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Manifesto abolicionista penal.

Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal

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01/11/2002 às 00:00
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3. Sistema Penal e Marxismo

3.1 A identificação do marco teórico marxista

É de difícil identificação o marco teórico marxista, de contribuição teórica para a deslegitimação do sistema penal. No entanto, com a intenção de limitação de análise do sentido ideológico do marxismo, objetiva-se traçar algumas linhas correspondentes entre: marxismo e sistema penal.

Existe no Direito Penal uma intenção, seja por parte do poder estatal, seja por parte de uma significativa parcela representativa dos pensadores penalistas, que é expurgar das ciências penais quaisquer fragmentos ideológicos, como se isso fosse possível. A intenção, aqui, é utilizar o sentido ideológico do marxismo. Começando com a seguinte afirmação: as idéias dominantes no direito penal sempre foram as idéias da classe dominante.

Assim como "o paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de proteção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno." [28] De forma idêntica ocorre com o sistema penal, uma das suas formas de sobrevivência – além daquelas apontadas anteriormente – é a criação contínua de tipos penais.

O marxismo consegue constatar de forma inquestionável, o processo predatório que a sociedade industrial européia realizava de maneira incisiva com um total desrespeito à vida e a dignidade humana. O sistema penal – principalmente os latino-americanos – com a sua premissa e prática de máxima intervenção penal, com as suas agências executivas e os seus modelos de estabelecimentos penitenciários, têm praticado ao longo da história da humanidade um genocídio inquestionável.

O sistema penal como instrumento de controle social, como instrumento de dominação de classe que se utiliza do Estado para a realização dos seus objetivos, reproduz máximas marxistas com um resultado real impossível de não se reconhecer. Daí ALAIN TOURENE lecionar que "Marx falava em relações sociais de dominação e exploração, nós enxergamos, mais do que isso, exclusão, marginalização, desenraizamento." [29]

Daí reproduzirmos (de forma adaptada ao tema) algumas máximas marxistas: O movimento abolicionista é o movimento autônomo da imensa maioria no interesse da imensa maioria; O sistema penal é como um feiticeiro que não é mais capaz de controlar os poderes do outro mundo que ele conjurou; etc.

Há de ser reconhecido – se já não foi – que Marx "renovou a história porque conhecia bem economia, revolucionou a política porque conhecia a história como poucos, reinterpretou criticamente a economia graças aos seus conhecimentos de política e de história etc." [30] Tal constatação necessariamente tem que ser transportada para o Direito, caso deseje-se uma abolição do sistema de justiça criminal. Para tal propósito faz-se necessário a construção de um grupo de argumentos metodológicos de deslegitimação do sistema penal, pautado na antropologia, na criminologia, na psicologia, na psiquiatria, etc.

Ë de brotar uma enorme tristeza, por constatar-se que "Marx não tenha analisado em profundidade o sistema penal, ao qual foram dedicados escassos e dispersos parágrafos, sujeitos a interpretações muito controvertidas, considerava, obviamente, que tanto seria necessário deslegitimar todo o direito, especialmente o direito penal, relegando-o à categoria de ‘superestrutura ideológica’." [31]

Com o inevitável desaparecimento de Marx, começam a surgir os denominados "marxismos", com as mais diversas linhas de pensamentos deslegitimantes e relegitimantes, relacionadas com o sistema penal. "A mais usual das versões relegitimantes na variável positivista e idealista, aceita uma concepção ontológica do delito e etiológica da criminalidade atribuída, exclusivamente, à pobreza, a miséria, etc. Tais concepções implicam a construção de um círculo fechado, pois se supõe que, suprimidas a pobreza e outras ‘causas’ semelhantes, o delito que subsistir derivará de livre decisão do autor, relegitimando-se, assim, um direito penal retributivo." [32]

3.2 PASUKANIS, QUINNEY e PAVARINI – por ZAFFARONI

A idéia do marxismo no ambiente político faz surgir as mais diferentes interpretações das idéias do pensador alemão do século XIX, emergindo daí as dificuldades de identificação. No entanto, procura-se aqui, o levantamento de teorias pós-marxistas de deslegitimação e relegitimação do Direito, mediante comentários do mestre penalista ZAFFARONI.

A visão inegável em primeiro plano – em face da revolução – é do surgimento de teorias deslegitimantes dos discursos jurídicos e, um dos pensadores mais importantes nesse campo é EUGENIJ PASUKANIS. Leciona ZAFFARONI que para PASUKANIS "o direito era uma mera forma jurídica, produto exclusivo da sociedade capitalista, gerado pelas relações de troca que lhe são próprias. Como o advento do socialismo não extinguiria automaticamente as relações de troca, que continuariam a existir como vestígio da sociedade burguesa, também não se extinguiria a ‘forma jurídica’, que desapareceria somente em uma etapa mais avançada, quando essas relações fossem superadas." [33]

A formulação da crítica do direito – que para alguns se trata de uma visão romântica de Marx – que PASUKANIS procura construir, com uma fé no desaparecimento do direito, quer significar o surgimento de uma sociedade não mais fundada na forma de valor-de-troca. Em contra-posição a tese de PASUKANIS, surge o pensamento relegitimante do direito de STUCKA. Vai dizer ZAFARONI que STUCKA "postulando uma relegitimação do direito mediante a necessidade de um revolucionário, ao qual não poderia renunciar o poder soviético sem privar o proletariado no poder de um inestimável e insubstituível instrumento de luta." [34]

A polêmica discussão envolvendo ambos os pensamentos revela uma relação de abandono por um, e apego por outro, de exercício do poder. Um lado pensando e acreditando numa convivência civil coletiva de evolução continua e, outro, casado com a crença de um necessário exercício de poder através de suas agências executivas. Informa ZAFFARONI que "não obstante, a polêmica conservava certo vôo teórico que se perdeu completamente com a intervenção direta do poder, através de VYSINSKIJ (o pontífice máximo do aparelho jurídico stalinista) que, em nível de deleção, qualificou a tese de PASUKANIS de ‘antimarxista’ (...)." [35]

A teoria de deslegitimação do sistema penal de RICHARD QUINNEY, parte de uma análise do delito direcionada ao sistema penal, propõe em primeiro lugar uma análise do fenômeno do delito, para só depois se debruçar sobre o significado e a função do sistema penal. Para QUINNEY o delito não significa um fenômeno decisivo no sistema penal, mas sim, uma espécie de desdobramento da história e uma forma de exteriorização da atuação da sociedade capitalista.

ZAFFARONI faz o seguinte estudo sobre a teoria de QUINNEY, "observa a existência de uma política econômica do direito penal com custos astronômicos que recaem sobre a população excedente (...) os capítulos dedicados por QUINNEY ao custo do delito, à política econômica do direito penal e ao enorme número de pessoas institucionalizadas nos Estados Unidos são altamente deslegitimantes, embora não apresentem inovações espetaculares no plano teórico e tampouco expliquem claramente como se operaria essa abolição do sistema penal." [36]

A teoria da deslegitimação do sistema penal, formulada por MASSIMO PAVARINI [37] propõe, de forma direta, a identificação de uma má consciência do bom criminólogo. Em outras palavras, quer significar, uma mensagem direta no sentido de confrontar-se com o sistema através de um estudo da criminologia apontando os caminhos para o fim do sistema, ou fingir que a situação é sustentável, legal e legítima, e, continuar vivendo.

Leciona ZAFFARON que, "PAVARINI não se refere a esta atitude apenas em relação à criminologia do conflito e da reação social não marxista, mas também em relação à própria criminologia marxista, afirmando que esta última não apenas supera as anteriores vinculações dos fenômenos que a primeira descreve como conflitos entre capital e trabalho, como também ‘permite tornar óbvio o ceticismo dos criminólogos radicais com um ato de fé numa cada vez mais improvável palingenesia social’. Mas quando os caminhos, nesta sociedade, se fecharem ao ‘bom criminólogo’, não lhe restará outro recurso senão continuar fazendo criminologia, ainda que com ‘má consciência’." [38]

Enfim, nas palavras do pensador portenho a lição de PAVARINI é no sentido de demonstrar que existe "uma disjuntiva: carregar sua má consciência ou enfrentar politicamente o poder, usando os instrumentos de uma criminologia alternativa, embora considere que não exista muito espaço para esta segunda atitude." [39]

3.3 O "minimalismo" penal de ALESSANDRO BARATTA [40]

Falar dos estudos de BARATTA é sempre motivo de enorme alegria e satisfação, pois, é tomar conhecimento daquelas coisas divinas que acontecem no universo jurídico. No entanto, no atual momento, recai sobre este universo jurídico uma tempestade de enorme tristeza pelo seu falecimento no dia 25.05.2002. BARATTA, italiano de nascimento, professor na Universidade de Saarland, a partir dos anos setenta tornou-se conhecido com os seus estudos críticos do Direito Penal e da Criminologia.

O pensador italiano, para sustentar a sua teoria de deslegitimação do sistema penal e da inegável crise do discurso jurídico-penal, em estudos de criminologia crítica, procura enfatiza as diversas correntes existentes: as teorias psicanalíticas, que negam o princípio da legitimidade; as teorias estrutural-funcionalistas, que negam o princípio do bem e do mal; as teorias das subculturas criminais, que negam o princípio da culpabilidade; as teorias da rotulação, que negam o princípio da prevenção alemã da rotulação, que nega o princípio da igualdade; e a ‘sociologia do conflito’, que nega os princípios do interesse social e do ‘direito natural’.

Os estudos de BARATTA são de um aprofundamento criminológico pouco alcançado por outros autores contemporâneos, nas palavras de ZAFFARONI a sua razão é inquestionável quando assinala "não ter sido a criminologia ‘radical’ (denominação normalmente reservada para a criminologia crítica marxista) a responsável pela crise do discurso jurídico-penal, mas que, na verdade, essa crise foi produzida pela própria criminologia ‘liberal’ (conceito reservado para a criminologia da reação social de vertente interacionista e fenomenológica)." [41]

A teoria de BARATTA procura dar sustentação à "adoção do ponto de vista das ‘classes subalternas’ como garantia de uma práxis teórica e política alternativa, afirmando que, enquanto as classes hegemônicas pretendem conter o desvio dentro de limites não muito perturbadores, as classes subalternas estão empenhadas numa luta radical contra os comportamentos socialmente negativos (por comportamentos negativos entendem-se a criminalidade econômica, a poluição, a criminalidade do poder, a máfia, etc.). Para tanto, BARATTA reclama uma ciência que não se limite à descrição da mera desigualdade jurídica no campo penal, mas que compreenda a função real do sistema penal na sociedade tardo-capitalista, como reprodutor das relações sociais de desigualdade, e que explicite que estas relações não se baseiam na distribuição desigual de bens e valores, mas nas próprias relações de produção." [42]

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BARATTA, em estudos dirigidos para uma construção teórica dos princípios de direito penal mínimo para uma teoria dos direitos humanos como objetos e limites da dogmática penal, num primeiro momento, realiza a seguinte formulação: princípios intra-sistemáticos de mínima intervenção penal, que são divididos em a) princípios de limitação formal; b) princípios de limitação funcional; e, c) princípios da limitação pessoal ou da limitação da responsabilidade penal. Num segundo, constrói os chamados princípios extra-sistemáticos, divididos em: a) princípios extra-sistemáticos de descriminalização; e, b) princípios metodológicos da construção alternativa dos conflitos e problemas sociais.


4. Do Plano Político Criminal

4.1 Intervenção Penal Mínima e Direito Penal Mínimo

Uma alternativa sempre preconizada diante da constatação da deslegitimação do sistema penal tem sido a denominada intervenção penal mínima, também conhecida como direito penal mínimo. Partindo-se de uma obrigação constitucional de descriminalizar, evoluindo-se para uma utilização da pena privativa de liberdade cada vez menor. Colocando como proposta inegociável à utilização cada vez maior dos substitutivos – mais conhecido como penas alternativas – penais.

Uma intervenção penal mínima como plano ou programa de política criminal afasta-se totalmente dos apontamentos aqui apregoados, só podendo ser admitida como etapa de evolução do projeto abolicionista penal. A intervenção penal mínima, assim como o minimalismo penal, ou o garantismo fundamental ferrajoliano, só podem ser admitidos como programa transitório e de caráter programático.

4.2 O abolicionismo penal – por ZAFFARONI

Ao expressar a intenção de dissertar sobre o abolicionismo penal, tem-se que ter em mente que vai estar a adentrar numa seara que se apresenta em forma de múltipla escolha. O abolicionismo penal não é único, existem diferentes e diversas versões abolicionistas penais, sejam os movimentos pela a abolição da pena de prisão, ou da pena de morte, etc. No entanto, refere-se, aqui, ao abolicionismo do sistema de justiça criminal.

Porém, mesmo à luz do abolicionismo do sistema penal, verifica-se a existência das mais diversas – que será objeto de tópico especifico – variantes abolicionistas. Seja do chamado abolicionismo imediato ao abolicionismo mediato. Daí ZAFFARONI fornecer seu magistério acerca desse abolicionismo.

A lição do representante da escola portenha é que "na verdade, existem diferentes abolicionismos e, sem dúvida, é até possível falar-se de um abolicionismo anárquico, de longa data, resultado, por mais paradoxal que pareça, de uma formidável confiança jusnaturalista; o racionalismo, o positivismo, o cristianismo, etc., cederam lugar aos ‘jusnaturalismos’ que, levados ao extremo, acabam postulados a dispensabilidade do direito positivo na crença de que as leis ‘naturais’, liberadas do poder estatal, seriam suplementos para regular e resolver as relações e conflitos sociais. Assim, BALDWIN deu lugar a um anarquismo liberal, KROPOTKIN a um anarquismo positivista, TOSTOI a uma versão cristã, etc." No entanto, ZAFFARONI utiliza-se dos escritos acima para chegar ao abolicionismo em estudo, diz ele "o abolicionismo aqui referido não é este e, sim, o abolicionismo radical do sistema penal, ou seja, sua radical substituição por outras instâncias de solução dos conflitos, que surge nas duas últimas décadas como resultado da crítica sociológica ao sistema penal." [43]

Para ZAFFARONI, "o abolicionismo atual constitui um movimento que, nos últimos anos, produziu uma literatura considerável sobretudo entre os autores do norte da Europa – principalmente escandinavos e holandeses –, seus mais notórios representantes. Uma das características mais comuns entre seus líderes é a de haverem levado adiante movimentos ou organismos com participação de técnicos, presos, liberados, familiares e simpatizantes, isto é, pessoas com alguma experiência prática no campo da marginalização penalizada." E, conclui "o abolicionismo representa a mais original e radical proposta político-criminal dos últimos anos, a ponto de ter seu mérito reconhecido até mesmo por seus mais severos críticos." [44]

4.3 O movimento e as variantes do abolicionismo penal

No movimento abolicionista penal não existe uma uniformidade na utilização dos métodos, ou das concepções filosóficas, ou ainda de outros instrumentos empregados para o alcance dos objetivos. Ou do objetivo fim que é a abolição do sistema penal. O que existe na prática é uma reunião de pensamentos filosóficos utilizados em particular por cada pensador, objetivando a mesma finalidade dentro de suas peculiaridades.

4.3.1 O abolicionismo de LOUK HULSMAN [45]

A concepção abolicionista de HULSMAN pode ser conceituada como fenomenológica. Pauta seu pensamento abolicionista no entendimento de que o sistema penal caracteriza-se como um problema em si mesmo, trata-se de um sistema de enorme inutilidade e incapacidade de resolução dos problemas para os quais se propõe solucionar. Ou seja, uma ineficácia total para resolver os conflitos existentes na convivência civil.

Diante de tal constatação, sustenta a abolição total do sistema penal, enumerando motivos fundamentais que ensejariam a abolição do sistema, motivos estes a saber: por tratar-se de um sistema que causa sofrimentos desnecessários, e mais ainda, numa distribuição socialmente injusta; acarreta diversos efeitos negativos sobre as pessoas recrutadas; e, apresenta uma ausência total de controle por parte de seu gestor.

HULSMAN sustenta uma abolição do sistema penal imediata. Sua proposta é afastar o Estado de todo e qualquer conflito, apontando a existência de instâncias intermediárias competentes para as resoluções dos conflitos entre as partes; propõe uma supressão das terminologias usadas no ambiente criminal, de forma a realizar uma eliminação dos termos crime e criminalidade, assim como do seu significado. No mérito, sua intenção não é a eliminação do crime – mesmo porque essa é uma missão impossível – mas sim, a sua reestruturação em forma de problemas sociais. A intenção última é a resolução dos conflitos buscada pelas partes num ambiente diferente do que vige até os dias atuais.

4.3.2 O abolicionismo de THOMAS MATHIESEN [46]

A concepção abolicionista de MATHIESEN é fundada no simples estudo esquemático do marxismo. Sem dúvida é o principal nome do abolicionismo penal, utiliza-se (por outros termos) dos argumentos usados pelo poder estatal para pregar a sua teoria de eliminação do sistema penal. Numa concepção marxista procura vincular o sistema penal à organização do sistema capitalista, é nítida a sua idéia de eliminação não apenas do sistema penal, mas também de todo e qualquer processo de repressão existente na sociedade.

MATHIESEN sustenta que não existe teoria, por mais perfeita que possa parecer, acabada. Sua principal argumentação é de um processo teórico sempre inacabado, o movimento abolicionista penal é uma teoria inacabada e em constante evolução, precisando, fundamentalmente, de vivência prática. E, que mesmo assim, sempre estará inacabada. O que quer significar, a sua concepção do abolicionismo penal não imóvel, estática, ou mesmo neutra.

A teoria abolicionista de MATHIESEN sustenta que o Estado é possuidor de uma capacidade extraordinária de sedução, detentor de uma capacidade de transmutação inigualável, exerce sua tática de sedução criando pólos ou posições de aceitação ou recusa, seria o estabelecimento do dentro e do fora, de maneira a controlar e manipular suas passagens de acordo com a sua política de dominação e controle.

Diante da sua teoria abolicionista fundada no marxismo, MATHIESEN cria elementos e condições que vão garantir o desenvolvimento do sistema proposto, que estão representados no seguinte: uma permanente situação de oposição e competição com o poder dominante;

4.3.3 O abolicionismo de NILS CHRISTIE [47]

Pode-se afirmar que a concepção abolicionista de CHRISTIE é fenomenológico-historicista. No entanto, ficando patente sua escolha pela história para construção e fundamentação do seu abolicionismo penal. Enxerga na verticalização do poder uma maneira destrutiva das relações coletivas entre os entes do ambiente social. Afirma não haver apenas perigos com essa verticalização corporativa, mas também danos, estes se apresentando de difícil reparação.

CHRISTIE vai fazer uma crítica veemente aos estudos de DURKHEIN [48] afirmando que sua produção doutrinária é impregnada de preconceito, chegando até mesmo apontar DURKHEIN como um homem branco que só enxerga a igualdade entre os brancos. Como se a humanidade fosse só de homens brancos civilizados. Por outro lado, questiona a afirmação de DURKHEIN de que os processos de modernização sofridos pela sociedade provocam uma inevitável progressão.

4.3.4 O abolicionismo de MICHEL FOUCAULT [49]

Há na doutrina um argumento unânime de que FOUCAULT não era um abolicionista, nem tão pouco seus estudos dão a entender uma via abolicionista. É verdade que em comparação com os autores aqui estudados não poderia ser considerado um abolicionista, mas, talvez nem mesmo FOUCAULT soubesse que era um abolicionista.

Mas, trata-se de um abolicionista de concepção estruturalista.

O abolicionismo penal foucaultiano é pautado numa consideração do sujeito cognoscente como um produto do poder. É bem verdade que não admitia a idéia de um sistema de poder, mas sim, uma reunião de micro-poderes. No entanto, sua idéia do sujeito cognoscente provoca uma relatividade secundária no estudo da antropologia.

Numa mensagem direta a doutrina abolicionista, FOUCAULT "por um lado, assinala, acertadamente, a forma pela qual o poder expropriou os conflitos no momento da formação dos estados nacionais e, por outro, nega o modelo de uma parte sobreposta ao litigante, como instância superior decisória, o que se evidencia em sua discussão com os maoístas, ao criticar o conceito de ‘justiça penal’." [50]

Para ZAFFARONI "embora FOUCAULT [51] não ofereça considerações táticas para avançar rumo ao abolicionismo, permite entrevê-las quando aconselha a ‘técnica do judoca’, ou seja, quando se refere à debilidade que sofre o poder ao utilizar-se de violências, que o deixa apoiado em um só pé. Deve ser observado que a utilização da força do adversário, em substituição ao emprego da própria violência, é um postulado básico de qualquer tese da ‘não-violência’." [52]

4.4 As dúvidas e as propostas abolicionistas

Sendo o abolicionismo penal uma idéia original e, ao mesmo tempo, a proposta mais radical de eliminação do sistema penal, é natural que sofresse as mais incisivas críticas, e estas começaram com FERRAJOLI e PAVARINI. O primeiro, levantando a possibilidade de perigo constante por via policial de um controle físico de conduta destruidor dos espaços sociais de liberdade. O segundo, questionando a capacidade do abolicionismo em ter resposta para as atuações terroristas.

No entanto tais objeções foram maximizadas por ZAFFARONI numa perspectiva de inevitabilidade. "As duas objeções podem ser categorizadas mais amplamente: o avanço tecnológico, ao criar meios físicos muito mais sofisticados que não deixam nenhum espaço de controle de conduta que possa ser invadido, põe, também, em mãos de grupos cada vez mais reduzidos de pessoas e, até, em mãos de indivíduos isolados, instrumentos com formidável poder destrutivo, ampliando a capacidade desses grupos e pessoas para destruir massivamente os bens jurídicos." [53]

Torna-se inevitável a ocorrências das possibilidades levantadas por FERRAJOLI e PAVARINI, no entanto, o mesmo avanço tecnológico (seja a energia nuclear, a engenharia genética, os incrementos químicos, as manipulações nos meios de comunicação, etc.) pode caracterizar-se instrumento de destruição na forma culposa ou dolosa, vindo a sofrer uma intervenção ou controle social que não represente a forma de controle policial ou judicial existente no sistema penal, e que possa ser tão nocivo ou até mesmo pior do que o controle policial ou judicial tradicional.

ZAFFARONI tem proposto o desenvolvimento de um direito de controle de atividade preventiva policial com estrita vigilância judicial, que poderia ser exercido e controlado por órgãos judiciais (não tradicionais) nacionais e até mesmo num convenio com órgãos internacionais, de forma a prevenir e limitar a ingerência preventiva em cada caso. O que é perfeitamente percebido que tal modelo não tem nada em comum com o modelo tradicional.

Tal perspectiva pode ser entendida como um complexo matemático de distante relacionamento com o modelo penal de decisão de conflitos, no entanto, no decorrer do tempo tornar-se-ia necessário a criação de um órgão com funções totalmente diferentes das exercidas pelos atuais sistemas penais. É de ser enfatizado que com a criação de tal órgão (sem nome), este não pode receber a "pecha" por ter sua funcionalidade por órgãos e instrumentos nacionais ou internacionais.

Faz-se necessário lembrar que o atual sistema penal não tem resolvido (sem falar da constatação de insucesso total para o futuro) os problemas tradicionais do sistema de justiça criminal; que o direito penal mínimo ou a intervenção penal mínima, e até mesmo o garantismo fundamental penal, não tem apresentado resultado que lance à humanidade uma perspectiva de segurança jurídica mínima.

O abolicionismo penal terá seu funcionamento com base na concepção do marxismo elaborada por MATHIESEM, trata-se de um sistema inacabado que requer uma constante alimentação social. A realização do abolicionismo penal passa por um processo de evolução não apenas humana, mas, fundamentalmente, de evolução entre as nações. O grande problema é saber até existirá o Estado nação.

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Sobre o autor
Luciano Nascimento Silva

professor universitário, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), bolsista de Graduação e Mestrado da FAPESP e de Doutorado da CAPES, pesquisador em Criminologia e Direito Criminal no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Freiburg in Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto abolicionista penal.: Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3556. Acesso em: 19 abr. 2024.

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