Leilão para bens imóveis: uma realidade que também deve alcançar os Municípios

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22/01/2015 às 22:31
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Busca-se demonstrar que os municípios também podem se valer da modalidade leilão para a venda de seus bens imóveis.

I - Ideias introdutórias

Diante da carência de recursos financeiros de alguns municípios, por vezes, verifica-se a necessidade de se alienar bens imóveis inservíveis para realizar determinados investimentos[1] em prol da população.

Acontece que, numa leitura apressada e descontextualizada da Lei 8.666/93, poder-se-á supor que, para o desfazimento de seus bens, os Municípios somente poderão utilizar a modalidade intitulada como “concorrência”, nos termos da literalidade do art. 17, I.

 Essa posição, contudo, não se coaduna com a sistemática principiológica e constitucional que vigora em nosso país, sobretudo porque tal modalidade não se mostra a mais vantajosa: as propostas apresentadas são definitivas, sem possibilidade de negociação.

Não por outro motivo, o setor privado tem priorizado o leilão, notadamente porque os valores iniciais, em regra, tendem sempre a aumentar. A União Federal, inclusive, tem enveredado por esse caminho.

Assim, o presente artigo tem o escopo de demonstrar que os municípios também podem se valer da modalidade leilão para a venda de seus bens imóveis.

II - Da competência da União para legislar apenas sobre normas gerais relacionadas a licitações e contratos. A alienação de bens imóveis municipais, por força do princípio da federação (arts. 1o e 60, § 4o, I, CF) e da autonomia (art. 18, CF), não deve obediência a norma federal.

Diz o texto constitucional que a União detém competência privativa para editar normas gerais sobre licitação e contratação:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

Em verdade, não se pode perder de vista que “ao interpretar um preceito constitucional, presume-se que as palavras utilizadas foram empregadas em seu sentido natural e ordinário”[2]. Tal lição é assaz valiosa porquanto o deslinde da questão depende do sentido dado ao signo “licitação”. Em outras palavras, é preciso verificar o conteúdo semântico daquele vocábulo para identificar o limite de produção normativa da União sobre a matéria.

O sempre festejado Hely Lopes Meirelles define licitação como “o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse.”[3]

A seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que a licitação é

“(...) um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessárias ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assumir.”[4]

De igual modo, a doutrina alienígena confere um caráter procedimental à licitação. Para o grande administrativista Augustín Gordillo, a licitação é “el procedimiento de principio para la contratación en la administración pública.”[5]

Tratando-se de um conceito uníssono, portanto, percebe-se que a União não tem a competência para legislar sobre a alienação de bens municipais, mas apenas (e com generalidade) sobre o procedimento em si. Não se pode confundir o objeto com o meio. A própria Constituição se desincumbiu de deixar clara a distinção, asseverando que a alienação (objeto) será contratada mediante licitação (meio):

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” (destaque nosso).

Compartilhando do mesmo entendimento aqui exarado, Toshio Mukai afirmou:

O art. 17 da Lei n.º 8.666/93, a par de outras inconstitucionalidades que dela constam, pretendeu baixar normas gerais sobre a alienação de bens federais, estaduais e municipais.

Dispôs nesse artigo: ‘A alienação de bens da Administração Pública (essa expressão e definida pelo art. 6º, XI da Lei n.º 8.666/93 como englobando todos os bens públicos da União, Estados, D.F., etc), subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas: (seguem-se diversas disposições quanto às dispensas de licitações e outras condições)’.

O que queremos chamar a atenção dos leitores é para a absoluta inconstitucionalidade desse artigo e dos de n.º 18 e 19.

E isto porque, mesmo a pretexto de estar legislando sobre normas gerais sobre licitações não é dado à lei ordinária federal impor obrigações e restrições quanto à alienação de bens do Município (...)

Não há nenhum sentido para a União impor condições ao Município relativamente à alienação dos bens destes. Trata-se de uma ingerência inconstitucional na autonomia municipal.”[6] (destaque nosso).

As normas gerais expedidas pela União, repita-se, serão exclusivamente sobre licitação e contrato, não se podendo adentrar na matéria relacionada à disposição dos bens de outros entes federados. Tanto é assim que dispositivo da Lei 8.666/93 foi questionado, por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade, em virtude de somente permitir a doação dos bens imóveis federais, estaduais e municipais para entes da Administração Pública (art. 17, I, b).

Ao analisar a matéria, o Supremo Tribunal Federal suspendeu, em sede de Medida Cautelar, a eficácia do dispositivo:

“CONSTITUCIONAL. LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA. Lei n. 8.666, de 21.06.93.8.666I. - Interpretação conforme dada ao art. 17, I, b (doação de bem imóvel) e art. 17, II, b (permuta de bem móvel), para esclarecer que a vedação tem aplicação no âmbito da União Federal, apenas. Idêntico entendimento em relação ao art. 17, I, c e par.1. do art. 17. Vencido o Relator, nesta parte. II. - Cautelar deferida, em parte.”[7]

Com efeito, a União não pode impor restrições para os Estados e Municípios alienarem seus bens, pena de violar o pacto federativo[8] e afrontar a autonomia[9] dos entes.

Ainda, um argumento a fortiori deve ser trazido ao lume: nos termos do entendimento delineado pelo Supremo Tribunal Federal, se o Município pode, através de lei local, doar o imóvel para o particular sem a realização de qualquer procedimento licitatório, por maior razão poderá aliená-lo por meio de leilão. Trilhando vereda semelhante, decidiu-se:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ALIENAÇÃO DE BENS IMÓVEIS DO MUNICÍPIO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AUSÊNCIA DE PRÉVIA AVALIAÇÃO E LICITAÇÃO. VENDA SOB ENCARGO. VALIDADE DO CONTRATO.

Demonstrado que a venda, autorizada por lei local, tem um interesse público justificado, e tendo em vista que tal transação é um menos em comparação com a doação com encargo, esta última dispensada de licitação por expressa disposição de lei (art. 17, § 4.º, da Lei n.º 8.666/93), possível, com muito mais razão, na venda com encargo, embora ausente previsão legal, a dispensa da licitação. Na lacuna da lei a interpretação há ser feita forma sistemática e por analogia. E é do sistema legal, na doação com encargo, com interesse público justificado, a dispensa da licitação. Então, há aplicar este mesmo sistema, por analogia, à venda com encargo, onde, por expressa disposição, agora de lei local, justificado está o interesse público nas alienações. Precedentes da Câmara.”[10] (destaque nosso).

III - Do alcance do art. 17, I, da Lei 8.666/93. Norma de caráter especial (não geral).

O art. 17, I, da Lei 8.666/93, por tratar da forma de alienação de bens de outros Entes políticos, está longe de ser uma norma geral. Vejamos sua redação:

“Art. 17.  A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

I - quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos: (...)”

Não há dúvidas de que a norma é de caráter especial, razão por que sua incidência haverá de ser limitada ao âmbito federal, devendo cada Ente federado regulamentar a forma de alienação de seus bens.

Note-se, em reforço dessa argumentação, que, após o Supremo Tribunal Federal suspender a eficácia, para os Estados e Municípios, do dispositivo relacionado à doação de bens imóveis, a União, em 1998, promoveu alteração no  arcabouço jurídico-normativo, disciplinando, a partir daí, que a alienação de seus bens imóveis poderia ser feita através das modalidades concorrência ou leilão. É o que se depreende da leitura do art. 24, da Lei 9.636/98:

“Art. 24. A venda de bens imóveis da União será feita mediante concorrência ou leilão público, observadas as seguintes condições:”

Nada versou acerca dos bens dos Estados e dos Municípios. Nem mesmo o Projeto de Lei no 7709/2007, que tem por escopo atualizar a Lei 8.666/93, trata de possível alteração para inserir o leilão no art. 17, I.

Diante dessas circunstâncias, é possível chegar à ilação no sentido de que a União reconheceu a limitação de sua competência normativa, optando por não mitigar a autonomia dos Entes Federativos.  Portanto, a matéria concatenada à alienação de bens estaduais e municipais deverá ficar ao encargo da Assembleia Legislativa ou da Câmara Municipal, conforme for o caso.

IV - Da possibilidade de o Município legislar de forma complementar sobre a matéria de licitações e contratos.

Ainda, torna-se imperioso ter em mente que, mesmo que o conteúdo jurídico do art. 17, I, da Lei 8.666/93, explicitasse norma geral, nada impediria que cada ente político, com base em sua competência normativa, estabelecesse um plus a fim de melhor salvaguardar a moralidade e o interesse púbico, ampliando a forma de competição e permitindo a obtenção de melhor oferta nos termos do art. 37, XXI.

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Nesse contexto, pode uma Lei Municipal, por exemplo, diminuir o valor obrigatório para a realização de concorrência. Ou seja, ao revés de R$ 650.000,00, é possível estabelecer obrigatória aquela modalidade quando o valor for acima de R$ 300.000,00. O diploma normativo local poderá, ainda, estabelecer outras hipóteses que privilegiem os princípios constitucionais, sem que isso abale a sua constitucionalidade.

Esse entendimento, inclusive, foi adotado pelo Supremo Tribunal Federal:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL. LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE BRUMADINHO-MG. VEDAÇÃO DE CONTRATAÇÃO COM O MUNICÍPIO DE PARENTES DO PREFEITO, VICE-PREFEITO, VEREADORES E OCUPANTES DE CARGOS EM COMISSÃO. CONSTITUCIONALIDADE.COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição Federal outorga à União a competência para editar normas gerais sobre licitação (art. 22, XXVII) e permite, portanto, que Estados e Municípios legislem para complementar as normas gerais e adaptá-las às suas realidades. O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as normas locais sobre licitação devem observar o art. 37, XXI da Constituição, assegurando “a igualdade de condições de todos os concorrentes”. Precedentes. Dentro da permissão constitucional para legislar sobre normas específicas em matéria de licitação, é de se louvar a iniciativa do Município de Brumadinho-MG de tratar, em sua Lei Orgânica, de tema dos mais relevantes em nossa pólis, que é a moralidade administrativa, princípio-guia de toda a atividade estatal, nos termos do art. 37, caput da Constituição Federal. A proibição de contratação com o Município dos parentes, afins ou consanguíneos, do prefeito, do vice-prefeito, dos vereadores e dos ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, bem como dos servidores e empregados públicos municipais, até seis meses após o fim do exercício das respectivas funções, é norma que evidentemente homenageia os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, prevenindo eventuais lesões ao interesse público e ao patrimônio do Município, sem restringir a competição entre os licitantes. Inexistência de ofensa ao princípio da legalidade ou de invasão da competência da União para legislar sobre normas gerais de licitação. Recurso extraordinário provido.”[11]

No voto do Relator, constou-se a advertência no sentido de que a licitação deve ser pautada pelo interesse público, devendo-se sempre ter como preocupação a competitividade entre os interessados:

“Da generalidade da norma às particularidades de cada ente da Federação, pode-se afirmar que a Constituição deixa aberta a porta da discricionariedade. Contudo, em tema de licitação, como já decidiu esta Corte, a discricionariedade existe para preservar um interesse público fundamental: a possibilidade de efetiva, real e isonômica competição. É a busca pela competição que justifica certa liberdade do legislador e do administrador (ADI 3059-MC, rel. min. Carlos Britto, RTJ 192/163; ADI 3.070, rel. min. Eros Grau, DJ 19.12.2007).”

Forte nessas razões, o Estado da Bahia, legislando de forma complementar (Lei Estadual no 9.433/2005), inseriu o leilão como modalidade a ser adotada para alienação de imóveis:

“Art. 34 - A alienação, a qualquer título, dos bens da Administração Pública Estadual, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será sempre precedida de avaliação a ser efetuada pelo órgão ou entidade alienante e submetida à apreciação e aprovação de comissão designada pela autoridade competente, obedecendo às seguintes normas:

I - quando de imóveis, dependerá de autorização legislativa específica, nos termos do art. 18 da Constituição Estadual, para os órgãos da Administração direta, autarquias e fundações públicas e demais entidades que não explorem atividades lucrativas, e, para toda a Administração Pública Estadual, de licitação, sob a modalidade de concorrência ou leilão público, dispensada esta nos seguintes casos:” (destaque nosso).

Essa, por certo, é a vereda a ser trilhada pelos demais Entes Políticos, pois que sobreleva o respeito ao interesse público concreto, ao princípio da eficiência e da razoabilidade. Afinal, não pairam dúvidas de que o leilão, por ser dinâmico, é muito mais vantajoso do que a concorrência. Naquela modalidade (leilão), o licitante não se limita a apresentar uma proposta e, empós, a depender do caso, ficar resignado com o resultado.

Ao revés, são apresentados lances sucessivos crescentes e, por meio dessa disputa, obtém-se o melhor preço. Ontologicamente, a sistemática é igual à do pregão. E é de conhecimento de todos que o pregão (assim como o leilão) traz grande proteção (vantagem) para o Erário...[12]

Justamente por isso, levando-se em conta a ampla competitividade, a vantajosidade e a transparência, o leilão é comumente utilizado, seja, por exemplo, para a venda de obras de arte, seja para situações menos usuais[13]. Como já se disse, a União Federal também faz uso dele (art. 24, da Lei 9.636/98), afigurando-se descabido o pensamento acerca da impossibilidade de os Estados ou Municípios, através de lei local, seguirem a diretriz federal, adotando a referida modalidade. O ordenamento jurídico não dá guarida ao egoísmo federativo!

Demais disso, não se pode olvidar que, tratando-se de direito administrativo, o interesse público concreto deverá ser a bússola hermenêutica. Sob esse ângulo, o Tribunal de Contas da União admitiu tipo de licitação não previsto em Lei:

A adoção de critério de julgamento de propostas não previsto na legislação do pregão, do tipo maior valor ofertado para o objeto mencionado no item anterior, somente seria admissível, em princípio, em caráter excepcional, tendo em vista o relevante interesse público da aplicação deste critério alternativo para o atingimento dos objetivos institucionais do ente público e como mecanismo concretizador do princípio licitatório da seleção da oferta mais vantajosa para a Administração. Tal especificidade deve obrigatoriamente ser motivada e justificada pelo ente público no processo relativo ao certame, além de ter demonstrada sua viabilidade mercadológica.”[14]

Por fim, sob o império da lógica, não se pode negar que a utilização do leilão pelos Municípios será constitucional e, mais do que isso, assaz conveniente e oportuna. Se é possível transferir o bem imóvel através de ato gratuito (doação) e sem qualquer procedimento licitatório, nada há de impedir a alienação que busque o meio mais vantajoso (leilão), sobretudo por existir Lei Municipal regulando a matéria. Essa linha de raciocínio, aliás, tem sido acolhida pelos nossos Tribunais:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMÓVEL DO MUNICÍPIO – VENDA SOB ENCARGO (CONSTRUÇÃO PARA ATIVIDADES ECONÔMICAS) – ÁREA MAIOR DESAPROPRIADA HÁ MAIS DE VINTE ANOS PARA O CENTRO ADMINISTRATIVO, NUCLEOS INDUSTRIAIS E OUTRAS FINALIDADES PÚBLICAS E DE INTERESSES SOCIAL – LEIS MUNICIPAIS AUTORIZANDO O PODER EXECUTIVO A ALIENAR SEM LICITAÇÃO, MEDIANTE PREÇO MÍNIMO PRÉ-ESTABELECIDO E VINCULAÇÃO À FINALIDADE, DENTRE OUTRAS EXIGÊNCIAS – 1. Compete à legislação infraconstitucional definir os casos de dispensa de licitação na venda de bens públicos alienáveis (CF, art. 37, XXI ). A legislação dispensa licitação nos casos de doação com encargo baseada em interesse público devidamente justificado ( Lei 8.666/93, art. 17, § 4º ), cabendo à respectiva entidade federativa defini-lo, conforme a conveniência e oportunidade. Se assim é relativamente à doação, que é o mais na contrariedade ao erário, pois nada é pago, há admitir a dispensa, pelo menos em juízo provisório, pelo argumento a fortiori, também relativamente à venda, que é o menos, pois nesta há pagamento, portanto melhor atende aos interesses do erário, cumpridas as condições estabelecidas na Lei local. 2. Agravo provido, por maioria.”[15]

V - Da aplicação subsidiária, no âmbito municipal, do art. 24, da Lei Federal no 9.636/98.

Na remota hipótese de haver discordância em relação às teses até aqui lançadas, faz-se mister, então, invocar a aplicação subsidiária do art. 24, da Lei Federal 9.636/98, no âmbito do Município. Com efeito, é inadmissível que a União adote um comportamento de “egoísmo federativo”, limitando para si o uso da modalidade mais vantajosa relativa às alienações de imóveis: o leilão.

Tal comportamento menoscaba o princípio da igualdade federativa (art. 19, III, da Constituição Federal), pois cria uma preferência exclusiva para a União, em detrimento dos demais membros da federação.

Nessas circunstâncias, estar-se-á diante de um vácuo normativo quanto à possibilidade de alienação dos bens imóveis municipais por meio de leilão, que deverá ser resolvido por meio da aplicação subsidiária da Lei Federal[16].

Importante frisar que essa técnica jurídica (aplicação subsidiária de Lei Federal) não é desconhecida da jurisprudência brasileira. Ao contrário, ela é fomentada, conforme posicionamento pacífico do Superior Tribunal de Justiça:

 “RECURSO ESPECIAL. LEI N.º 9.784/99. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. ESTADOS E MUNICÍPIOS. PRAZO DECADENCIAL. SUSPENSÃO. INTERRUPÇÃO.

NÃO-OCORRÊNCIA. REVISÃO. FATOS. NÃO-CABIMENTO. SÚMULA 07/STJ.

(...)

10. A Lei 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiária no âmbito dos demais Estados-Membros, se ausente lei própria regulando o processo administrativo no âmbito local. Precedentes do STJ.”[17]

Dessa sorte, há de ser reconhecida a possibilidade de aplicação subsidiária da Lei Federal 9.636/98 para que se adote o leilão também para a alienação de bens imóveis do ente municipal.

VI – Interpretação, conforme a Constituição, do art. 17, I, da Lei 8.666/93.

De outro lado, ainda que se entenda que o art. 17, I, da Lei 8.666/93, tem conteúdo de norma geral, imperiosa será sua interpretação conforme a Constituição, permitindo-se, desse modo, também a utilização da modalidade leilão. Não se pode deslembrar, no ensejo, que Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro assevera que, “na aplicação da lei, o juiz (qualquer outro intérprete) atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Entendimento contrário, sem dúvidas, violará o princípio da razoabilidade, da igualdade federativa, da supremacia do interesse público e da eficiência.

VI.1) Violação ao art. 5, LIV, da Constituição Federal[18]

(Princípio da Razoabilidade)

O Supremo Tribunal Federal já deixou assentado que todas as leis devem estar em consonância com o conteúdo substantivo do devido processo legal; além de serem elaboradas com justiça, devem sofrer o influxo da razoabilidade e da racionalidade:

 “Abrindo o debate, deixo expresso que a Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos seus dois aspectos, substantivo e processual, nos incisos LIV e LV do art. 5o, respectivamente. (...) Due process of law, com conteúdo substantivo – substantive due processconstitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir (….)”[19]

Examinando-se o art. 17, I, da Lei 8.666/93, porém, pode-se perceber que a omissão legislativa em relação à modalidade leilão para a alienação de bens imóveis dos Estados e Municípios destoa da racionalidade e da razoabilidade, sobretudo quando, no plano federal, existe norma explícita sobre a matéria (Lei 9.636/98, art. 24).

Não se pode negar --- isso é cediço --- que o leilão é muito mais vantajoso para o Erário. Na concorrência, os envelopes são apresentados e, após abertos, não é possível apresentar novos preços; por outro lado, a dinâmica do leilão garante a competitividade ampla dos licitantes e permite a oferta de lances sucessivos e crescentes.

O mercado de obras de arte, a bolsa de valores e a própria União utilizam o leilão, pois ele é o meio mais adequado para se concretizar a melhor venda. Com o perdão da linguagem prosaica, até virgindade hoje é leiloada[20].

Não é razoável, então, que o Município seja obrigado a adotar a concorrência com propostas estáticas, i. e., sem possibilidades disputas.

VI.2) Violação ao art. 19, III, da Constituição Federal

(Princípio da igualdade federativa)

Sem embargos de ter competência privativa para legislar sobre normas gerais de licitação, a União ficou silente quanto à adoção de leilão para a alienação de bens imóveis estaduais e municipais. Entrementes, implementou a modalidade para a alienação de seus próprios bens.

Criou, para si, uma verdadeira preferência, em detrimento dos demais Entes Políticos, violando o princípio da igualdade federativa insculpido no art. 19, III, da Constituição Federal:

“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”

Desse modo, se não houver interpretação conforme a Constituição para admitir a utilização do leilão, o Município, ao contrário da União, deverá se contentar com a apresentação de oferta única para a venda de seus bens, o que ocasionará um prejuízo ao Erário.

VI.3) Violação ao art. 37, caput[21], da Constituição Federal

(Princípio da Supremacia do interesse público concreto)

Segundo a doutrina, o “princípio da supremacia do interesse público” encontra-se implícito no art. 37, da Constituição Federal. Mais do que isso, ele já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal como um valor fundamental.

A CR, ao fixar as diretrizes que regem a atividade econômica e que tutelam o direito de propriedade, proclama, como valores fundamentais a serem respeitados, a supremacia do interesse público, os ditames da justiça social, a redução das desigualdades sociais, dando especial ênfase, dentro dessa perspectiva, ao princípio da solidariedade, cuja realização parece haver sido implementada pelo Congresso Nacional ao editar o art. 1o da Lei 8.441/1992.” (ADI 1.003-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1o-8-1994, Plenário, DJ de 10-9-1999.)

Seu conteúdo jurídico está ligado à superioridade do interesse da coletividade, à realização do bem comum concretamente identificável. Nesse passo, só será possível efetivar esse princípio por meio da utilização do leilão, pois essa modalidade permite obter melhores ofertas, cujo proveito econômico deverá ser revertido em favor da população.

A utilização de modalidade diversa do leilão implica uma diminuição na arrecadação, sem dúvidas. Importa lembrar que todo o valor arrecado será revertido em obras públicas (a própria Lei autorizativa já faz essa vinculação). Em outras palavras, estar-se-ia penalizando a própria sociedade por um apego a mera questão de forma!

 (Princípio da Eficiência)

Sobre o princípio da eficiência, já tivemos a oportunidade de escrever que ele

“(...) estabelece um fim (estado de coisas desejado) a ser atingido, exteriorizando-se através da racionalidade no gasto dos recursos, medidas anti-burocráticas, destreza e ausência de tecnocracia.

(...)

O princípio da eficiência, mais do que um atavio, indica a necessidade de racionalização entre os recursos despendidos e o objetivo da ação organizacional com o escopo de efetivar o melhor resultado, com a maior celeridade possível. É, pois, a diretriz da ação prestemente desenvolvida para a consecução da eficácia (resultado).”[22]

Acrescente-se, ademais, que a racionalidade na arrecadação dos recursos também compõe o conteúdo jurídico desse princípio. Sendo assim, o leilão se apresenta como a opção mais eficiente para a alienação dos bens imóveis municipais.

Ainda, com base nos ensinamentos de Uadi Lammêgo Bulos, cumpre asserir que o princípio da eficiência possui força normativa autônoma, servindo “de substrato para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo contrário à plenitude de seus efeitos.”[23]

Por isso, exsurge a necessidade de interpretar conforme a Constituição para admitir o uso da modalidade leilão para a alienar os bens imóveis municipais.

Sobreleve-se que não se estará criando nova modalidade, mas apenas utilizando uma já existente. Em situação semelhante, o Tribunal de Contas da União admitiu a possibilidade de, mesmo sem estar previsto na Lei de Pregão, utilizar-se o tipo de licitação “maior valor ofertado“:

A adoção de critério de julgamento de propostas não previsto na legislação do pregão, do tipo maior valor ofertado para o objeto mencionado no item anterior, somente seria admissível, em princípio, em caráter excepcional, tendo em vista o relevante interesse público da aplicação deste critério alternativo para o atingimento dos objetivos institucionais do ente público e como mecanismo concretizador do princípio licitatório da seleção da oferta mais vantajosa para a Administração. Tal especificidade deve obrigatoriamente ser motivada e justificada pelo ente público no processo relativo ao certame, além de ter demonstrada sua viabilidade mercadológica.”[24]

Aliado a isso, registre-se que os bens imóveis derivados de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento podem ser alienados por leilão:

“Art. 19.  Os bens imóveis da Administração Pública, cuja aquisição haja derivado de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento, poderão ser alienados por ato da autoridade competente, observadas as seguintes regras:

I - avaliação dos bens alienáveis;

II - comprovação da necessidade ou utilidade da alienação;

III - adoção do procedimento licitatório.

III - adoção do procedimento licitatório, sob a modalidade de concorrência ou leilão. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)”

Portanto, transplantar a regra do leilão também para os bens imóveis do Município é medida que se impõe.

VII – Considerações finais

Restou demonstrado que o leilão é a modalidade mais vantajosa para a alienação dos bens imóveis, de modo que, para utilizá-la, os Municípios não podem ficar na dependência legislativa da União. As razões, para tanto, foram apresentadas no curso desse texto:

1 – a União não tem competência para legislar sobre a alienação dos bens municipais;

2 – o art. 17, I, da Lei 8.666/93 tem conteúdo de norma de caráter especial (não geral);

3 – a autonomia municipal garante a possibilidade de produzir legislação complementar sobre licitações e contratos;

4 – a existência de eventual vácuo normativo quanto à realização de leilão para os bens imóveis municipais permite que o art. 24, da Lei 9.336/98, seja aplicado de forma subsidiária;

5 – o art. 17, I, da Lei 8.666/93, deve ser interpretado em conformidade com a Constituição Federal, sobrelevando-se a igualdade federativa e os princípios da razoabilidade, da supremacia do interesse público concreto e da eficiência;

BIBLIOGRAFIA

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MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 13a ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo e Maria Lúcia Mazzei de Alencar. São Paulo: Malheiros, 2002.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 28a ed., rev. e atual. Até a Emenda Constitucional 67, de 22/12/2010. São Paulo: Malheiros, 2011.

MUKAI, Toshio. Alienação e uso de bens municipais: disciplina exclusiva da Lei Orgância Municipal. In Revista Painel de Compras Municipais. Ano V, no 29,  mar-abr/2008, D’Amico Editora.

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