inerentes à propriedade, resguardando-se, porém, quanto aos direitos de perceber pagamentos de tributos. Cuidava-se do quinto, relativo à produção de tudo o que se extraísse da terra. Deste modo, Dom João estabeleceu algumas condições: que as terras fossem repartidas em sesmarias a pessoas idôneas, isto é, cristãos, pelo que estariam livres de foro.
Da ponta da Barra, seguia a orla da Baía de Todos os Santos que já pertencia a Diogo Álvares, o Caramuru, certamente desde 1510, o que foi legalizado, através de foral, posteriormente, em 20 de dezembro de 1936.
Destas doações em sesmarias, outorgadas através de forais “muitas das áreas hoje integrantes das zonas mais valorizadas do município passam a ter vinculação direta de cadeia sucessória estabelecida” (TEIXEIRA, I-33).
3.3 A NATUREZA JURÍDICA DA DOAÇÃO EM SESMARIA SEM VINCULAÇÃO DE FORO ALGUM
As terras doadas em sesmaria constituíam domínio pleno, irrevogável, perpetuo e hereditário do donatário; somente pagavam o dízimo de Deus, que não era foro de enfiteuse, por não haver relação de propriedade[5]. Cuidava-se de doação “sem raiz econômica da enfiteuse”. No ato de outorga das capitanias hereditárias, tinha o donatário de sesmar o território em benefício de cristãos, livremente de foro, mantendo-se somente o dízimo.
Sesmaria era a extensão de terra dada em propriedade delimitada, para repartir. Sesmaria, do latim baixo, sesmo, sesmar, partir em seis. As sesmarias foram regulamentadas pelas Ordenações aplicadas em todo o Reino de Portugal. As Ordenações Afonsinas (v. livro 4, título 81) vigeram de 1500 a 1514. As Ordenações Manuelinas (v. livro 4, título 67) vigeram de 1514 a 1603. As Ordenações Filipinas (v. livro 4, título 43) vigeram de 1603 a 1916, ressaltando-se que alguns dispositivos deixaram de ter vigência quando da proclamação da independência, em 1822. As três Ordenações estabeleciam o foro das terras doadas em sesmaria em benefício da Coroa portuguesa.
A despeito da previsão ordenatória de constituição de foro diante de terras doadas em sesmaria, os forais, normas individuais, diziam o oposto quanto aos donatários do sistema de capitanias hereditárias, porque o objetivo era o povoamento cristão nas terras descobertas, terras estas que ninguém desejava desbravar sem um bom motivo, havendo, inclusive, donatários que sequer pisaram em solo brasileiro.
3.4 A CENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO BRASIL PELO GOVERNADOR GERAL TOMÉ DE SOUZA
O desgosto dos donatários pela gestão e povoamento das terras distantes fez com que a colonização estivesse ameaçada por outros interesses estrangeiros, o que demandou nova medida na gestão da coisa pública no Brasil. Assim, quase trinta anos depois da criação do sistema de capitanias hereditárias “se buscou uma solução centralizadora para a administração do Brasil, com a criação do governo federal”[6].
Designado o primeiro Governador Geral do Brasil, em 29 de março de 1549, Tomé de Souza chegou à Salvador com sua esquadra. Após os festejos e honrarias da sua chegada, no dia 31 de março 1549, “desembarcaram os portugueses em ordem de combate, para dar aos índios clara ideia de força que representava”[7]. No primeiro mês, ocupou-se Tomé de Souza de estabelecer a paz com o gentio da terra, em abrir roças, em reparar a cerca da já antiga povoação do Pereira e percorrer as redondezas a procura de locais mais apropriados para a povoação. Perceba-se que a cerca existente, quando da chegada de Tomé de Souza, indica a delimitação da propriedade do Pereira Coutinho.
Em maio, a Igreja já pregava legítima a nova administração da novel cidade que surgia com a população de 1000 (hum mil) pessoas (AZEVEDO, p. 106), cuja concentração da população urbana situava-se na parte baixa e na parte alta da cidade, o que perdurou até o início do século XIX (TEIXEIRA, p. I-30). A chamada Vila Velha consistia numa espécie de subúrbio ligada à cidade. Era a residência de Caramuru (AZEVEDO, p. 107). Esse subúrbio equivale hoje à região do Vale do Canela.
4 DOS ATOS ILEGAIS DE TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE DE TERRAS POR TOMÉ DE SOUZA
Em 21 de maio de 1552, o Governador Geral, Tomé de Souza lançou ilegalmente concessões de extensões de terras que não pertenciam nem à Coroa portuguesa, nem ao governador-geral.
Logo concedeu à Câmara uma extensão de terra, dada em sesmaria, situada depois da barra do Rio Jaguaribe até Itapoã (SAMPAIO, p.213). Da mesma época é “a sesmaria de uma légua (…) ao longo da costa (…) com terras que alcançavam a barra do Rio Jaguaribe” (SAMPAIO, p. 213).
Visando à superação da insignificante e muito incerta receita do município, as portarias e resoluções da Câmara concediam o chão “pretensamente devoluto”, ora com ônus de foro perpétuo, ora sem foro nem tributo algum, para sempre, salvo o “dízimo de Deus” aplicado sobre o que o chão produzisse[8]. Estas últimas concessões se aplicavam sobre os terrenos mais distantes do que hoje chamamos Centro Histórico.
Dado o terreno por Carta de Sesmaria, fazia-se registro em Livro Especial, junto ao Tabelião da cidade, com as formalidades todas da lei, quando, por vezes, constituíam, ilegalmente, enfiteuse sobre o chão. Diz-se ilegalmente porque os forais do Rei de Portugal já haviam transferido a propriedade e, como se sabe, não se pode dispor sobre propriedade alheia.
Além disso, o Regimento de 17 de dezembro de 1548 mandava dar em Sesmaria as terras, sem foro algum e que somente pagassem o dízimo à Ordem de Christo (SAMPAIO, p.212). Isto é, se há hierarquia de normas, não se poderia, em ato público, desconsiderar a norma hierarquicamente superior.
4.1 ADENDO: A DIVISÃO ADMINISTRATIVA PELO SISTEMA DE FREGUESIAS
Logo em seguida, administrativamente, a cidade passou a dividir-se pelo sistema de freguesias. Freguesia significa o conjunto de paroquianos povoação sob o ponto de vista eclesiástico, clientela. É um espaço material limitado divisão administrativa e religiosa da cidade, onde estavam localizados os habitantes[9].
Em meados do século XIX a cidade do Salvador contava apenas com 10 freguesias urbanas: Nossa Senhora da Conceição da Praia, Santíssimo Sacramento do Pilar, Nossa Senhora da Vitória, Nossa Senhora da Penha, Sé ou São Salvador (célula mater da primitiva Salvador, administração), São Pedro Velho, Santo Antônio Além do Carmo, Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, Santana do Sacramento, Nossa Senhora de Brotas. A freguesia da Sé, ou São Salvador, foi criada por Dom Pero Fernandes Sardinha, em 1552 (NASCIMENTO, p. 35). Nalgumas freguesias, continham-se capelas filiadas.
A despeito do poder de deliberar acerca das freguesias e seus limites que tinha as Assembleias Legislativas Provinciais, o §3º, do art. 10, do Ato Adicional, mandava observar o objeto eclesiástico referente à freguesia, isto é, o concurso do prelado diocesano, na forma dos cânones. Assim, para qualquer alteração nos limites das freguesias, era ouvida a mais alta autoridade da Igreja, que, por sua vez, baseava-se em informações dos vigários. E estes vigários eram sempre contra qualquer alteração nos limites de suas paróquias. Daí ser tão combatida a ideia de aumentar-se a menor freguesia da cidade, a da Rua do Passo, quando começaram a preparar o projeto de lei em 1861 (NASCIMENTO, p. 29).
Ainda neste período, pode ser analisada a extensão de Salvador, que não passava de uma cidade de pequena e modesta urbanização: eram 176 ruas em 1855, e 210 ruas em 1863, nas 10 freguesias (NASCIMENTO, p. 30).
Neste sistema de administração, instituíram o Imposto de Décimas cujo lançamento era quadrienal. Com a finalidade de cobrança do referido tributo, criou-se uma comissão, pelo art. 3º, da Lei nº. 344 e pelas Instruções, de 4 de janeiro de 1850, para demarcação da cidade. O lançamento da décima, portanto, oferecia o panorama da delimitação urbana da cidade.
As zonas afastadas, mas pertencentes às dez freguesias de Salvador, eram muito pouco habitadas e, sem dúvida alguma, parcialmente rurais. Nelas vamos encontrar roças, lotes de terras, fazendas ou mesmo engenhos (NASCIMENTO, p. 39). Como incentivo à urbanização, sobre estas terras nunca se constituíram legalmente, respeitada a ordem hereditária, enfiteuses. Assim, incentivavam-se a habitação e a expansão da cidade.
5 A ATUAL PRETENSÃO MUNICIPAL FUNDADA EM DOCUMENTOS ANTIGOS E SUA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
Somente com a Escritura de 16 de janeiro de 1917 é que se estabelece o domínio das terras da Prefeitura Municipal de Salvador, referindo a sua origem à doação de Tomé de Souza, em 1552, bem como às posteriores transferências ao Mosteiro de São Bento[10], em 23 de dezembro de 1858. Também constituiriam patrimônio do município as terras transferidas pela Companhia do Queimado[11], por escritura pública lavrada em 30 de setembro de 1905, em que se transferiu também as responsabilidades.
Ora, senhores, o objeto fundante da pretensa legitimidade de terras pertencentes ao município de Salvador-BA está nas doações lançadas por Tomé de Souza, que somente era gestor da coisa pública e não proprietário de tais terras, de modo que toda a extensão de terra doada pelo Rei a Francisco Pereira Coutinho não era passível de apropriação e doação pelo Tomé de Souza.
Perquirir a legitimidade através da história leva imediatamente à ilegalidade das doações lançadas por Tomé de Souza, podendo-se, neste rumo, agravar-se ainda mais a situação jurídica quanto a legitimidade da Coroa portuguesa sobre as terras indígenas, de modo que, somente os índios poderiam, em princípio, dispor da sua terra, inclusive constituindo enfiteuse, se assim o fosse. Deste modo, a atual pretensão municipal é inviável desde a sua origem.
Considerando-se, entretanto, ato jurídico perfeito e, portanto, legítima a posse de todas as terras por uma família que as doava aos seus pares, consagrando um sistema de oligarquia e repressão ao ser humano que habitava a terra, teremos então que considerar a legalidade, conforme o ordenamento jurídico português então vigente, para consagrar legítima a propriedade, livre de ônus, recebida pelos donatários. Assim, as terras contidas nos limites descritos nos forais pertenciam a tais famílias, que livremente dispuseram. Ou então haveria usucapião em tais terras particulares.
Demais disso, Tomé de Souza veio para o Brasil como administrador da Coroa portuguesa, isto é, como gestor da coisa pública. Somente por uma confusão entre coisa pública e privada é que Tomé de Souza procedeu doações. Entretanto, do mesmo modo que, para chegarmos até aqui, consideramos a legitimidade e o ato jurídico perfeito, não poderia Tomé de Souza, nem mesmo o Rei de Portugal, dispor sobre coisa alheia, até porque a propriedade privada já estava consagrada pelo ordenamento jurídico português e também pelas encíclicas papais, pelo menos desde a transferência de terras à família real portuguesa.
6 DA IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA SIMULTÂNEA DE FORO E IPTU SOBRE O MESMO IMÓVEL
Superando-se a relação histórico-jurídica, permanecem problemas a serem resolvidos, ainda que se considerasse devido o foro:
a) Pela enfiteuse, a propriedade permaneceria com o município, e o foreiro teria apenas o domínio útil.
Recorde-se que o fato gerador do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) é a propriedade (art. 32, do Código Tributário Nacional). Sendo certo que, somente por ficção legal, o domínio útil inclui-se nesse conceito de fato gerador.
O contribuinte do IPTU é, em primeiro lugar, o proprietário do imóvel (art. 34, do Código Tributário Nacional). Somente depois é que se estende a responsabilidade tributária ao titular do domínio útil e ao possuidor a qualquer título, mantendo-se, porém, a responsabilidade solidária de todos, sem a possibilidade de alegação de benefício de ordem (art. 124, do CTN).
Ora, se o terreno pertence ao município, este seria imune (art. 150, nº. VI, a, da Constituição; ar. 9º, IV, do CTN) à tributação e, neste caso, haveria confusão entre a qualidade de credor e devedor, extinguindo-se a obrigação (art. 381, do Código Civil), pelo menos quanto à obrigação concorrente em função da responsabilidade solidária (art. 383, do CC c/c art. 124, do CTN).
b) O foro decorre do instituto jurídico enfiteuse, um direito das coisas, de natureza contratual de direitos reais. A sua natureza não é tributária.
Neste ponto, o art. 123, do CTN, é claro ao dizer que convenções particulares, relativas à responsabilidade tributária, não podem ser opostas à Fazenda Pública, com o fim de exclusão de responsabilidade. Assim, a natureza contratual da enfiteuse não permite a exclusão de responsabilidade do contribuinte, no caso, o próprio município proprietário das terras.
Vê-se que não se pode constituir crédito tributário sobre terreno de propriedade do município. Isto significa que, em terrenos foreiros, não incide IPTU sobre terreno. E se não incide tributo sobre o terreno, não incidirá sobre as acessões decorrentes de construção (art. 1.248, nº V, do CC) incorporadas ao imóvel (art. 79 c/c art. 1.254, do CC).
7 DA JUSTA E PRÉVIA INDENIZAÇÃO PELAS BENFEITORIAS EM CASO DE REVERSÃO DO TERRENO FOREIRO AO MUNICÍPIO
Com o Foro 2014, o município pretende aplicar pena de comisso a quem deixar de pagar, por três anos, o foro, sem indenização.
Ocorre que o aforamento de terreno é dado com a finalidade de desenvolvimento do domínio útil pelo enfiteuta. Assim, o enfiteuta pode – e deve – edificar sobre o terreno foreiro, o que se considera praticado de boa-fé. Deste modo, é patente o direito de perceber indenização justa pelas benfeitorias necessárias aquele que edificou (art. 1.254 c/c art. 1.257, paragrafo único, do CC).
A pena de comisso excluiria apenas a obrigação quanto à indenização quanto ao terreno, jamais quanto às benfeitorias (art. 1.219; art. 964, nº. III, do CC). O insigne Prof. Dr. Paulo Nader[12] confirma esta unânime interpretação quanto ao dever de indenizar pelas benfeitorias realizadas no curso da enfiteuse, diante de aplicação da pena de comisso.
No caso de enfiteuse constituída por ente público, este se submete também às regras de direito administrativo, de modo que àquela pretensão do município converter-se-ia em desapropriação indireta ou apossamento administrativo quanto às benfeitorias, o que é terminantemente vedado em nosso ordenamento jurídico. A desapropriação somente pode ocorrer nos casos e na forma prevista em lei. No caso, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.
Por fim, convém recordar a lição do saudoso Caio Mário da Silva Pereira[13] que já noticiava as manifestações contrárias à enfiteuse, especialmente em razão de conservar privilégios e benefícios de poucos. Em França, a enfiteuse tem sido fortemente combatida desde 1789. No Brasil, tentaram extingui-la em várias oportunidades (em 1950, em 1965, em 1969), o que não logrou êxito em face do interesse da Igreja, grande detentora de terras cuja enfiteuse encontra-se instituída, tendo se valido do movimento de opinião dirigido pela Sociedade de Defesa da Família, Tradição e Propriedade, sociedade esta perene que costuma aparecer em determinados momentos históricos da nossa história, e então deveria aparecer na defesa da propriedade dos soteropolitanos agora, em face da ânsia de arrecadação da autal gestão municipal de Salvador.
8 CONCLUSÃO
Está claro que a atual gestão municipal tem se valido da complexidade jurídica de temas diversos para ampliar a sua arrecadação, descurando dos reais interesses sociais e individuais, reafirmando o que tem sido regra na história da humanidade: a ofensa do poder público em face das liberdades públicas e fundamentais de cada ser humano.
Assim, da fundamentação exposta, é possível concluir que a cobrança de foro pelo município de Salvador atenta contra os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos seus cidadãos, sendo necessária a providência da anulação da enfiteuse lançada pelo Município de Salvador sobre os terrenos situados na extensão de terra que constituíram propriedade de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, equivalente à orla da baía de todos os santos, e de Francisco Pereira Coutinho, equivalente à orla da Barra, no caso, até o limite do município de Salvador-BA, para que seja reconhecido o domínio pleno e completo do adquirente sobre o seu imóvel, respeitando a origem da propriedade privada.
Combate-se aqui a ilegalidade e a inconstitucionalidade da instituição, considerando-se, contudo, a possibilidade de haver entendimento noutro sentido, quando seria o caso de declarar-se a imunidade tributária do imóvel relativa ao IPTU ou da confusão entre credor e devedor para fins de responsabilidade tributária, além de se declarar a obrigação do município ao pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, quanto às benfeitorias realizadas sobre o terreno pelo contribuinte, caso aplique-se a pena de comisso.
Ainda assim, o Município só poderia cobrar foro sobre o terreno, aplicando-se, no caso de condomínios edilícios, cobrança única ao condomínio e não aos proprietários individuais, repartindo-se a despesa, conforme fração ideal de cada condômino.
[1] Com base na legislação municipal (Lei 7.186, de 27 de dezembro de 2006, Lei 8.421, de 15 de julho de 2013, Decreto 24.419, de 05 de novembro de 2013), os contribuintes tiveram prazo de 30 (trinta) dias para oferecimento de impugnação. No caso da notificação apresentada via postal, o art. 5º, nº. I, do Decreto 24.419, o prazo contou-se a partir de 15 dias da expedição da notificação, por ficção legal.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais, v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2010, 20ª edição, p.216-217.
[3] TEIXEIRA, Cid; TEIXEIRA, Cydelmo. Gênese da Propriedade de Terra no Brasil. In: Grande Salvador: posse e uso da terra. Salvador, 1978, p. I-17.
[4] TEIXEIRA, Cid. Grande Salvador: posse e uso da terra. Salvador, 1978, p. I-30.
[5] CALMON, Pedro. Uma referência feudal mercantilista – a capitania da Bahia. In: Grande Salvador: posse e uso da terra. Salvador, 1978, p. II-3.
[6] TEIXEIRA, Cid. As grandes doações do primeiro governador – terras do Rio Vermelho ao Rio Joanes: Conde da Castanheira, Garcia Dávila e o Senado da Câmara. In: Grande Salvador: posse e uso da terra. Salvador, 1978, p.II-2.
[7] AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade do Salvador. In: Evolução Histórica da cidade do Salvador. Salvador: Tipografia Beneditina LTDA, 1949, V. III, p. 105.
[8] SAMPAIO, Teodoro. História da Fundação da Cidade do Salvador: tipografia beneditina limitada, 1949, p. 212.
[9] NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade de Salvador: aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador, FCEBA/EGBA, 1986.
[10] Ressalte-se que grande parte das terras hoje pertencentes ao Mosteiro de São Bento foram adquiridas por testamento da morte de Catarina Paraguassú, esposa herdeira do Caramuru, segundo se verifica do Livro de Tombo da Prefeitura Municipal de Salvador, p.XXV). Dada a capacidade do Mosteiro, o município não se lançou sua sede arrecadatória sobre ele, não se aventurou em prejudicá-lo, mas somente aos proprietários menores.
[11] Esta Companhia do Queimado era a empresa pública responsável pela gestão hidrográfica da cidade como tentativa de solução dos problemas ecológicos e de abastecimento da cidade. O problema da falta de higiene, com a poluição das águas, foi o que levou, em 1785, ao infrutífero requerimento de providência de introdução de rios alheios aos limites do município para abundar a cidade (AZEVEDO, p. 338), dentre os quais se incluía o Rio Jaguaribe. Somente com a Lei Provincial nº. 451, de 1852, autorizaram-se obras para o funcionamento de 21 chafarizes dos principais pontos da cidade (AZEVEDO, p. 342), sem vinculação nenhuma a utilização de rios distantes.
[12] NADER, Paulo. Curso de direito civil – direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
[13] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais, v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2010, 20ª edição, p.216-217.