Responsabilidade civil médica:obrigação de meio x obrigação de resultado

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19/02/2015 às 13:12

Resumo:


  • A responsabilidade civil do médico é subjetiva e exige a comprovação de culpa para o dever de indenizar, o que se contrapõe à ideia de culpa presumida em certas especialidades médicas.

  • Princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, devem ser considerados na interpretação do direito médico, evitando-se uma visão meramente sentimentalista que prejudique a segurança jurídica e os direitos do profissional.

  • A importação de teorias estrangeiras desatualizadas, como a distinção entre obrigações de meio e de resultado, pode ser inadequada para o contexto brasileiro e deve ser revista à luz da evolução da medicina e do direito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Entender que a obrigação do médico seria de resultado, é julgá-lo como Deus, ora, responsabilizar um médico pelas reações orgânicas de um corpo humano é extremar sua responsabilidade, ignorando a falibilidade da própria medicina e do próprio profissional

            A responsabilidade civil não é contemporânea, desde a antiguidade se buscava em um ideário de justiça a responsabilização do agente por seus atos danosos, e assim, ocorria com os médicos. Porém a responsabilidade civil passou por crescente evolução até as formas de responsabilização que conhecemos hoje.

            Para gerar o dever de reparação são necessários alguns requisitos indispensáveis, como a conduta contrária a um dever jurídico (ato ilícito) que é a causa (nexo causal) do dano (prejuízo de outrem). A responsabilidade do médico é subjetiva, ou seja, são necessários os seguintes elementos para ensejar o dever de reparação: Conduta ilícita e Culposa; Nexo causal; Dano. Elementos indispensáveis para caracterização da responsabilidade civil.

                        O Código Civil Brasileiro tipificou a responsabilidade dos médicos e demais profissionais da saúde em seus artigos, como segue:

         Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

          Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.

            A obrigação médica é de meio, pois o médico se obriga a atuar conforme a "lex artis", zelo, prudência e cuidado, para obter o resultado/cura, mas não se obriga a obtê-lo. Mas há algumas jurisprudências tendentes a elencarem algumas especialidades médicas como obrigações de resultado.

           

1. OBRIGAÇÃO MÉDICA

            Regra geral a maioria da doutrina cita como contratual a responsabilidade do médico, a distinção entre contratual e extracontratual reflete no aspecto processual em relação ao ônus de prova. Porém tal diferenciação não traz maiores consequências ao direito médico. Pois como a responsabilidade é subjetiva e a obrigação de meio, o ônus de comprovação da culpa recai ao lesado.

            O motivo dessa controvérsia é esclarecido por José de Aguiar Dias, ao reproduzir o pensamento de Savatier,

...a prova, na responsabilidade civil contratual, recai sobre o devedor ou sobre o credor, conforme se trate de obrigação de meio ou de resultado. Assim aconteceu com o transporte, a cujo propósito, antigamente, se exigia, do viajante, a prova da culpa do transportador. Se hoje, ao contrário, se exige do último a prova de que não pode ser responsabilizado, não é porque se negasse, até então, o caráter contratual das relações entre eles, mas porque, antigamente, o contrato de transporte não se encarava como obrigação de resultado. Assim, a responsabilidade contratual pode ou não ser presumida, conforme se tenha o devedor comprometido a um resultado determinado ou a simplesmente conduzir-se de certa forma. É o que sucede na responsabilidade do médico, que não se compromete a curar, mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão. [1]

            O médico, regra geral, possui obrigação contratual com o paciente, a relação contratual é um processo estruturada sobre dois pólos ligados por direitos e deveres inter-relacionados. A noção obrigacional precisa vir acompanhada de um noção de obrigação complexa, na qual seja possível visualizar:

...além dos deveres de prestação e dos correspectivos direitos de crédito, outros deveres de conduta, direitos potestativos (direitos formativos e direitos de exceção), estado de sujeição, ônus jurídico, expectativas, tudo sendo articulado em vista do concreto dinamismo do vínculo[2].

            A obrigação médica deve ser vista como um processo. Contudo esta ainda apresenta mais uma peculiaridade. Há pela doutrina e jurisprudência a distinção das obrigações médicas entre de meios e de resultados. Esta distinção reflete na distribuição da carga probatória nas ações de responsabilidade civil.

            Pablo Rentería acrescenta magistralmente

Inicialmente sustentou-se que o critério de classificação era a vontade expressa ou provável das partes, mas essa metodologia demasiadamente voluntarista logo se mostrou insuficiente. Defendeu-se em seguida, com grande entusiasmo, que o critério se identificaria com a álea, de sorte que a obrigação é de meio quando o êxito do devedor no desempenho da atividade prometida depender de muitos fatores aleatórios. No entanto esse método também se mostrou insatisfatório, na medida que a obrigação pode ser de resultado, a despeita de a realização do resultado prometido se sujeitar a fatores externos incontroláveis pelo devedor.[3]

            A obrigação divide-se em prestações, estas podem deter apenas o elemento subjetivo, ou seja, dever de ação ou abstenção, e/ ou o elemento objetivo, ou seja, a obtenção de um resultado.

            A obrigação de meio possui apenas o elemento subjetivo, já a obrigação de resultado detém o elemento subjetivo e o objetivo.

             Diversos critérios já foram utilizados para a identificação de obrigação de meios, figurando a vontade das partes e a área da atividade como os mais relevantes. A doutrina atual tem reconhecido porém que é preciso "atentar prioritariamente para as finalidades contratuais e para as expectativas das partes que exsurgem do regulamento contratual".[4]

            O médico possui obrigação de meio, ou seja, deve atuar conforme a sua "lex artis", com zelo e diligência em busca de um resultado favorável, o não alcance do resultado não caracteriza inadimplemento. A obrigação é de meio pois o alcance do resultado não depende apenas do médico, mas sim da vontade das partes e da álea da atividade. Neste tipo de obrigação o credor não se obriga ao resultado pois o êxito depende de muitos fatores aleatórios, como na relação entre médico e paciente, o êxito depende também da conduta da paciente, há necessidade de participação ativa e passiva.

            A obrigação médica, regra geral, é tida como de meio, por diversos fatores, como: a álea da atividade (infinitas possibilidades de intercorrência); complexidade do seu objeto (enfermidade, organismo humano, e interações entre a enfermidade e o enfermo); o contrato possui obrigações bilaterais, o paciente tem obrigações que irão ter consequências no tratamento.

            Assim, quando houver estes dois fatores aleatórios não é possível o objeto contratual ser uma obrigação de resultado, pois o êxito depende de fatores que não estão apenas na mão do devedor.

            Assim a álea da atividade médica é fator preponderante para a atribuição de obrigação de meio, contudo há entendimentos jurisprudenciais que tipificam algumas especialidades como obrigação de resultado, como a cirurgia plástica meramente estética, a anestesia, análises clínicas e radiologia.

            Em razão disso, conclui a professora Hildegard:

A nosso ver deveria ser óbvio que, quando a prestação obrigacional se desenvolvesse em um campo aleatório, sua conceituação deveria situar-se dentro da categoria de uma obrigação de meio, já que não seria razoável garantir um resultado em seara onde o fator álea estivesse presente, o que, conseqüentemente, propiciaria algo imprevisível.[5]

            Dessa forma, tendo em vista que a ciência médica ainda não conseguiu desvendar certos segredos ligados à natureza humana, ficam os profissionais da medicina impossibilitados de prometer um resultado certo e determinado ao seu paciente. Há outro aspecto a militar em favor da inserção da obrigação como de meio e não de resultado: "[...] o papel ativo do credor na execução da obrigação, que pode ser representado por sua participação ou pelo estado de dependência do devedor em relação ao credor."[6]

            A vontade da partes é um dos fatores que coloca a obrigação médica como de meio, ora, o bom resultado de um tratamento médico depende diretamente da vontade do paciente, ou seja, depende da conduta do paciente frente as recomendações médicas.

            O fator álea da atividade também é preponderante, ora, o organismo humano, a interação dele com a doença, são fatores que fogem do controle do médico. Assim, a doutrina tipifica a obrigação de meio como uma obrigação de diligência.

            Tal classificação é utilizada pela doutrina e jurisprudência na apuração da responsabilidade civil, porém para Pablo Rentería já encontra-se em desuso tal classificação, pois para o autor,

...toda obrigação é de meios e de resultado. De fato, toda relação obrigacional consiste na promessa do devedor de desempenhar determinada atividade ( a prestação, objeto da obrigação) como meio para produzir, com o adimplemento, o resultado útil (muitas vezes, a entrega ou transferência de certa coisa) que satisfaz o interesse do credor ( a função da obrigação). É inconcebível, portanto, obrigação cujo adimplemento não produza resultado útil ao credor, assim como obrigação que não tenha por objeto a conduta do devedor.[7]

             

2. A OBRIGAÇÃO E O ÔNUS DA PROVA

            A distinção entre obrigação de meio e de resultado tem consequência no aspecto processual, na distribuição do encargo probatório.

            Na obrigação de meio caberá ao paciente comprovar que o médico não agiu com a diligência que se esperava, pois o simples não alcance do resultado não é rotulado como inadimplemento, sendo necessária a prova da culpa para ter direito a reparação. Já na obrigação de resultado, caberá ao paciente somente comprovar a não obtenção do resultado, assim a culpa do profissional será presumida, cabendo ao médico a prova negativa que não atuou culposamente.

            Como regra geral a obrigação do médico é de meio, e por essas razões, incumbe ao paciente o ônus da prova da inexecução obrigacional por parte do devedor (médico), face à conduta culposa do mesmo, culpa em "lato sensu", incluindo o dolo e culpa "strito sensu" (negligência, imprudência ou imperícia).

            Assim atribuir ao médico a obrigação de resultado, e por consequência a culpa presumida, não condiz com a proteção inserida na Constituição Federal da dignidade da pessoa humana, pois reduz suas chances de bom combate na lide.            Ora, a interpretação dos dispositivos legais devem se dar em acordo com os Princípios Constitucionais e com a eticidade e boa-fé introduzidos pelo Código Civil de 2002.          Ora, pela álea da atividade médica não é justo e nem ético atribuir ao médico a presunção de culpa, o médico deve ser responsável pelo que depender dele exclusivamente e não pelas respostas do organismo do paciente e nem pelas limitações naturais da medicina.

            Entender que a obrigação do médico seria de resultado, é julgá-lo como Deus, ora, responsabilizar um médico pelas reações orgânicas de um corpo humano é extremar sua responsabilidade, ignorando a falibilidade da própria medicina e do próprio profissional que pode contar exclusivamente com seu conhecimento técnico. Sendo, ainda, uma afronta ao próprio diploma do CDC, que determina que a responsabilidade do profissional liberal será apurada mediante verificação de culpa.

             É importante ressaltar que mesmo que entenda que a obrigação em alguns casos seria de resultado esta não tem o condão de modificar a natureza da responsabilidade médica, ou seja, a responsabilidade médica continua sendo subjetiva.

            Conforme brilhante ensinamento de RUY ROSADO o acerto está aos que atribuem a obrigação como de meios, pois a álea está presente em toda a intervenção cirúrgica, e imprevisível são as reações de cada organismo à agressão do ato cirúrgico. Mesmo que por ventura um cirurgião plástico venha a assegurar um resultado, isso não define a natureza de sua obrigação, não altera sua categoria jurídica, que continua sempre a prestação de um serviço que traz consigo riscos, para o autor, na verdade deveríamos examinar nestes casos apenas com mais rigor a culpa.[8]

                        Todas as falhas e imperfeições devem ser aferidas com base na isonomia e dignidade da pessoa humana, a culpa presumida não se coaduna com a proteção à dignidade da pessoa humana do profissional liberal, pois reduz suas chances de defesa na lide, além do mais, a inversão do ônus da prova não pode ser automática. Sendo tal instituto descabido e ilegal frente as demandas entre médicos e pacientes.

           

3. ÔNUS DA PROVA x CULPA PRESUMIDA

            A autora Hidelgard, cita, o aspecto processual equivoco quanto ao ônus da prova, pois para ela a inversão é diferente da culpa presumida. Ora, presunção de culpa é para a responsabilidade objetiva, onde há a inversão automática, a presunção da culpa para os médicos seria uma exorbitação de competência do interprete, pois estaríamos criando uma nova classe de responsabilidade dos profissionais liberais, função privativa do Congresso Nacional, artigo 2 e 60, p. 4 da Constituição Federal.

            Lembra-se ainda que a conduta do paciente pode interferir negativamente. A vontade da partes é um dos fatores que coloca a obrigação médica como de meio, ora, o bom resultado de um tratamento médico depende diretamente da vontade do paciente, ou seja, depende da conduta do paciente frente as recomendações médicas. E dificilmente o médico conseguirá fazer prova da desídia da própria paciente, por isso o absurdo da tipificação de especialidades como obrigação de resultado. Ressalta-se ainda, que o CPC tem como princípio norteador da busca da verdade real por todos os litigantes, sendo assim, todos tem a obrigação de contribuir com todos os meios de prova para auferir a verdade real.

            Assim conclui a autora:

Entendemos que do simples fato de ocorrer a inversão do ônus da prova não decorre a presunção de culpa. Nas obrigações de resultado essa inversão é automática e, no entanto, não se pode falar aí em culpa presumida, pois esta presunção pertence à responsabilidade objetiva.[9]

            Assim, tendo em vista que o legislador considerou a responsabilidade dos profissionais liberais como subjetiva, não há como se falar em culpa presumida nas obrigações prestadas pelos médicos, mas sim inversão automática do ônus da prova, uma vez que aquela pertence à responsabilidade objetiva.

            Porém este não é o entendimento majoritário dos tribunais e da doutrina, com a tipificação da obrigação de resultado, há a inversão do ônus da prova em desfavor do médico, e por consequência sua culpa é presumida, assim, caberá ao profissional a prova negativa de sua não-culpa.

4. A JUSTIÇA E A OBRIGAÇÃO DO MÉDICO

            Há entendimento inserido pela doutrina e jurisprudência classificando de algumas especialidades como obrigação de resultado, como as cirurgias plásticas estéticas, anestesias, análises clínicas e etc.

            Estas novas interpretações de nossos julgadores tem efeito reprodutivo, sendo verdadeiros engessadores jurisprudenciais, não se atentando para a evolução da medicina e nem do direito. Os julgadores infelizmente interpretam legislações exorbitando competências sempre em desfavor do médico. Há infelizmente um sentimentalismo exagerado no entusiasmo de proteger a todo custo o paciente/consumidor.

            Este sentimentalismo exacerbado acaba rompendo com requisitos legais tipificados que prescrevem os requisitos mínimos capazes a gerar o dever de indenizar. Regra geral a obrigação do médico é de meio, sob o aspecto processual, caberá ao paciente comprovar que o médico não agiu com a diligência necessária.

            A tipificação da obrigação do médico como de resultado lesa o princípio basilar do sistema jurídico brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana, lesando ainda os princípios fundamentais como a presunção de inocência,  ampla defesa e o contraditório. Ora, a álea da atividade médica é comum a todas as especialidades, não é justo e nem ético atribuir ao médico responsabilidade por fatores que fogem de seu controle. Dessa forma, tendo em vista que a ciência médica ainda não conseguiu desvendar certos segredos ligados à natureza humana, ficam os profissionais da medicina impossibilitados de prometer um resultado certo e determinado ao seu paciente. Há outro aspecto a militar em favor da inserção da obrigação como de meio e não de resultado: "[...] o papel ativo do credor na execução da obrigação, que pode ser representado por sua participação ou pelo estado de dependência do devedor em relação ao credor."[10]

            A vontade da partes é um dos fatores que coloca a obrigação médica como de meio, ora, o bom resultado de um tratamento médico depende diretamente da vontade do paciente, ou seja, depende da conduta do paciente frente as recomendações médicas.

            O fator álea da atividade também é preponderante, ora, o organismo humano, a interação dele com a doença, são fatores que fogem do controle do médico. Assim, a doutrina tipifica a obrigação de meio como uma obrigação de diligência.

            Ora, tal presunção afronta o próprio Código de Defesa do Consumidor, artigo 14, parágrafo 4, que tipifica expressamente que a responsabilidade civil do profissional liberal será apurada mediante verificação de culpa.

            Todas as falhas e imperfeições devem ser aferidas com base na isonomia e dignidade da pessoa humana, a culpa presumida não se coaduna com a proteção à dignidade da pessoa humana do profissional liberal, pois reduz suas chances de defesa na lide, além do mais, a inversão do ônus da prova não pode ser automática. Sendo tal instituto descabido e ilegal frente as demandas entre médicos e pacientes.           

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            Ora, o legislador previu expressamente que a responsabilidade médica dependerá da prova de sua culpa. O julgador ao atribuir o ônus da prova negativa de culpa ao médico infringe a lei, pois cria um novo tipo de responsabilidade não respaldado por qualquer legislação, qual seja, a culpa presumida.

            A presunção é dada apenas para a responsabilidade objetiva onde a inversão é automática, presumir a culpa do médico é uma exorbitação de competência do interprete, criando uma nova classe de responsabilidade civil dos profissionais liberais, função privativa do Congresso Nacional, art.2 e 60, p.4 da Constituição Federal.

            Ora, a presunção deve ser sempre legal. Não há esta distinção entre culpa presumida ou comprovada na lei, esta distinção é meramente doutrinária.

            Em matéria de prova a presunção deve ser legal e há que se admitir, inexiste tal previsão em nosso ordenamento capaz de modificar a distribuição do ônus probatório, figurando o tema como fruto de criação doutrinaria e jurisprudencial, que, com a devida vênia, há que admitir maior reflexão.

5.OBRIGAÇÃO MÉDICA DE RESULTADO

            As regras consagradas no art. 951, do Código Civil e no § 4º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, tipificam a responsabilidade subjetiva do médico.

            Assim como a responsabilidade é subjetiva e obrigação médica é regra geral de meio, não há que se falar em responsabilidade por não ter alcançado o resultado, pois a medicina não é ciência exata.

            De outro lado, fugindo à regra geral, certa doutrina sustenta existir, em certas especialidades médicas, uma obrigação de resultado.

            A autora Hidelgard critica esta tipificação fundamentando que estas são fruto de julgamentos de efeito reprodutivo engessadores jurisprudenciais, não atentando para a evolução da medicina e do direito, nas especialidades tipificadas pela jurisprudência como de resultado há os mesmo fatores aleatórios como a imprevisibilidade das reações orgânicas e psíquicas. Ainda conclui que tal tipificação afronta a legislação em especial o Código de Defesa do Consumidor, pois o artigo 14, p.4, expressamente prevê que a responsabilidade depende de culpa provada, e ainda ressalta que o resultado final do tratamento depende também da atuação do paciente.[11]

            Antônio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza criticam tal distinção e a tipificação de algumas especialidades médicas como sendo de resultado, para eles a obrigação de resultado para os médico fere a dignidade da pessoa humana deste, ainda lesa a ampla defesa e o contraditório, princípios constitucionais. E ainda, alertam para a álea da atividade médica,  assim, não seria nem justo e nem ético atribuir ao médico uma obrigação de resultado. Ressaltando que com o advento do Código Civil de 2002, a eticidade e a justiça devem fazer parte de toda fundamentação jurídica[12].

            Entender que a obrigação do médico seria de resultado, é julgá-lo como Deus, ora, responsabilizar um médico pelas reações orgânicas de um corpo humano é extremar sua responsabilidade, ignorando a falibilidade da própria medicina e do próprio profissional que pode contar exclusivamente com seu conhecimento técnico. Sendo, ainda, uma afronta ao próprio diploma do CDC, que determina que a responsabilidade do profissional liberal será apurada mediante verificação de culpa.

            Ora, ainda cabe ressaltar que todas as especialidades médicas estão sujeitas aos mesmos fatores aleatórios, como a interação do organismo com a enfermidade, a imprevisibilidade do organismo humano, a falibilidade da medicina e etc.

A. CIRURGIA PLÁTICA ESTÉTICA

            A doutrina costuma distinguir a cirurgia plástica entre estética e reparadora. Na reparadora a obrigação do médico seria de meio, já na estética a obrigação seria de resultado.

            No que toca à cirurgia plástica estética, sustenta a maioria da doutrina que neste caso o facultativo contrai uma obrigação de resultado perante o paciente, sendo que tal característica, conforme assinala Gerson Luiz Carlos Branco,

se deve ao fato de que a motivação moral para sua intervenção para a sua realização, embora seja socialmente aceita, não tenha a mesma relevância da intervenção para o salvamento da vítima ou para eliminação da dor. A questão é extremamente delicada na medida em que na generalidade das vezes a cirurgia estética tem como objeto pessoa sã, sem nenhuma enfermidade, não podendo a intervenção cirúrgica alterar este quadro.[13]

            De outro lado, contudo, outra corrente doutrinária entende que a obrigação do cirurgião plástico não difere daquela assumida pelos demais cirurgiões, qual seja, uma obrigação de meio, tendo em vista situações imprevisíveis e alheias ao controle humano, igualmente presentes nessa especialidade.

            Eduardo Dantas e Marcos Coltri, citam a ilegalidade na tipificação de algumas responsabilidades como obrigação de resultado, como a cirurgia plástica meramente estética, no entender dos autores, é um grande absurdo interpretes e julgadores conceituarem a cirurgia plástica meramente estética como obrigação de resultado, para os autores, o argumento de que nestes casos não há nenhuma doença que mereça ser curada é leviano, pois segundo a OMS- Organização Mundial de Saúde,  a definição de saúde é "situação de perfeito bem estar físico, mental e social". Ora quem busca a cirurgia plástica tem uma insatisfação pessoal com sua aparência física, insatisfação essa que arruína sua auto-estima, culminando com abalo moral inegável, a pessoa está sim doente, e um profissional capacitado pode tratá-la .[14]

            Os autores ainda citam que muitas situações em que a pessoa se submeteu a cirurgia o resultado foi o melhor possível. Entretanto em razão de problemas emocionais, sociais ou até mesmo familiares, o indivíduo questiona o resultado alegando erro. A cirurgia puramente estética se submete aos mesmos fatores de qualquer outro procedimento, há questão intrínsecas e individuais do organismo humano que por vezes são incompreensíveis e imprevisíveis.[15]

            Ora, a obrigação do médico em qualquer especialidade tem por objeto a assistência ao paciente, comprometendo a empregar todos os recursos a seu alcance, atuando conforme literatura médica, com zelo e cuidado. mas no entanto não pode garantir sucesso, pois a álea da atividade médica é comum a todas as especialidades. Todos os fatores aleatórios já citados são os mesmos encontrados por qualquer especialidade médica. O cirurgião neste ramo da cirurgia plástica não tem como prever muitos dos resultados, pois eles são também oriundos das condições multifárias do organismo humano.

            Miguel Kfouri, pondera que mesmo a cirurgia estética, em geral "apresenta características comuns às demais cirurgias: as reações do organismo são imprevisíveis e consequências indesejadas podem sobrevir".[16]

            Não se pode deixar de destacar que a vontade das partes é outro fator que fomenta a obrigação de meio, ora, a vontade da partes é um dos fatores que coloca a obrigação médica como de meio, ora, o bom resultado de um tratamento médico depende diretamente da vontade do paciente, ou seja, depende da conduta do paciente frente as recomendações médicas.

            Ora, punir um profissional por fatores que fogem de sua mãos é injusto e ilegal. Na responsabilidade civil se pune o agente pelo que depender dele exclusivamente, não podendo este responder pelas respostas do organismo do paciente, nem pelas limitações naturais da ciência e nem pela conduta pro-ativa do paciente.

            Genival Veloso França adverte,

A obrigação do cirurgião plástico na ação reparadora ou reconstrutora é de meio porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem, no entanto, poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil em face da inexorabilidade do caso, quando ele agiu de acordo com a "lex artis", ou seja, se os meios empregados eram de uso atual é sem contra-indicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma "obrigação de resultado", não seria apenas um absurdo: seria uma injustiça.

Dizer-se que a obrigação contratual do cirurgião plástico naquelas oportunidades é de resultado porque ele estaria obrigado a reparar e reconstruir sempre, fazendo o paciente voltar às condições normais é um grande equívoco.

Primeiro, é preciso entender que a função da cirurgia reparadora e, principalmente, da cirurgia reconstrutora não é apenas dar ao paciente uma aparência de inteira normalidade, mas recuperar, reconstruir ou salvar um órgão ou uma estrutura. Tudo isto levando em conta as condições fisiológicas e patológicas do paciente e as decorrentes da própria limitação da sua ciência. Ainda mais quando foram empregados todos os cuidados pré, trans e pós-operatórios e solicitados todos os exames necessários. O cirurgião neste ramo da cirurgia plástica não tem como prever muitos dos resultados, pois eles são também oriundos das condições multifárias do organismo humano.

Em síntese, o que se afirma não é que o cirurgião plástico na arte de corrigir e reparar não cometa erros - sejam eles de diagnóstico, de terapêutica e de técnicas -, ou que ele não seja nunca negligente ou imprudente. Não. Mas, tão-só, que a operação plástica em tais modalidades, como vem se aplicando hodiernamente no conjunto das ações cirúrgicas e em que pese a relevância que se dê à modalidade de obrigação, não pode constituir um contrato de resultado, mas de meios ou de diligência, embora em casos de manifesta negligência ou imprudência venha se ampliar sua responsabilidade quanto os métodos usados ou à técnica escolhida.[17]

            A doutrinadora VERA FADERA é citada por KUHN:

Em 1994 respaldada pela melhor doutrina nacional e estrangeira da época Vera Fradera fez a seguinte distinção:

É de ser ressaltado que, com relação a cirurgia estética, encerra esta especialidade duas atividades, distintas entre si, quais sejam a cirurgia estética, propriamente dita, e a cirurgia reparadora, estando o cirurgião, no primeiro caso sujeito a obrigação de resultado e, no segundo, a uma obrigação de meios.

É de se ressaltar que a autora atualizou sua posição quando tomou conhecimento de decisão da corte de Cassação Francesa comentada por François Chabas. [18]

            A autora Véra Fradera, citou em artigo a necessidade de mudança de posicionamento de nossos tribunais e doutrinadores, pois cita que os fatores aleatórios são comuns a todas as especialidades médicas. Como segue,

         Em razão da necessidade de permanente atualização, requerida pela     Advocacia e   pelo magistério ... tomei conhecimento de uma decisão da Corte de Cassação francesa) , comentada por François Chabas,  que produziu uma reviravolta na concepção anterior, pois alterava  a classificação da obrigação do cirurgião plástico, puramente estética, para obrigação de meios.

As palavras do professor francês, reproduzindo a decisão mencionada, foram textualmente  as seguintes: "toda intervenção sobre o corpo humano é aleatória, as reações do corpo são  imprevisíveis; ninguém pode prever, por exemplo, como ocorrerá uma cicatrização...[2]  a  tal ponto que  pensamos que incidiria ipso facto  em erro o cirurgião  plástico que assumisse um resultado, porque ele não poderia ignorar o caráter falacioso da sua promessa".

(...)

Espero que estas breves considerações possam alertar a classe dos advogados e magistrados para a necessidade de  uma revisão  na consideração da natureza da  obrigação do  cirurgião  puramente estético, adequando-a  à sua verdadeira natureza, sob o ponto de vista científico; isto é, o resultado dependerá  também de  fatores   relacionados ao  próprio paciente,  além da técnica e preparo do médico.[19]

            França assevera,

Qualquer que seja a forma de obrigação de meios ou de resultado, diante do dano, o que se vai apurar é a responsabilidade, levando em conta principalmente o grau da culpa, o nexo de causalidade e a dimensão do dano, ainda mais diante das ações de indenizações por perdas e danos. Aquelas formas de obrigação apenas definem o ônus da prova.

No ato médico, a discutida questão entre a culpa contratual e a culpa aquiliana, e, em conseqüência a existência de uma obrigação de meio ou uma obrigação de resultado, parece-nos, em determinados instantes, apenas um detalhe. Na prática, o que vai prevalecer mesmo é a relação entre a culpa e o dano, pois até mesmo a exigência do ônus probandi já tem remédio para a inversão da prova, qualquer que seja a modalidade de contrato.

         Hoje, mesmo em especialidades consideradas obrigadas a um resultado de maneira absoluta, como na cirurgia plástica puramente estética, já se olha com reservas esse conceito tão radical de êxito sempre, pois o correto é decidir pelas circunstâncias de cada caso.[20]

            Conforme descreve França a exigência do ônus probatório pode ser fomentada pela inversão do ônus da prova, assim, a culpa do médico seria presumida em qualquer modalidade de obrigação. Na realidade há vários entendimentos jurisprudenciais no sentido de ser possível tal inversão na relação médico e paciente, o que discordamos, pois com a inversão a culpa será presumida. Ora, a legislação em vigor é expressa ao definir que a obrigação de reparar do profissional liberal dependerá da culpa comprovada.

            Além de defendermos a impossibilidade de presunção de culpa. Ainda, ressaltamos que as especialidades tidas como de resultado, são levadas ao judiciário com uma pré-suposição de êxito sempre, conceito radical que deve ser visto com reservas pelos juristas. As obrigações de resultado ainda contam com a ilegalidade de inversão do ônus da prova automática. A inversão do ônus da prova da culpa automática é ilegal, pois não encontra amparo em nenhuma legislação, sendo fruto apenas de criação doutrinária.

B. ANESTESIOLOGIA

            Parte da doutrina enquadra a prestação obrigacional do anestesiologista como sendo de resultado, desde que tenha tido oportunidade de avaliar o paciente antes da cirurgia e concluir pela existência de condições para anestesiá-lo. Além disso, argumentam, em síntese, que

o profissional somente se libera do dever cumprindo com a tarefa a que se propôs, ou seja, anestesiar o paciente e trazê-lo de volta ao estado de consciência e sensibilidade. Resultado diverso do previsto será de responsabilidade do anestesiologista ... Logo, ao lesado é lícito demandar com base na simples verificação de produto final diverso do pactuado na contratação.[21]

            De acordo com esse entendimento, o anestesiologista estaria comprometido a fazer o paciente retornar ao mesmo estado de saúde que se encontrava antes da intervenção cirúrgica (status quo ante), pouco importando a diligência empenhada pelo especialista quando da execução do seu mister.

            Conforme assinalado acima, discordamos deste entendimento, ora, é inimaginável a sustentação de que o anestesista tem obrigação de resultado, pois tem o dever apenas de fazer o paciente retornar ao mesmo estado de saúde que se encontrava antes da intervenção cirúrgica, como se a atividade anestésica fosse apenas fazer dormir e após acordar o paciente. Ainda mais assustador é o fato de que a obrigação conceituada por estes doutrinadores deixa claro que não importa a diligencia empenhada por este especialista no momento do procedimento. O que importaria seria apenas deixar o paciente no estado "quo ante".

            Ora, a anestesia é uma área complexa da atividade médica, onde há utilização de poderosos fármacos, como poderia o anestesista se responsabilizar pela reação do organismo de tal paciente frente ao medicamento? É inimaginável falar em responsabilizar um médico por fatores intrínsecos e individuais do organismo de cada paciente, ou até mesmo o responsabilizar pela falibilidade da ciência. Não há como olvidar que o anestesista está sujeito ao mesmo fator álea da atividade médica.

            De maneira magistral a doutrinadora  Hildegard,conclui,

A nosso ver deveria ser óbvio que, quando a prestação obrigacional se desenvolvesse em um campo aleatório, sua conceituação deveria situar-se dentro da categoria de uma obrigação de meio, já que não seria razoável garantir um resultado em seara onde o fator álea estivesse presente, o que, conseqüentemente, propiciaria algo imprevisível. [22]

            Sendo assim, como disserta a professora Hildegard, seriam essas considerações mais um suporte para analisar se a obrigação é de meio ou de resultado, posto que sob o prisma do princípio da eqüidade e da boa-fé, não seria justo, nem razoável, creditar o resultado final da prestação obrigacional apenas sobre o anestesiologista.

6. A CULPA PRESUMIDA: NÃO HÁ TIPIFICAÇÃO LEGAL

            Logo, uma vez que o MÉDICO assume perante o paciente uma obrigação de resultado, supondo-se o caso de não alcance do fim proposto consubstanciado na plena recuperação do cliente, resultaria automático o inadimplemento por parte do facultativo.

            Diante da inexecução obrigacional do devedor, caberia ao credor (paciente) provar tão somente o aludido descumprimento, posto que, nesse caso, haveria presunção de culpa do devedor. Assim haveria inversão automática do ônus da prova da culpa.

            Ora a inversão do ônus da prova não pode ser automática. Não há regulação de inversão "ex legis" para a responsabilidade civil subjetiva, ou seja, aquela que deriva da culpa comprovada.            Em matéria de prova a presunção deve ser legal e há que se admitir, a respeito do CULPA inexiste tal previsão em nosso ordenamento capaz de modificar a distribuição do ônus probatório, figurando o tema como fruto de criação doutrinaria e jurisprudencial, que, com a devida vênia, há que admitir maior reflexão.

            A inversão automática é prevista apenas na responsabilidade objetiva, ora, a presunção de culpa é uma exorbitação de competência do interprete, criando uma nova classe de responsabilidade dos profissionais liberais, função privativa do Congresso Nacional.

            A obrigação do MÉDIO É SEMPRE DE MEIO , ora, o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem, no entanto, poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil em face da inexorabilidade do caso, quando ele agiu de acordo com a "lex artis", ou seja, se os meios empregados eram de uso atual é sem contra-indicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma "obrigação de resultado", não seria apenas um absurdo: seria uma injustiça.[23]

7. DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

            Ora, ainda cabe ressaltar que o Direito Civil é diretamente vinculado ao Direito Constitucional.

            Conforme citado pelos autores Couto Filho e Souza,

Muito antes de se imputar aos médicos predefinições ou separações casuísticas em grupos de meios e de resultados, é necessário verificarmos que a Lei 8.078/90, excepcionalmente, em seu p.4 do artigo 14, tratou a responsabilidade do profissional como subjetiva, exigindo a verificação de culpa, se coadunando, assim, com o inciso III do artigo 1 da Carta Política, vez que o profissional liberal precisa de proteção em sua dignidade enquanto pessoa humana, igualmente ao consumidor.[24]

            Não se pode ser responsabilizado se o objeto não fora alcançado por razões alheias ao seu proceder, sendo certo que muitas vezes não há explicação científica. Em qualquer ramo da medicina há infinitas possibilidades de intercorrencias que estão além da compreensão da própria ciência, havendo ainda, aquelas que mesmo compreendidas, previsíveis mas que são inevitáveis.

            Ora a ciência médica é limitada não é exata. E ainda, cumpre destacar que o organismo humano não é objeto inanimado. Ao contrário, interage o tempo todo, mesmo quando encontra-se sob um determinado procedimento.

            Assim a distinção é meramente doutrinária não havendo portanto nenhuma linha sequer na lei sobre tais questões.

            Para os autores Couto Filho e Souza, em citação brilhante,

É preciso pensar no novo, e esta é a nossa proposta, sendo fundamental elucidarmos que os tempos de hoje são outros onde a própria dicotomia de Ulpiano- a separação em direito público e privado- já dá lugar, paulatinamente a unicidade, que alguns chamam de direito social, conforme se depreende da lavra mestra de Werson Rêgo.

No início deste terceiro  milênio o pensamento tem de ser eficiente, e certas colocações, especialmente no Direito, devem ser constantemente pensadas, sob pena de cairmos no vazio, em discussões que deteriora ao invés de construir. A doutrina continuará rica, como fonte do direito que é, mas as limitações e ponderações no campo processual do uso de certos institutos é tarefa maior e perfaz o corolário da busca pela paz social.

No campo da saúde por exemplo a posição sobre obrigação de meio ou de resultado nos chega ao legado de R. Demogue, produzido na França, em começo do século XX, com um quadro do sistema de saúde completamente diverso do nosso e, hoje, naquele país, a doutrina já não mais sobrevive com a maioria dos aplausos de juristas franceses. Portanto, pretender impingir esta doutrina como fonte do direito peca pela ignorância dos modelos de saúde dos Países em comparação.[25]

            Assim todas as questões privadas são regidas pelos regramentos infraconstitucionais, mas também são e devem ser regidas pelos princípios constitucionais, tendo estes primazia sobre aqueles, é o que muitos doutrinadores chamam de Direito Civil- Constitucional.

            Couto Filho e Souza citam a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não só apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade.... representa insurgência contra todo o sistema, subversão de valores fundamentais...[26]

            É necessária uma filtragem constitucional sobre o tema,  ora, a fase do pós-positivismo, prega que deve haver espaço sempre para se transcender a norma infraconstitucional ao analisar um caso concreto, e se recorrer, necessariamente à principiologia da Constituição Federal. Assim se alcançará muito mais e melhor a "mens legis".

            Couto filho e Souza citam Celso Antônio Bandeira de Mello, mencionado por Scartezzini, ao falar sobre a filtragem constitucional, assim se pronunciou:

É, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exara compreensão e inteligência...

Nessa perspectiva principialista, portanto é de crucial importância que a responsabilidade civil médica e hospitalar, diante da análise de cada caso concreto, seja norteada não pela teoria do risco- aliás, no escólio de Esser, teve sua criação jurisprudencial (a teoria do risco) tirada sem muito fundamento do artigo 1.384 do Código Civil Francês-, não pelo Código do Consumidor, não por dogmas doutrinários, como a culpa presumida no caso de obrigação de resultado, mas pelos princípios constitucionais e até mesmo por aqueles que ainda não recepcionados pelo sistema, ou não positivados, mas igualmente, conforme classificação de Esser, necessários e úteis, sendo que os primeiros se referem àqueles que são facilmente extraídos das outras normas existentes (também chamados de instrutivos) e os segundos são aqueles ligados a critérios éticos e políticos...

Portanto, devemos nos despedir de julgamentos com efeito reprodutivo engessadores de novos entendimentos, e nos atentar para a evolução da medicina e do direito. Tal distinção se mostra descompromissada com a realidade e o cenário atual.[27]

            A responsabilidade civil médica é eivada de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais ultrapassados e que deixam o  médico em situação extremamente desfavorável. Devemos como citado por Celso Antônio Bandeira de Mello nos despedir de engessamentos e recorrer a hermenêutica principiologica no sentido de se afasta a pseudoculpa dos médicos, analisando o caso concreto, e não utilizando entendimentos jurisprudenciais que engessam novos entendimentos. Devemos ainda afastar dogmas jurídicos, como a inversão do ônus da prova.

            Conforme concluem os autores Couto Filho e Souza "Há de se ter em mente, por fim, a importância de se afastar de uma interpretação literal da lei, exortando-se, por certo, os princípios constitucionais, que devem orientar e reger todas as outras normas."[28]

            Ora, tal diferenciação, presumindo culpa e atribuindo ônus de prova negativa ao médico,  lesa direitos fundamentais destes profissionais, ora, lesa a dignidade da pessoa humana do médico, lhe atribuir a responsabilidade por um resultado onde há fatores que fogem de sua mão, assim como, lesa os princípios de presunção de inocência, ampla defesa e contraditório.

            Os autores ainda citam a fala de Paulo Jorge Scartezzinni Guimarães, mencionado por Celso Bastos:

O Estado se erige sob a noção da dignidade da pessoa humana, sendo que a referência à dignidade congloba todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os indivíduos clássicos, quer sejam os de fundo econômico, social e moral. Assim, o Estado deve propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas.[29]

            Para os autores, devemos interpretar os institutos e leis em acordo com o Princípio norteador do direito, qual seja, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, devemos nos preocupar não só com a dignidade do consumidor/paciente, mas também com a dignidade do médico. A utilização adequada de princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, igualdade, ampla defesa, contraditório e etc, em detrimento da letra fria da lei infraconstitucional faz com que o estado juiz distribua a dignidade não só ao paciente, mas também do profissional médico sujeito de direitos, ora, responsabilizar o médico por questões que estão de alguma forma fora de seu controle agride sua dignidade humana e demais princípios constitucionais[30].

8. A CÓPIA DA DOUTRINA FRANCESA: PORÉM DESATUALIZADA

            Para os autores Couto Filho e Souza, em citação brilhante,

No campo da saúde por exemplo a posição sobre obrigação de meio ou de resultado nos chega ao legado de R. Demogue, produzido na França, em começo do século XX, com um quadro do sistema de saúde completamente diverso do nosso e, hoje, naquele país, a doutrina já não mais sobrevive com a maioria dos aplausos de juristas franceses. Portanto, pretender impingir esta doutrina como fonte do direito peca pela ignorância dos modelos de saúde dos Países em comparação.

            Como ressalta ANTÔNIO FERREIRA COUTO E ALEX PEREIRA SOUZA

Diante das leis brasileiras, em especial o Código Civil Brasileiro, os julgadores no papel de Estado- Juiz, estão aprisionados nas questões ético-brasileiras, por isso a inadequação do direito comparado, pois se por um lado, para gerar nossas legislações internas, ele se torna fonte de consulta segura e indispensável, por outro lado, uma vez definidas as nossas regras éticas, segundo nossas condições sociais, culturais, antropológicas e até fisiológicas, teremos que dispensar essa comparação, pois não mais haverá grau de comparação entre os povos; aliás, nessa direção o papel principal passa a ser do direito consuetudinário interno, sob pena de estarmos exigindo comportamento ético de forma desajustada e curiosamente descomprometida com o nosso viver brasileiro[31].

            Afirmamos sempre a inadequação de importação de teorias de outros países. Contudo, a teoria da distinção de obrigação médica de meio e de resultado fora disposta na França, no começo do século XX. Mas nos dias atuais tal distinção entre especialidades encontra-se ultrapassada na França.

            Conforme cita Vera Jacob de Fradera.

Há  anos venho me dedicando ao estudo e à  prática  da responsabilidade civil como um todo... onde,  efetivamente, secundada pela melhor doutrina, nacional  e estrangeira daquela época, afirmava  que a cirurgia plástica, meramente estética,  gera obrigação de resultado.

Em razão da necessidade de permanente atualização, requerida pela     Advocacia e   pelo magistério ... tomei conhecimento de uma decisão da Corte de Cassação francesa) , comentada por François Chabas,  que produziu uma reviravolta na concepção anterior, pois alterava  a classificação da obrigação do cirurgião plástico, puramente estética, para obrigação de meios.

As palavras do professor francês, reproduzindo a decisão mencionada, foram textualmente  as seguintes: "toda intervenção sobre o corpo humano é aleatória, as reações do corpo são  imprevisíveis; ninguém pode prever, por exemplo, como ocorrerá uma cicatrização...[2]  a  tal ponto que  pensamos que incidiria ipso facto  em erro o cirurgião  plástico que assumisse um resultado, porque ele não poderia ignorar o caráter falacioso da sua promessa".

Entre nós, já houve uma decisão neste  mesmo sentido, prolatada no Paraná (recurso nº  34834-1, juiz Abrahão Miguel, 20 de junho 1995, em matéria de cirurgia plástica estética, qualificando a obrigação do médico como de meios  e incumbindo à vítima a prova da culpa do médico; no TJRS,  em voto vencido,  o desembargador Alfredo Guilherme Englert assumiu posição idêntica à da corte francesa ( 5ª Câmara Cível,  apelação nº  597083948, 18 de setembro de 1997). [32]

 

            Há necessidade de  uma revisão  na consideração da natureza da  obrigação do  médico, adequando-a  à sua verdadeira natureza, sob o ponto de vista científico; isto é, o resultado dependerá  também de  fatores   relacionados ao  próprio paciente,  além da técnica e preparo do médico.

9. CONCLUSÃO

            Os requisitos e tipificações legais que envolvem a responsabilidade civil do médico vêm recebendo por nossos tribunais tratamento maleável. Assim, não se respeita os elementos de avaliação próprios do sistema jurídico que estamos inseridos, aumentando os riscos da justiça que será alcançada vir viciada por uma noção apenas sentimental/ subjetiva do julgador.

            O direito não pode ser impulsionado apenas por um "sentimento de justiça" ou sob a máxima "que o justo paga pelo pecador". Ora, o direito deve ser baseado em fundamentos técnicos e dogmáticos, que são condição para a manutenção da segurança jurídica. Um direito sentimental e subjetivo cria insegurança, lesando os princípios da legalidade e igualdade.

            A respeitável MARTINS- COSTA destaca,

Uma jurisprudência sentimental, divorciada da dogmática, e uma doutrina que substitui a produção dogmática por palavras de ordem, ainda que embaladas por bons propósitos, desservem ao Direito, pois dissolvem o sistema. [33]

            Como já destacamos há crescente evolução perante os tribunais, principalmente em demandas do chamado erro médico, de sentenças eivadas de sentimentalismo, onde são excluídos requisitos tipificados legalmente para caracterização do dever de indenizar do médico.

            Este sentimentalismo exacerbado acaba rompendo com requisitos legais tipificados que prescrevem os requisitos mínimos capazes a gerar o dever de indenizar. A culpa requisito indispensável para dar ensejo a responsabilidade civil vem sendo mitigado pelas interpretações jurisprudenciais onde aplica-se o CDC a uma relação atípica, personalíssima, onde a obrigação é de meio, e não de resultado.

            A prova da culpa, um dos requisitos essenciais para ensejar o dever de indenizar do profissional liberal vêm sendo mitigado ao caracterizar algumas especialidades como obrigação de resultado, sendo a culpa do profissional presumida.

            Ainda cabe destacar que em  matéria de prova a presunção deve ser legal e há que se admitir, a respeito da culpa presumida inexiste tal previsão em nosso ordenamento capaz de modificar a distribuição do ônus probatório, figurando o tema como fruto de criação doutrinaria e jurisprudencial, que, com a devida vênia, há que admitir maior reflexão.

            Brilhantemente SCHREIBER denominou o sentimentalismo do julgador como a "erosão dos filtros de reparação".[34]   A não observância dos requisitos as construções jurisprudenciais desamparadas pelo direito gera por via de consequencia a "erosão"do direito e dos requisitos que ensejam o dever de indenizar. Ora, a utilização da técnica jurídica/ lei, torna a decisão mais segura. Deve-se afastar o subjetivismo na análise do caso concreto.

            Como já dissemos o médico vem sendo exposto a uma desvantagem exagerada junto aos julgadores nas demandas do dito "erro médico", que buscam em um verdadeiro sentimentalismo jurídico a proteção a todo custo do paciente, nesta proteção os julgadores acabam desviando do direito, gerando a erosão do direito e dos requisitos que ensejam o dever de indenizar.           Ora, a presunção de culpa afronta os requisitos ensejadores do dever de indenizar, e ainda, lesam direitos fundamentais tipificados na Constituição Federal. Como citamos a conduta do paciente pode interferir negativamente no tratamento, e com a presunção da culpa do médico, caberá a ele o ônus de prova negativa da desídia do paciente, lesando o princípio do contraditório e ampla defesa.

            É de extrema importância o estudo e a conscientização da problemática que envolve a indústria do erro médico no Brasil. As consequências da fomentação da proteção do paciente a qualquer custo trará herança desastrosa para a comunidade. Assim cabe aos juristas e operados do direito maior interação sobre o assunto, extinguindo pré-suposições e pré-conceitos, amparando esta classe nas demandas infundadas de erros imaginários perpetradas por pacientes.

            Portanto, merecem e devem ser relidos os institutos flagrantemente protecionistas adotados pelo judiciário. Cabe ao judiciário e aos juristas a interação com o cenário atual. E a conscientização do verdadeiro fundamento da justiça, despedindo de  sentimentalismos e pré-suposições perpetradas por nós juristas leigos em medicina, onde foram criadas teorias de culpa presumida, e outras formas de direito descomprometido com a justiça.   

            Entender que a obrigação do médico seria de resultado, é julgá-lo como Deus, ora, responsabilizar um médico pelas reações orgânicas de um corpo humano é extremar sua responsabilidade, ignorando a falibilidade da própria medicina e do próprio profissional que pode contar exclusivamente com seu conhecimento técnico. Sendo, ainda, uma afronta ao próprio diploma do CDC, que determina que a responsabilidade do profissional liberal será apurada mediante verificação de culpa.

            Isto posto, após todos os fundamentos transcritos,  necessidade de  uma revisão  na consideração da natureza da  obrigação do  médico, adequando-a  à sua verdadeira natureza, sob o ponto de vista científico; isto é, o resultado dependerá  também de  fatores   relacionados ao  próprio paciente,  além da técnica e preparo do médico.

REFERÊNCIAS

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AGUIAR JR., Ruy Rosado. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 718, 1995.

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COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.

DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 2ed. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010.

FRADERA, Vera Jacob de. Necessidade de uma revisão na consideração da natureza da obrigação do cirurgião plástico.Disponível em: < http://www.espacovital.com.br/consulta/noticia_ler.php?id=14089>.Acesso em 01/11/2014.

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GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica: as obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação. Curitiba: Juruá, 2004.

GIOSTRI, Hildegard Taggesell. A Responsabilidade Médico-Hospitalar e o Código do Consumidor. Repensando o Direito do Consumidor. Curitiba: Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná. 2005.

KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. São Paulo: RT, 2003.

Kuhn, Adriana Menezes de Simão. Os limites do dever de informar do médico e o nexo causal na responsabilidade civil na jurisprudência brasileira. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. p.25. Disponível em :< http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/16165>. Acesso em 10/10/2014.

MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. Disponível em: < http://www.fd.ulisboa.pt/portals/0/docs/institutos/icj/luscommune/costajudith.pdf>. Acesso em 10/01/2015.

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações- Art. 389 a 420. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.v.5.t.2 p.6.

MATIELO, Fabrício Zamprogna. Responsabilidade Civil do Médico. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998.p.128-129.

RENTERÍA, Pablo. Obrigações de meios e de resultado: análise crítica. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: A erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. São Paulo; Atlas, 2007.

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Sobre a autora
Amanda Bernardes

Advogada Especialista em Defesa Médica.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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