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Penhora do Bem de Família do Fiador Locatício: (In)Constitucionalidade

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31/01/2015 às 08:59
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CAPÍTULO 2

LEI DO INQUILINATO: CONTRATO LOCATÍCIO E FIANÇA

2.1 O Contrato de Locação e a Fiança Locatícia

Do Direito das Obrigações à Teoria Geral dos Contratos

Em sentido lato, a obrigação se identifica com qualquer espécie de dever moral, social, religioso ou jurídico. No campo jurídico, por exemplo, os juristas utilizam, algumas vezes, a palavra “obrigação” como sinônimo de dever jurídico. Tecnicamente, contudo, define-se obrigação como vínculo jurídico de caráter patrimonial, que recaia sobre uma pessoa em benefício de outra, relativamente a um bem, o qual se encontre no patrimônio do devedor. Seu conteúdo deve ser uma prestação possível, lícita, determinada ou determinável e que possua expressão econômica. De forma concisa, consoante Wald (2004), pode-se definir obrigação como o vínculo jurídico temporário pelo qual a parte credora, pode exigir da parte devedora, uma prestação patrimonial, acaso esta não venha a ser satisfeita espontaneamente. É da essência da obrigação, portanto, que haja uma causa da qual ela nasça.

Consoante Wald (2004), data do direito romano a distinção das obrigações em pessoais e reais, da qual decorreu a correspondente divisão dos direitos até hoje admitida, de maneira que os direitos podem ser exercidos sobre a própria pessoa do titular (direitos de personalidade), ou sobre um bem exterior de valor econômico (direitos patrimoniais). Portanto, o direito pode ser dividido em dois grandes ramos: o dos direitos não patrimoniais, referente à pessoa humana (o direito à vida, à liberdade etc.), e o dos direitos patrimoniais, de valor econômico, os quais, por sua vez, dividemse em reais e obrigacionais. Os primeiros integram o direito das coisas, ao passo que os segundos, quais sejam, os obrigacionais, pessoais ou de crédito, compõem o direito das obrigações, objeto do presente estudo, nesta primeira etapa. Define-se obrigação como o vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o direito de exigir do devedor (sujeito passivo) o cumprimento de uma determinada prestação. De acordo com Gonçalves (2007), corresponde a uma relação de natureza pessoal, de crédito e débito, de caráter transitório, porquanto se extinguir com o seu cumprimento, cujo objeto consiste numa prestação economicamente aferível. E é o patrimônio do devedor que responde por suas obrigações, constituindo-se ele, pois, na garantia do adimplemento com que pode contar o credor.

No tocante à origem das obrigações, importa dizer que estas nascem de diversas fontes (GONÇALVES, 2007). Sendo assim, diga-se que fonte de obrigações é o seu elemento gerador, o fato que lhe dá origem, de acordo com as regras do direito. No Código Civil brasileiro, considera-se como fonte das obrigações: a) os contratos; b) as declarações unilaterais de vontade; e, c) os atos ilícitos dolosos e culposos, onde a lei aparece como fonte primária, uma vez que os referidos atos e negócios jurídicos somente geram obrigações porque assim o é disposto em lei. Pode-se afirmar que a obrigação resulta da vontade do Estado por intermédio da lei ou da vontade humana, que é manifestada no contrato, na declaração unilateral  ou na prática de um ato ilícito.

Concernente a seus elementos constitutivos, a obrigação compõe-se de três elementos essenciais: a) o subjetivo, relativo este ao sujeito ativo e passivo, isto é, ao credor e devedor; b) o vínculo jurídico existente entre eles; e, c) o objeto da relação jurídica. Assim, em relação ao primeiro elemento, os sujeitos da obrigação, tanto o ativo quanto o passivo, devem ser determinados ou, ao menos, determináveis e, caso incapazes, representados ou assistidos por seus representantes legais. No que diz respeito ao vínculo, resulta ele de diversas fontes e sujeita o devedor à determinada prestação em favor do credor. Divide-se este em débito e responsabilidade. O primeiro, também chamado de vínculo pessoal, une o devedor ao credor e exige que aquele cumpra pontualmente a obrigação. O segundo, o vínculo material, confere ao credor não satisfeito o direito de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação, submetendo aos bens do devedor. Há, portanto, de um lado, o dever da pessoa obrigada (debitum), e de outro a responsabilidade, em caso de inadimplemento. Quanto ao objeto da obrigação, é sempre uma conduta humana (dar, fazer e não fazer) e chama-se “prestação”. O objeto da prestação é o objeto imediato da obrigação. Há de ser lícito, possível, determinado ou determinável, e, suscetível de apreciação econômica. Atinente ao objeto, será lícito quando não contrariar a lei, a moral e os bons costumes, sendo nula, de plano, a obrigação de objeto ilícito, impossível e indeterminável  (GONÇALVES, 2007).

Quanto às modalidades, o Código Civil, inspirado na técnica romana, classificou as obrigações, quanto a seu objeto, em três espécies, quais sejam, a obrigação de dar, de fazer e não fazer, sendo, portanto, duas positivas e uma negativa, de maneira que todas as obrigações que venham a se constituir na vida jurídica, compreenderão sempre algumas dessas condutas.

No tocante à obrigação de dar, consiste em transferir a posse ou transmitir a propriedade de um objeto ao credor. Conforme afirma Gonçalves (2007), divide-se em obrigação de dar coisa certa e obrigação de dar coisa incerta. Na primeira, obriga-se o devedor a dar coisa individualizada, que se distinga por características próprias, sendo móvel ou imóvel, conferindo ao credor direito pessoal e não real. Cumpre-se tal obrigação mediante à entrega ou a restituição, que ocorre através da tradição.

Quanto à obrigação de dar coisa incerta, a expressão indica que a obrigação tem objeto indeterminado, mas não totalmente, porque devem ser indicados, ao menos, o gênero e a quantidade. A incerteza da coisa não significa indeterminação, mas determinação genericamente feita. É, portanto, indeterminado, mas determinável. A determinação ocorre pela escolha, a qual compete ao devedor, se o contrato não dispuser o contrário, não lhe sendo lícito, todavia, escolher a pior qualidade, bem como não ser obrigado a dar as melhores unidades. Feita esta, acaba a incerteza e a coisa torna-se certa, vigorando, então, as normas que tratam da obrigação de dar coisa certa (WALD, 2004).

Outra modalidade de obrigação é a classificada como obrigação de fazer. Nela, segundo Gonçalves (2007), a prestação consiste em atos ou serviços a serem executados pelo devedor. Diferem das obrigações de dar, principalmente por que o credor pode, conforme as circunstâncias, não aceitar a prestação por terceiros, enquanto nestas admite-se o cumprimento por outrem. Entretanto, quando for convencionado que será o devedor quem deva cumprir pessoalmente a prestação, ou a própria natureza desta impedir sua substituição, está-se diante de obrigação de fazer personalíssima, infungível ou imaterial. Neste caso, a infungibilidade pode decorrer da própria natureza da prestação, ou seja, das qualidades artísticas ou profissionais do contratado (famoso pintor, por exemplo), sendo, nesta hipótese, subtendido que o devedor a cumpra pessoalmente. Em caso de recusa do devedor em cumprir a prestação a ele somente imposta no contrato, ou só por ele exequível, devido suas qualidades pessoais, haverá responsabilização pelo pagamento das perdas e danos. Todavia, quando não houver tal exigência, nem se trate de ato ou serviço cuja execução dependa de qualidades pessoais do devedor, diz-se que a obrigação de fazer é impessoal, fungível ou material. Importa esclarecer, ainda, que  a impossibilidade de o devedor cumprir a obrigação de fazer, bem como a recusa em executá-la, acarretam inadimplemento contratual. No entanto, se a prestação de fato torna-se impossível, e, em não havendo culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação, ao passo que, do contrário, responderá ele por perdas e danos (GONÇALVES, 2007).

As obrigações ainda podem ser omissivas, importando em um non facere, conforme esclarece Wald (2004). Trata-se das obrigações de não fazer, ou também conhecidas por negativas, porquanto imporem ao devedor um dever de abstenção, qual seja, o de não praticar o ato que poderia livremente fazer se não se houvesse obrigado, como no caso, por exemplo, do adquirente que se obriga a não construir no terreno adquirido, prédio além de certa altura. Se praticado o ato, torna-se a parte inadimplente, podendo o credor exigir o desfazimento do que foi realizado, sujeitando o devedor ao pagamento de perdas e danos como consequência do inadimplemento. Tal como ocorre nas obrigações de fazer, extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, torne-se impossível abster-se do ato que se obrigou a não praticar. Assim, por exemplo, o devedor que prometeu manter cercas vivas, não pode deixar de atender determinação de autoridade competente para construir um muro ao redor de sua residência.

Por derradeiro, esclarece Gonçalves (2007), as obrigações também têm um ciclo vital:

nascem de diversas fontes, vivem e desenvolvem-se por meio de suas várias modalidades, e, finalmente, extinguem-se. Essa extinção ocorre, em regra, pelo seu cumprimento, o qual o Código Civil denomina de pagamento. Contudo, embora essa palavra seja usada, comumente, para indicar a solução em dinheiro de alguma dívida, o legislador a empregou no sentido técnico-jurídico de execução por qualquer espécie de obrigação. Pagamento significa, pois, o cumprimento ou o adimplemento da obrigação, podendo ser de maneira direta ou indireta. Entre os diversos meios indiretos encontram-se o pagamento por consignação, a novação, a compensação, a transação etc. Todavia, além do meio normal de pagamento, importa referir que a obrigação pode extinguir-se também por meios anormais, isto é, sem pagamento, como no caso da impossibilidade de execução sem culpa do devedor, do advento do termo e da prescrição.

Não obstante, uma vez superada pretensa conceituação e definição acerca das obrigações, muito embora não se tenha a intenção de esgotar o tema, mas tão somente em tecer breves comentários a respeito deste, mister elucidar um pouco melhor uma de suas principais fontes, qual seja, os contratos.

A doutrina se divide em duas grandes vertentes quando se trata de definir o que seja contrato. De acordo com Silveira (2006), há uma corrente que amplia o conceito ao afirmar que os contratos são todos os atos jurídicos bilaterais e patrimoniais, ao passo que a segunda sustenta a limitação deste conceito, porquanto apenas o designa como negócio jurídico bilateral criador de obrigação. Como o Código Civil brasileiro não define textualmente o que sejam contratos, para efeitos deste trabalho monográfico, entende-se sua conceituação como o negócio jurídico bilateral, visando a criar, a modificar ou a extinguir obrigações.

Surgido no direito romano, em clima de formalismo, de inspiração religiosa, o contrato se firmou no direito canônico, assegurando à vontade humana a possibilidade de criar direitos e obrigações. Assim, oriunda dos canonistas, a teoria da autonomia da vontade foi desenvolvida pelos enciclopedistas filósofos e juristas que precederam a Revolução Francesa e afirmaram a obrigatoriedade das convenções equiparando-as, para as partes contratantes, à própria lei. De acordo com Wald (2004), surge assim o princípio da pacta sunt servanda.

Cabe aduzir que a idéia de um contrato com predominância da autonomia da vontade, em que as partes discutem livremente as suas condições em pé de igualdade, deve-se aos conceitos traçados para os contratos nos códigos francês e alemão. Todavia, essa espécie de contrato representa uma pequena parcela no mundo negocial, haja vista que o Estado intervém, constantemente, na relação contratual privada, a fim de assegurar a supremacia da ordem pública, relegando o individualismo ao plano secundário. Tal situação tem sugerido a existência de um dirigismo contratual em certos setores que interessam a toda a coletividade. Pode-se afirmar assim, nos dizeres de Gonçalves (2000), que a força obrigatória dos contratos não se afere mais sob a ótica do dever moral de manutenção da palavra empenhada, mas da realização do bem comum, porquanto ter o contrato uma função social.

Todavia, para que os contratos tenham validade, convém observar certos requisitos ou condições, consubstanciados em duas espécies: a) de ordem geral, comum a todos os atos e negócios jurídicos, como a capacidade do agente, o objeto lícito e a forma prescrita ou não defesa em lei; e, b) de ordem especial, isto é, o consentimento específico e o acordo de vontades. No tocante aos requisitos de ordem geral, crucial tecer algumas considerações pertinentes aos mesmos. Assim, concernente à capacidade dos contratantes é este o primeiro requisito para a validade dos contratos. Se o agente for incapaz (absoluta ou relativamente), serão nulos ou passíveis de anulação seus atos. Quanto ao objeto, há de ser lícito de modo a não atentar à lei, a moral e os bons costumes. Além disso, deverá ser possível, determinado ou determinável e economicamente auferível. Outro requisito importante para a validade do negócio jurídico é aquele que observa a forma, a qual dever ser prescrita ou não defesa em lei. Em regra, a forma é livre, de maneira que as partes podem celebrar o contrato por escrito ou verbalmente, a não ser nos casos em que a lei, para maior segurança e seriedade ao negócio, exija a forma escrita, seja ela pública ou particular (GONÇALVES, 2000).

Atinente ao segundo requisito, qual seja, de ordem especial, próprio dos contratos, preleciona Gonçalves (2000) ser aquele referente ao consentimento recíproco, ou acordo de vontade, como dito anteriormente. Assim, deve ser ele livre e espontâneo, sob pena de vir a ter sua validade afetada pelos vícios ou defeitos do negócio jurídico. Além disso, no que diz respeito à manifestação da vontade, pode ser ela tácita ou expressa. Expressa será aquela exteriorizada verbalmente, por escrito, de forma inequívoca, de modo que o silêncio somente pode ser demonstrado como manifestação tácita da vontade, quando a lei assim der a ele tal efeito.

Além disso, imprescindível dizer que o contrato resulta de duas manifestações de vontade: a proposta e a aceitação. A primeira, também denominada de oferta, policitação ou oblação, dá início à formação do contrato e não depende, em regra, de forma especial; é considerada como a primeira declaração de vontade da relação contratual. Antes, porém, há uma fase, às vezes prolongada, de negociação preliminar, notadamente conhecida por fase da puntação. Neste caso, as partes ainda não manifestaram a sua vontade, não havendo, por consequência, nenhuma vinculação ao negócio, podendo, qualquer delas, afastar-se simplesmente, alegando desinteresse, sem responder por perdas e danos, visto que a proposta vincula o proponente, de maneira que sua retirada o sujeita ao pagamento de perdas e danos, caso este não tenha expresso que a mesma não seria definitiva. No que toca à aceitação, é ela a concordância com os termos da proposta. É a manifestação de vontade imprescindível para que se repute concluído o contrato. Para tanto, deve ser pura e simples. Caso apresentada fora do prazo, com adição, restrição ou modificações, importará em nova proposta, comumente conhecida de contraproposta. Além disso, pode ser a aceitação expressa ou tácita. Assim, os contratos aperfeiçoam-se com a aceitação, reputando-se concluídos (GONÇALVES, 2000).

Desta feita, observa-se que os contratos, assim como as obrigações, igualmente, têm um ciclo vital: nascem do acordo de vontades, produzem os efeitos que são próprios e extinguem-se. A extinção dá-se, em regra, pela execução, seja instantânea, diferida ou continuada. Conforme Gonçalves (2000), o cumprimento da prestação libera o devedor e satisfaz o credor, comprovandose o pagamento pela quitação fornecida pelo credor. É este o meio normal de extinção do contrato. Contudo, algumas vezes, o contrato extingue-se antes de ter alcançado o seu fim, ou seja, sem que a obrigação tenha sido cumprida, de maneira que várias causas acarretam sua extinção normal, sendo algumas anteriores ou contemporâneas  à formação do contrato e outras supervenientes.

Nesse sentido, uma vez transposta pretensa conceituação e definição dos contratos, mister classificá-los para uma maior compreensão didática atinente a estes, haja vista se revestir de importância prática. Cada contrato, pois, apresenta vestes diversas e classificá-los é uma premissa inicial para atingir a natureza jurídica e, consequentemente, seus efeitos. Assim, consoante Venosa (1997), a classificação serve para posicionar corretamente o negócio jurídico.

No direito moderno, relata Gonçalves (2000), atende-se a vários critérios para categorizar os contratos a fim de fixar seu conteúdo, tanto o é que o Código Civil disciplina dezesseis espécies. Nessa toada, importante salientar que os contratos classificam-se em diversas modalidades, subordinando-se a regras próprias ou a fins, conforme as categorias em que se agrupam. Dividemse, assim, quanto aos efeitos, quanto à formação, quanto ao momento de sua execução, quanto ao agente, quanto ao modo por que existem, quanto à forma, quanto ao objeto e, por fim, quanto à designação. Tecendo breves comentários, pode-se explicitar as modalidades em questão.

Assim, no tocante aos efeitos, podem ser: a) unilaterais, bilaterais e plurilaterais; b) gratuitos e onerosos; subdividindo-se, este último, em comutativos e aleatórios. Em relação à formação, os contratos podem ser paritários, de adesão e os contratipos. Já, no que concerne ao contrato de execução instantânea, diferida ou de trato sucessivo, leva-se em consideração o momento em que os contratos devem ser cumpridos. Assim, são de execução instantânea os que se consumam num só ato, sendo cumpridos imediatamente após sua celebração, como no caso da compra e venda. De execução diferida são os contratos que devem ser cumpridos em um só ato, porém, em um momento futuro. Contratos de trato sucessivo ou de execução continuada são os que se cumprem por meio de atos reiterados, como no caso da compra a prazo (GONÇALVES, 2000).

Quanto ao agente, caracterizam-se em: a) personalíssimos (intuitu personae) e impessoais; b) individuais e coletivos. No que concerne ao modo por que existem podem assim ser classificados em principais, acessórios e derivados ou subcontratos. Ainda, atinente à forma, podem ser: a) solenes (ou formais) e não solenes; b) consensuais ou reais. O objeto, a seu turno, pode ser em preliminares (pactum de contrahendo) e definitivos. Por fim, em relação às modalidades de contratos, resta explicitar no que concerne à designação, os quais podem ser tanto nominados (típicos), quanto inominados (atípicos), mistos ou coligados. Inicialmente, importante esclarecer, nominados são aqueles que tem designação própria, ao passo que inominados são os que não tem. Típicos são os regulados pela lei e atípicos os que resultam de um acordo de vontades não tendo, contudo, com requisitos definidos e regulamentados no ordenamento jurídico. Contratos mistos resultam da combinação de um contrato típico juntamente de cláusulas criadas pela vontade dos contratantes, constituindo-se, pois, em um contrato único. Contratos coligados seriam vários contratos celebrados pelas partes e interligados entre si. A coligação passa a existir quando a reunião é feita com dependência, isto é, com um contrato relacionado com outro, por se referirem a um negócio complexo. Contudo e apesar disso, conservam sua individualidade (GONÇALVES, 2000).

Nessa linha, relatado breve esboço da classificação dos contratos, imprescindível ater-se na modalidade objeto de estudo, qual seja, o contrato de locação, foco do próximo tópico.

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Dos Contratos em Espécie: o Contrato de Locação

No direito romano, vários contratos foram abrangidos pela denominação de locatio conductio, que se subdividia em três modalidades: a locatio rei – locação de coisas, a locatio operis faciendi – locação de obra ou empreitada, e, a locatio operarum – locação de serviços. Todavia, conforme ensina Wald (2004), a evolução do direito alterou a classificação romana de modo que os Códigos mais recentes passaram a disciplinar o contrato de prestação de serviços, de empreitada, dentre outros, como figuras autônomas, de forma que a locação passou a ficar restrita à de coisas, vindo a ter, para os imóveis, um regime especial.

Assim, locação de coisas, segundo o artigo 565 do Código Civil é contrato pelo qual uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e o gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição. A parte que cede o uso e gozo diz-se locador, senhorio ou arrendador; a que recebe a coisa chama-se locatário, inquilino ou arrendatário. Nessa senda, verifica-se que há três elementos fundamentais para que se configure a locação de coisas: o objeto, o preço e o consentimento (GONÇALVES, 2000).

Prates (2004), vai ao encontro ao conceito mencionado por Gonçalves. Não obstante, chama a atenção sobre outros elementos, como em relação à capacidade das partes, as quais devem ser capazes. No que diz respeito à forma do contrato, não sendo este do tipo solene, pode ser convencionado por escrito ou verbalmente. Entretanto, há situações que exigem sua feitura por escrito, como no caso da Lei do Inquilinato, em relação aos contratos por ela regidos, bem como no que diz respeito à fiança, uma das modalidades de garantia nas locações, a qual não admite forma verbal. Isto, contudo, é o que dispõe o Código Civil brasileiro quanto à locação de prédio, diferenciando-se, todavia, da locação urbana, regida esta pela Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, ou seja, a Lei do Inquilinato.

A Lei do Inquilinato, portanto, dispõe sobre a locação de imóveis urbanos, de maneira que ficam fora de seu âmbito, aqueles destinados à exploração agrícola ou pecuária, bem como os imóveis rústicos. Na verdade, consoante Prates (2004), o que distingue os dois tipos de locação é a destinação, e não a sua localização. Deste modo, ainda que o imóvel se situe em zona rural, se a sua destinação for para fins residenciais, deve ser enquadrado como imóvel urbano, haja vista que as locações de imóveis rústicos, também denominada de arrendamento rural, está disciplinada no Estatuto da Terra. Além disso, a dita lei, igualmente, enumerou casos de locação por ela não abrangidos, mas sim, pelo novo Código Civil.

No entanto, o contrato de locação em si, mais precisamente o regulado pela lei supra mencionada, é que requer atenção em razão do tema principal deste trabalho. Assim, far-se-á um estudo genérico e sistemático deste, com ênfase especial sobre os elementos básicos de sua estrutura.

Segundo Venosa (2001), em geral, o contrato de locação é bilateral, oneroso, comutativo, típico, geralmente consensual, não formal e de trato sucessivo. É bilateral em razão dele se originarem as obrigações para ambas as partes, visto que ambos contratantes têm obrigações e deveres. Oneroso, porque não há locação gratuita, haja vista que, se houvesse, estaria caracterizando não um contrato de locação, mas sim de comodato. Ademais, no contrato locatício, a carga contratual está repartida entre as partes, muito embora nem sempre em igual nível. O contrato também define-se como comutativo em virtude das prestações das partes contratantes serem de plano conhecidas. É típico porque é a forma contratual plenamente disciplinada em lei. Além disso, ainda em relação a sua conceituação, em sua origem, é consensual, em razão de se perfazer pelo simples consentimento das partes, seja formal ou não. Ainda, cumpre dizer que não dependendo de forma preestabelecida, é contrato não formal.

Venosa (2001) ainda leciona que o contrato locatício é de execução sucessiva em decorrência de as relações das partes se desenvolverem por um tempo mais ou menos longo devido à própria natureza da avença. Importa observar que, no tocante ao prazo, repisa-se, pode ser tanto determinado quanto indeterminado, tornando-se o primeiro em indeterminado, caso o inquilino permaneça no imóvel após findo o prazo contratual . Importa frisar que há necessidade de se dar notícia à outra parte da intenção do contratante em terminar a vigência da avença nos contratos a prazo indeterminado, fazendo-o através da denúncia. Contudo, em havendo interesse de se dar continuidade ao contrato, ocorrerá a prorrogação, vindo esta a ser tácita, se continuarem os contratantes a cumprir o contrato sem qualquer manifestação de vontade específica, ou, expressa, quando da realização de um aditamento ao contrato, de modo a ocorrer uma renovação, caso as partes agreguem novas cláusulas, ou, uma recondução, se mantiverem-se as mesmas condições inicialmente pactuadas.

Destarte, mister esclarecer que o contrato de locação, como instrumento jurídico bilateral, envolve obrigações tanto para o locador (dar o uso e gozo da coisa, bem como garantir a utilização, mansa e pacífica do imóvel ao locatário), quanto para o locatário (pagar o aluguel convencionado, zelando pelo bom uso da coisa locada). No tocante ao locatário, a principal obrigação que lhe acarreta é, sem dúvida, o oferecimento de alguma garantia que assegure o cumprimento do contrato principal. Assim, diga-se que este oferecimento ao proprietário do imóvel ocorre através de quatro tipos de modalidades de garantias, as quais serão discutidas na sequência.

As Garantias do Contrato Locatício

As obrigações de garantia, conforme Venosa (2001), são uma terceira modalidade de obrigação, ao lado das obrigações de meio e de resultado. O conteúdo da garantia, sempre a serviço de outra obrigação, é eliminar um risco que pesa sobre o credor. Trata-se, pois, de obrigação acessória à principal de modo que a noção de segurança se mostra então ligada à noção de garantia do cumprimento de obrigação.

Diante deste cenário, visando a assegurar maior efetividade ao pacto, o legislador criou formas de garantias. Assim, a atual Lei do Inquilinato admitiu quatro modalidades de garantia no contrato locatício, quais sejam, a caução, a fiança, seguro de fiança locatícia e a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, vedando a lei a utilização de mais de uma espécie em um mesmo contrato. Cada espécie de garantia possui características próprias e requisitos legais, que devem ser obedecidos pelas partes sob pena de terem a sua validade contestada em juízo. Contudo, oportuno dizer que a Lei 8.245/91, em seu artigo 42, facultou a possibilidade de cobrança antecipada de aluguel até o sexto dia útil do mês vincendo, caso nenhuma garantia houver sido oferecida contratualmente. Na prática, todavia, não é o que acontece. Trata-se, a bem da verdade, de exceção que só encontra paralelo no caso de locação para temporada (PRATES, 2004).

Convém ainda observar que, relativamente à garantia oferecida, entendeu o legislador que

esta somente estaria dispensada após o término do contrato, se estendendo, portanto, até a efetiva entrega das chaves, ou melhor dizendo, quando da devolução do imóvel, ressalvada disposição contratual em contrário. Contudo, em alguns casos, como na fiança, por exemplo, a priori, poderia o fiador pleitear sua exoneração antes da entrega do imóvel, amigável ou judicialmente, nos contratos de locação por prazo indeterminado, por força do artigo 835  do Código Civil. Entretanto, na prática, tal possibilidade torna-se inviável, haja vista que conforme reza a redação do artigo 2.036  do mesmo diploma legal, a locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida, de maneira que, consequentemente, permanece a competência da lei inquilinária, vigorando a garantia até a efetiva e cabal entrega das chaves. Por derradeiro, como não poderia deixar de ser, previu o legislador a substituição da garantia, em casos especiais, todas elas elencadas no artigo 40 da referida lei (PRATES, 2004).

Ademais, consoante Venosa (2001), sendo o contrato de locação um contrato dirigido, os instrumentos que garantem seu cumprimento e protegem o locador do inadimplemento também o são. Tais formas de garantias são muito importantes para o contrato de locação, tanto que, na prática, salvo exceções, o próprio nascimento do contrato de locação é subordinado à apresentação e aceitação das garantias oferecidas pelo locatário. Assim, a caução real, a fiança e a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, podem vir disciplinadas no próprio contrato ou em instrumentos à parte, ao passo que o seguro de fiança locatícia, ainda que referido no contrato, somente em contrato autônomo. Não obstante, necessária uma abordagem individual, e com maiores detalhes, de cada uma das modalidades de garantia nos contratos de locação.

Quanto à caução, é uma garantia especial dada ao cumprimento da obrigação. É uma obrigação acessória, assim como as demais modalidades, de modo que segue a sorte da principal. Nos dizeres de Venosa (2001), caução é qualquer garantia para a realização de um direito. No que interessa às obrigações, a caução é uma garantia que se apõe ao cumprimento das obrigações e a garantia geral para o cumprimento das obrigações é o patrimônio de devedor, de forma genérica. Quando, por vontade da lei ou por vontade das partes, há necessidade de um reforço maior a essa garantia genérica, as partes recorrem à caução. Para que se estabeleça uma caução, há necessidade de uma manifestação de vontade e, no campo das locações, essa caução depende da concordância do locador. Por sua vez, quando a lei diz que as garantias locatícias podem se constituir de caução, fiança, seguro de fiança e cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, está utilizando o termo caução apenas em uma de suas acepções, qual seja, a caução real do preceito do artigo 38. No entanto, constituem-se cauções quaisquer formas de garantia, seja reais (penhor, hipoteca), ou pessoais (fiança).

Nesse passo, de acordo com a Lei 8.245/91, caução é a garantia real através da qual são destinadas coisas para assegurar o cumprimento da obrigação, haja vista que o artigo 38, da lei acima mencionada, determina que tal garantia poderá ser oferecida em bens móveis, imóveis, em dinheiro e em títulos e ações, dependendo, contudo, para sua validade, ser levada a registro público para o efeito contra terceiros. No caso de caução de bens móveis, deverá o instrumento respectivo ser registrado no Cartório de Títulos e Documentos, ao passo que a garantia de imóveis, averbada à margem da matrícula do imóvel, no Cartório de Registro de Imóveis, a fim de valer contra terceiros, e, como forma de não ser possível alegar ignorância sobre o fato. A caução em dinheiro, por sua vez, deverá ser depositada em caderneta de poupança, devidamente autorizada pelo órgão público competente, revertendo em favor do inquilino as vantagens financeiras dela decorrentes, sempre limitadas ao montante de três meses de aluguel. Já, no caso de caução em títulos e ações, a mesma deve atender às mesmas regras do depósito em dinheiro. Caso ocorra a falência, concordata ou liquidação das sociedades emissoras dos títulos caucionados, a garantia deverá ser substituída no prazo de trinta dias, entendendo-se que esta medida atende à efetividade da garantia assegurada ao locador (PRATES, 2004).

Outra figura de garantia colocada à disposição do locador é o seguro de fiança locatícia, atualmente disciplinado pela Circular nº 01, de 14 de janeiro de 1992, pela Superintendência de Seguros Privados – Susep. Consoante Prates (2004), representa um significativo avanço no direito que rege as locações prediais urbanas, visto que tal modalidade tem inegável alcance social, já que vem amparar as classes menos favorecidas, que encontram grandes dificuldades para conseguir fiadores, proprietários de imóveis, normalmente exigidos pelas empresas imobiliárias.

Segundo Barbi (2001), o seguro tem como beneficiário o locador e visa a garanti-lo de prejuízos sofridos pelo inadimplemento do contrato. Seu prazo de validade é de um ano, podendo haver renovação do mesmo. Além disso, conforme leciona Venosa (2001), a seguradora se compromete a cumprir as obrigações do locatário, na falta de cumprimento por este. Não obstante, necessário observar que a Resolução nº 14/79, do Conselho de Seguros Privados, que regulava o seguro locatício, restringia a garantia da apólice apenas à falta de pagamento dos aluguéis e encargos, bem como o reembolso de custas judiciais e honorários advocatícios. Agora, por disposição expressa do artigo 41  da Lei 8.245/91, o seguro de fiança locatícia deve necessariamente abranger a totalidade das obrigações do locatário, eliminando, talvez, o maior entrave da aceitação dessa garantia. Nesse contexto, é, de fato, a modalidade de garantia que vem tendo grande aceitação, notadamente, para atender às circunstâncias de pessoas que vão morar em outra cidade e não têm conhecidos, amigos ou parentes no local que possam lhe servir de fiadores. Além disso, evita, igualmente, o constrangimento de solicitar fiança a terceiros, que, se aceita, normalmente, é dada com certa relutância.

No que toca à cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, é esta modalidade de garantia locatícia uma novidade, haja vista recentemente incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, e que, por corolário, não alcançou, ainda, maior repercussão na doutrina. Introduzida pela Lei 11.196, de 21 de novembro de 2005, conhecida como antiga “Medida Provisória do Bem”, tem o intuito de ofertar fundo de investimento do locatário para o locador, visto que, na cessão fiduciária, quotas de investimento são cedidas como garantia ao locador no caso de inadimplemento contratual. Além disso, consoante o caput do artigo 88 da lei citada supra, ficam instituições, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, ao exercício da administração de carteira de títulos e valores mobiliários, bem como autorizadas a constituir fundos de investimento que permitam a cessão de suas quotas em garantia de locação imobiliária.

Segundo Ferreira (2003), para operacionalizar esta garantia, deverão as partes formalizar, mediante registro perante o administrador do fundo, pelo titular das quotas (por meio de cessão fiduciária, acompanhada de uma via do contrato de locação) propriedade resolúvel das quotas, em favor do credor fiduciário. Quanto ao contrato de locação, este obrigatoriamente fará menção, em uma de suas cláusulas, à existência e condição da cessão fiduciária, inclusive no que toca a sua vigência, a qual poderá ser por prazo determinado ou indeterminado.

Outra forma de garantia oferecida, acentua Barbi (2001), é a fiança, modalidade de garantia mais utilizada na área de locação. A grosso modo, pode-se resumi-la, ainda que muito superficialmente, da seguinte forma: trata-se de um contrato acessório que, em consequência, igualmente segue o destino do principal, de sorte que uma vez anulado este, anula-se a fiança. É uma forma peculiar de contrato, pelo qual um terceiro, garante o contrato, derivando, geralmente, das relações de amizade. Entretanto, em razão de tal modalidade ser alvo de destaque neste trabalho, imprescindível um estudo um pouco mais aprofundando concernente a este instituto, de modo a elucidar, efetivamente, esta garantia – o que ocorrerá no próximo item.

O Contrato de Fiança e a figura do Fiador

Conforme se extrai das Sagradas Escrituras, no Livro de Provérbios, no capítulo 6, versículos 1-3, consoante Carli (2009), já era possível visualizar o instituto da fiança na Antiguidade, tendo como referência não somente a Bíblia mas, inclusive, as escrituras romanas, consubstanciadas na Lei das Doze Tábuas. No direito romano, a expressão cautio significava todas as garantias que o devedor podia dispor, como a fidejussio, a pecuniae, credentiae, as quais vieram a se subsumir no instituto da fiança que, naquele tempo, era constituída verbalmente. No sistema normativo brasileiro, contudo, as garantias se subdividem em reais e pessoais. Nas pessoais, ou fidejussórias, destaca-se a fiança, consubstanciada em um contrato unilateral, acessório e, em regra, gratuito, por meio do qual uma pessoa assume, perante um credor, a obrigação de pagar a dívida de um terceiro. Normalmente, a fiança ocorre por pressão de ordem sentimental em virtude de laços de amizade ou parentesco com o afiançado.

Sua definição é dada pela redação do artigo 818 do Código Civil, o qual prevê que “Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”. Para sua validade, ela deve  ser formalizada, por escrito, não admitindo interpretação extensiva, de forma que o fiador só responde pelo que declarou na avença pactuada. Sua característica principal reside no fato de ser um contrato acessório, dependendo, para tanto, da existência de contrato principal, que no caso telado, seria o de locação. Via de regra, consta como cláusula do contrato de locação, nada impedindo, não obstante, seja contratada separadamente, como é o caso das cartas de fiança (PRATES, 2004).

Assim, com base em Venosa (2001), garantia pessoal que é, assegura o cumprimento das obrigações do locatário, o verdadeiro devedor. Aqui, é o caso típico em que se dissociam os dois elementos clássicos da obrigação: o débito e a responsabilidade. No contrato de fiança, somente existe a responsabilidade, porque o débito não pertence ao fiador, mas sim, ao afiançado. O fiador responde desde eventual deficiência do locatário no cumprimento do contrato principal até sua total inadimplência. Na verdade, o fiador não cria uma obrigação nova, mas estende a si a obrigação do afiançado, podendo esta obrigação ser total ou limitada, como observa Barbi (2001). Contudo, sua responsabilidade é subsidiária, visto que, em caso de inadimplência do inquilino, o locador deve cobrar os aluguéis, em um primeiro momento, do locatário, que é o real devedor, muito embora geralmente as partes pactuem a solidariedade entre locatário e fiador, colocando ambos em pé de igualdade. No entanto, caso a sua execução preceda a do inquilino, poderá o fiador alegar o chamado benefício de ordem, caso não o tenha renunciado quando da assinatura do contrato, visto que, na maioria das vezes, os contratos de locação preveem a renúncia do fiador ao benefício, invocando para tanto o artigo 828, caput, inciso I, do Código Civil  (PRATES, 2004).

A fiança, como dito alhures, tem caráter acessório e subsidiário, pois depende da existência do contrato principal e tem sua execução subordinada ao não-cumprimento deste pelo devedor. Uma vez nula a obrigação principal, a fiança desaparece. Além disso, em virtude do caráter de subsidiariedade, consoante Orlando Gomes, citado por Carli (2009), deve ser, necessariamente, este contrato acordado por escrito. Assim, por ter caráter acessório, a fiança pode ser de valor inferior e contraída em condições menos onerosas do que a obrigação principal, porquanto que o acessório não pode exceder ao principal (GONÇALVES, 2000).

No contrato de fiança locatícia, o qual, normalmente, já vem atrelado ao contrato de locação, estipula-se a responsabilidade ao fiador até a efetiva entrega das chaves, o que caracteriza, por si só, cláusula leonina, porquanto que o fiador poderá ter que responder por obrigação que exceda o prazo inicial do contrato a que anuiu expressamente, visto que, na maioria da vezes, o fiador ao assinar o contrato, sequer tem consciência das consequências jurídicas de seus atos, os quais repercutirão diretamente em sua vida concreta. De fato, a defesa da fiança não pode prejudicar aquele que a duras penas, conseguiu alcançar o sonho da casa própria, e que, de noite para o dia, se vê desalojado (CARLI, 2009).

Todavia, a fiança ainda apresenta outras características. É um contrato unilateral, por gerar obrigação, depois de ultimado, unicamente para o fiador; solene, por depender de forma escrita, por instrumento público ou particular, no próprio corpo do contrato, ou em separado; gratuito, em regra, visto que o fiador ajuda o afiançado, nada recebendo em troca, podendo, contudo, assumir caráter oneroso no caso de fiança bancária, isto é, quando o afiançado remunera o fiador pela fiança prestada. Além disso, sendo contrato benéfico, não admite interpretação extensiva, de modo a impedir a ampliação das obrigações do fiador, quer no tocante à sua extensão, quer no tocante à sua duração, uma vez que, ressalta-se, o contrato de locação não pode ser alterado sem a participação do fiador, nem mesmo efetuado acordo ou dilação de prazo de vencimento dos aluguéis sem a sua prévia ciência e concordância, ensejando, em tais hipóteses, a possibilidade de pleitear a sua exoneração como garante contratual. É, por fim, contrato personalíssimo, haja vista que, celebrado em virtude da confiança que o fiador merece (GONÇALVES, 2000).

Em relação a suas espécies e seus requisitos, importa dizer que a fiança, quanto a sua forma, pode ser convencional, legal ou judicial. A primeira resulta do acordo de ambas as partes. A segunda é imposta por lei, e, a terceira, determinada pelo juiz. Classifica-se ainda em civil, comercial, criminal e bancária, de acordo com a natureza da obrigação que vise a garantir. No que concerne à fiança civil, a seu turno, origina-se ela de uma relação jurídica contratual, estabelecida entre o credor de uma obrigação e um sujeito garantidor, o qual, com seu patrimônio pessoal, garante eventual hipótese de descumprimento de uma prestação principal pelo devedor. Na realidade, o contrato de fiança, sob a perspectiva econômica, consubstancia-se em um contrato de prevenção de riscos (CARLI, 2009).

No que diz respeito à capacidade do fiador, é genérica, visto que podem ser fiadores todas as pessoas que tenham a livre disposição de seus bens, ficando afastadas, contudo, os incapazes em geral. Ainda, cumpre dizer que, não tendo sido limitada a garantia, estende-se ela a todos os acessórios da dívida principal, inclusive às despesas judiciais desde a citação do fiador. Há que referir ainda, a figura da subfiança, onde alguém, denominado de abonador, garante a obrigação do fiador, de maneira que este será acionado somente em caso de inadimplemento do devedor e do fiador (GONÇALVES, 2000).

Em relação a seus efeitos, destaca-se, nas relações entre o credor e o fiador, o benefício de ordem ou o benefício de excussão. No primeiro, pode o fiador, quando demandado, indicar bens do devedor, livres e desembaraçados, que sejam suficientes para saldar o débito, a fim de evitar a excussão de seus próprios, porquanto ser sua obrigação acessória e subsidiária. Tal benefício consiste, portanto, no direito de exigir que sejam primeiramente excutidos os bens do devedor. Todavia, o benefício de ordem não poderá ser invocado, caso o fiador tenha renunciado ao mesmo expressamente, entre outras hipóteses elencadas no Código Civil. Defende-se, no entanto, consoante magistério de Carli (2009), entendimento contrário por duas razões: a primeira refere-se ao fato de que o dispositivo do artigo 828 do Código Civil, ora utilizado como fundamento, não está em perfeita harmonia com a Carta de 1988, quando o interesse em jogo é o patrimônio mínimo do fiador. A segunda, porque, em se tratando de ato de liberalidade, em regra, sem qualquer vantagem pecuniária, deve o contrato de fiança ser interpretado restritivamente, bem como conter cláusulas objetivas que deixem expressamente claras as possíveis consequências decorrentes da assinatura do referido ajuste, como, sobretudo, a possibilidade de seu único imóvel responder pela dívida do devedor-locatário.

Nessa senda, aponta Genacéia da Silva Alberton, citada por Carli (2009), os contratos de locação são verdadeiros contratos por adesão, com termos já impressos, padronizados, onde o fiador assina, abre mão do benefício de ordem, assume obrigação de forma solidária e não tem expressa a advertência de que seu imóvel residencial está sujeito à garantia da dívida que eventualmente ocorra por inadimplemento do afiançado / locatário. Observa-se que a violação ao princípio da igualdade é evidente na relação jurídica locatícia, envolvendo fiança pessoal. Basta examinar a posição do locatário, devedor da obrigação decorrente do contrato de locação, e do fiador, que, repisa-se, em um ato de solidariedade, assume posição de garantidor do referido contrato. O absurdo ocorre quando da inadimplência do devedor, em que o bem do fiador torna-se objeto de penhora e, posteriormente, objeto de execução. Enquanto isso, eventual bem do locatário, caso este possua algum bem, não será objeto de constrição, por ser protegido pela Lei 8.009/90, imune à penhora por dívida de natureza civil. Além disso, o locador, a seu turno, continuará em sua confortável casa, e, seu imóvel, objeto de locação, também continuará em seu acervo patrimonial, vindo a ser novamente locado, enquanto o fiador e sua família estarão à mercê de sua própria sorte e possibilidades econômicas.

Professa-se, nesse contexto, que no contrato de fiança locatícia não há pleno exercício da autonomia da vontade por parte do fiador, visto que sequer tem a possibilidade de discutir as cláusulas do contrato, assinando-o sem saber que, ao celebrar tal negócio jurídico, estará assumindo uma posição desvantajosa e significativamente onerosa. Trata-se, por evidente, de um flagrante desequilíbrio contratual. Nesse diapasão, levando-se em consideração o direito humano fundamental à moradia, impossível colocar no mesmo patamar, como argumentado alhures, o referido direito com o direito de crédito, posto estar-se sopesando valores axiologicamente distintos. Desta feita, qualquer obrigação a que tenha se vinculado o fiador, só poderá alcançar, repisa-se, seu patrimônio excedente, ou seja, aquele que esteja fora da esfera da garantia do mínimo existencial, não podendo atingir, portanto, o bem de família em que mora com sua família (CARLI, 2009).

Assim, com inspiração nas ideias de Enzo Roppo, citado por Carli (2009), depreende-se que o contrato de fiança deve ser interpretado à luz da realidade, considerando-se, sempre, as peculiaridades de cada situação. Cabe lembrar e ressaltar que os contratos são regidos por uma premissa fundamental, qual seja, a sua função social, que configura preceito de ordem pública. Nessa trilha é que buscou demonstrar-se, pelos argumentos esboçados, que a impenhorabilidade do bem de família em geral, e em especial do fiador, desempenha funções importantes, tais como a de garantir o patrimônio mínimo de uma existência digna, de servir de instrumento de proteção ao direito humano fundamental à moradia, e, tutelar o princípio-base da Constituição, qual seja, a dignidade da pessoa humana.

Em relação ao segundo efeito, qual seja, o benefício de excussão ou de divisão, afasta ele a solidariedade, tornando divisível a obrigação. Portanto, assim como o fiador pode limitar a garantia a uma parte da dívida somente, admite-se, também, em sendo vários garantes, que cada qual especifique no contrato, a parte da dívida que toma sob a sua responsabilidade, de modo a não ser obrigado a mais que se obrigou. Entretanto, o fiador que pagar integralmente, ficará sub-rogado nos direitos do credor, com todos os privilégios e garantias que este desfrutava, podendo demandar cada um dos outros fiadores, contudo, somente pela respectiva quota. Ainda, cumpre dizer que nas relações entre fiador e afiançado, observa-se que pode o primeiro, sub-rogando-se nos direito do credor, exigir deste último, o que pagou acrescido de juros, perdas e danos que sofreu em razão da fiança (GONÇALVES, 2000).

E, a propósito, mister expor, mais uma vez, a questão da exoneração do garante. Diga-se que este é um ponto que ainda acirra os ânimos dos doutrinadores e acentua o dissenso da jurisprudência, uma vez que, para alguns, há conflito entre a regra insculpida no artigo 39[5] da Lei 8.245/91 e o artigo 835[6] do Código Civil. Não obstante, verifica-se que dissenso de fato não há, haja vista que, em razão do artigo 2.036  do novel civilista e do princípio da especialidade, deve prevalecer o primeiro (CARLI, 2009).

Por fim, como um ciclo, a fiança também se extingue. Uma das causas seria a morte do fiador, passando, contudo, a obrigação para seus herdeiros, limitada até as forças da herança no tocante aos débitos existentes até o momento do falecimento, ao passo que a do afiançado permanece. Além disso, a fiança extingue-se igualmente por atos praticados pelo credor, como, por exemplo, a dilação do prazo contratual ao devedor sem o consentimento do fiador, ainda que este seja solidário (GONÇALVES, 2000).

Por todo o exposto, observa-se que, muito embora o contrato faça lei entre as partes, a lembrar da máxima romana pacta sunt servanda, vem ocorrendo, gradativamente, a bem da verdade, uma intervenção por parte do Estado, através de um dirigismo contratual, na efetiva intenção de evitar abusos e discrepâncias sob o manto de uma pretensa legalidade. Diante deste cenário, prima-se não somente que o contrato se cumpra e realize o ajuste convencionado entre as partes, mas, sobretudo, que seus efeitos se reflitam de forma ética e solidária na sociedade – e isto acontece simplesmente observando-se a função social dos contratos .

A Função Social dos Contratos e a Garantia do Patrimônio Mínimo

A função social, tal qual no Código Civil, consiste numa norma estrutural da autonomia privada no plano do direito contratual, exigindo, contudo, que corresponda ao interesse social, consoante assevera Branco (2009).

Antes, contudo, diga-se que o contrato, figura histórica na evolução da humanidade constitui-se em instrumento ideal para a realização e concretização dos princípios da liberdade e da igualdade, paradigmas dos movimentos revolucionários que findaram com o regime absolutista na França e a submissão das treze colônias americanas em relação ao império britânico. Os homens desta nova era, eram considerados livres e iguais, havendo, contudo, preponderância da autonomia da vontade e a consequente restrição da intervenção estatal na esfera de liberdade dos indivíduos, o que acabaria por gerar um desequilíbrio contratual. Assim, a partir da segunda metade do Século XIX, com a ocorrência de diversos movimentos sociais, especialmente em relação às questões decorrentes das relações contratuais, gerou a necessidade de relativizar-se a força do princípio da autonomia da vontade. Por corolário, desenvolveu-se uma nova teoria contratual, tendo a nova concepção de contrato uma concepção social, considerando-se não somente os efeitos causados entre as partes, mas, principalmente, seus efeitos na sociedade. O direito despediu-se de um caráter exclusivamente individualista para conjugar o interesse individual com o bem comum (AINA, 2002).

Assim, o direito civil começa a superar o individualismo exacerbado, deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. Em nome da solidariedade social  e da função social de instituições como a propriedade e o contrato, o Estado começa a interferir nas relações particulares, mediante a introdução de normas de ordem pública. É a fase do dirigismo contratual que consolida a publicização do direito privado. Desta feita, qualquer interpretação das normas jurídicas deve levar em conta a realidade concreta, no sentido de harmonizar o “dever-ser” da norma com o “ser-real” da vida. Nesse contexto, a autonomia privada que, por muito tempo foi alçada ao patamar de princípio regedor das relações privadas, só merece proteção, se estiver envolvida sob o manto de um valor constitucional, de maneira que a solução interpretativa do caso concreto só se afigura legítima se compatível com a legalidade constitucional (CARLI, 2009).

Nessa senda, conforme preleciona Renan Lotufo, citado por Carli (2009), com o advento da Constituição de 1988, ocorreu um choque de perplexidade na doutrina e na jurisprudência por passar a disciplinar diretamente matérias que até então eram de exclusivo tratamento pela lei ordinária, mais precisamente, pelo Código Civil. Nesse viés, diga-se que a constitucionalização do direito civil deve ser analisada sob duas perspectivas: a formal e a material. A primeira relaciona-se com o fato de que a Constituição Federal passou a tratar de temas que antes eram da órbita privada, e, a segunda, a material, vincula-se a idéia de que a Carta de 1988 é o vértice-legitimador de todas as regras do direito civil, de forma que sua visão clássica vem passando por um processo de superação, dando lugar à interpretação do direito público no direito privado, representando um significativo avanço para a efetivação do exercício de cidadania.

Nessa linha humanista, além da função social, outros princípios vêm norteando o novo ordenamento jurídico civilista, como no caso do princípio da eticidade – visando a corrigir o caráter individualista do atual Código, o princípio da socialidade – segundo o qual, o interesse privado deve se coadunar com o interesse social, o princípio do equilíbrio econômico dos contratos e, por fim, o princípio da judicialidade, que resume a idéia de que a atuação do juiz deve adequar-se ao ordenamento jurídico e aos valores sociais. Assim sendo, diante deste cenário, cabe refletir acerca da necessidade de harmonizar as regras contratuais, que disciplinam as relações locatícias, bem como suas acessórias, no sentido de evitar discrepâncias como aquelas que dão prevalência ao direito de crédito, em detrimento ao direito à moradia da pessoa que serviu de garante de uma locação (CARLI, 2009).

Nessa perspectiva, a funcionalização dos contratos impõem às relações jurídicas limites norteadores pelo direitos humanos fundamentais. Diante de tal afirmação, é possível reconhecer que a visão clássica de relação jurídica passa por um processo de releitura constitucional. O princípio da autonomia da vontade encontrou limite no denominado dirigismo contratual. A máxima romana pacta sunt servanda também teve sua força atenuada diante do surgimento de institutos como o da lesão, do estado de perigo e o da resolução do contrato por onerosidade excessiva, corolário do princípio da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana (CARLI, 2009).

Nesse contexto, de acordo com Carli (2009), numa relação contratual, subsumida em um tipo de contrato, deve-se primar pela justiça, consubstanciada na máxima de agir conforme os ditames da lealdade, da eticidade, da probidade, da solidariedade e da igualdade substancial. Desta forma, a relação jurídico-contratual não só estará cumprindo a sua função social, como consagrando a dignidade da pessoa humana. Na esteira desse entendimento, reconhece-se, na hipótese de conflito entre o direito humano fundamental à moradia do fiador e o direito de crédito do locador, é indiscutível que deve preponderar aquele, visto garantir o teto do fiador, bem como de sua família. Assim, a função social do contrato, sob a ótica sociológica, consiste em colocar o contrato a serviço da construção da dignidade do homem, da eliminação da miséria, das desigualdades sociais e da melhor distribuição de renda.

Na verdade, as ideias de humanização do direito, conforme leciona Carli (2009), embora ainda distantes da realidade fática, mas insistentemente defendido no plano ideal, têm contribuído sobremaneira para a evolução das regras civilistas, bem como para a positivação infraconstitucional de princípios como a função social dos contratos e a boa-fé objetiva. É neste contexto que se insere o contrato de fiança e que defende-se o patrimônio mínimo do fiador, garante do contrato locatício que, em um momento importante da vida do locatário-afiançado, estendeu-lhe a mão, não somente por amizade, mas por acreditar que nenhum mal lhe viria e tão pouco que aquele lhe deixaria à mercê da própria sorte. Nesse passo, em honra aos princípios da eticidade, da solidariedade, da igualdade, os quais consubstanciam o princípio da função social do contrato, deve-se resguardar o único bem de família do fiador e de sua família por ser assim considerado patrimônio mínimo e, por derradeiro, materializar o direito humano fundamental à moradia, o qual deve, inquestionavelmente, sempre prevalecer sobre o direito de crédito.

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Sobre a autora
Rosilene A. D. Weissheimer

Advogada Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp / Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Univates.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEISSHEIMER, Rosilene A. D.. Penhora do Bem de Família do Fiador Locatício: (In)Constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4231, 31 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35831. Acesso em: 4 mai. 2024.

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