As várias faces jurídicas da tragédia na casa noturna Kiss: incêndio ou homicídio? dolo eventual ou culpa consciente?

25/02/2015 às 09:02
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A catástrofe na casa noturna Kiss, em Santa Maria/RS é motivo para muito sentimentos, mas alvo de muita indagação quanto ao seu desate jurídico. Por este motivo, considerando-me um apaixonado pelo Direito Penal, eis um despretensioso estudo a respeito.

1 INTRODUÇÃO

O incêndio ocorrido em Santa Maria/RS, na Casa Noturna Kiss, que vitimou centenas de jovens, em sua maioria estudantes universitários, provocou deveras repercussões midiáticas no Brasil e no mundo. Ocorrida na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, a catástrofe foi (e é) considerada uma das maiores tragédias mundiais em número de vítimas fatais.

Contudo, aspectos e circunstâncias situacionais envolvendo o caso, sobretudo questões de ordem jurídico-fáticas, ressurgem, reclamando, necessariamente, uma análise meticulosa e aprofundada, livre do sensacionalismo midiático peculiar brasileiro. E isso, substancialmente, porque a sociedade está empenhada numa busca incessante por vingança, eufemisticamente epitetada e travestida por Justiça – destoando, com isso, da real responsabilidade dos agentes envolvidos diretamente na catástrofe.

Com isso, trabalharemos com a seguinte quaestio: à luz do Direito Penal brasileiro, analisando a questão vergastada, tangenciando a responsabilidade criminal dos agentes envolvidos diretamente na tragédia, balizado pela mais renomada doutrina, instala-se o seguinte problema: quais são (ou devam ser) as possíveis soluções jurídicas para a terrível tragédia na Casa Noturna Kiss?

Em estreita correlação com o problema e o tema aqui tratados, através do método qualitativo adotado nas pesquisas doutrinárias e documentais, esta pesquisa exploratória, aplicada e descritiva, objetiva analisar, de forma pormenorizada, o estudo do caso evolvendo a catástrofe na Casa Noturna Kiss, notadamente no que se refere às possíveis soluções para o caso, abordando e demonstrando as mais diversas modalidades jurídicas aplicáveis, máxime quanto à tipificação dos crimes de incêndio e homicídio, nas hipóteses de dolo eventual e culpa consciente.

Além disso, demonstraremos, a partir de estudos de casos semelhantes, no caso, o episódio ocorrido na Argentina, mais especificamente na Boate República Cromañón, no dia 30 de dezembro de 2004, onde também dezenas de vidas foram ceifadas em razão, justamente, do emprego, em lugares inapropriados, de sinalizadores.

Evidentemente que não há como se afirmar, com certeza, extreme de dúvida, um juízo condenatório ab initio, sem que seja instalado o devido processo legal, assegurada, ainda, a mais ampla e irrestrita defesa, sem prejuízo do contraditório.

Contudo, com as premissas doutrinárias, o objeto da pesquisa que se pretende desenvolver resume-se, tão somente, em aferir as possibilidades de responsabilização dos agentes envolvidos diretamente, sem que, contudo, estejamos afastados do real objetivo da justiça criminal, qual seja, aplicar o direito ao caso concreto, com justiça.

Afinal, a justiça não deve cingir-se, tão somente, ao sentimento unipessoal de parentes e amigos das vítimas; há (sim) um interesse público subjacente de que malgrado os bens jurídicos sejam (e continuam sendo) tutelados, de que seja corretamente aplicada a lei ao caso concreto.

Aliás, basta lembrar que mesmo em casos deste jaez, com vultosa comoção social, há direitos fundamentais a serem resguardados, máxime a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade.

Daí a necessidade de se investigar a adequação e os limites de uma responsabilização criminal baseada em vetores justos, que, assim agindo, finalmente alcançará os objetivos finalistas plasmados pelo Direito Penal, fundados pela Constituição da República.

 

2 O CRIME E SUA FINALIDADE

No decorrer do curso de Direito, em especial nas disciplinas de Direito Penal, aprendemos que o fato, para ser considerado crime, deve ser (conduta) típico, antijurídico (ou ilícito) e culpável, adotando, aqui, a teoria tripartida (ou quadripartida) do crime.

Além disso, a conduta, para ser considerada criminosa, deve ser também voluntária e finalista.

Segundo Coelho (2002, p. 102-3), em sua obra,

um fato criminoso possui vários aspectos a serem considerados. Alguns desses aspectos dizem respeito à própria constituição técnico-jurídica do crime. Assim, a relação causal entre a conduta e resultado criminoso compõem o fato típico.

Em sendo assim, para tratarmos sobre o assunto relativo às várias soluções jurídicas envolvendo a tragédia na Casa Noturna Kiss, imprescindível, antes de mais nada, relembrarmos a teoria finalista adotada pelo Ordenamento Jurídico-Penal brasileiro. Segundo Coelho, citando ensinamentos de H. Welzel, em sua obra, “ação é, portanto, um acontecimento finalístico (dirigido a um fim), não um acontecimento puramente causal” (H. WELZEL apud COELHO, 2002, p. 96).

Logo, a questão de aferição da modalidade do crime (se doloso ou culposo) está voltada ao aspecto subjetivo do agente, e não apenas às circunstâncias fáticas, pura e simples, ainda que se reconheça sua importância.

Seguindo-se as teorias da vontade, assentimento e consentimento, adotadas pelo Código Penal brasileiro, devemos, num juízo de prelibação, atentar ao fato envolvendo a Kiss como um episódio infeliz, mas comum e isolado, não como um cenário criminoso (ainda que efetivamente o seja), de modo a perquirir a real situação jurídico-fática, livre e desimpedido de qualquer sensacionalismo midiático, sobretudo vingança.

Analisemos, pois, a seguir, as circunstâncias consideradas do evento, que fundamentaram a denúncia oferecida pelo Ministério Público, em 02 de abril de 2013.

 

3 CIRCUNTÂNCIAS DO EVENTO CONSIDERADAS NA DENÚNCIA

Segundo dados obtidos por meio da Assessoria de Imprensa do Ministério Público gaúcho, mormente a denúncia por ele oferecida, das circunstâncias do evento: o show pirotécnico em lugar fechado; a utilização de fogo de artifício não indicado para ambientes fechados (chuva de prata); o seu acionamento no palco, onde havia cortinas e madeira, ainda porque próximo ao teto, que era revestido de espuma, revestimentos este altamente inflamável; a superlotação; a iluminação de emergência inadequada; o diminuto espaço para saída, que, inclusive, era obstruída por um guarda-corpo; e, por fim, o despreparo do efetivo funcional, estão entre os principais fatores que contribuíram para a tragédia e, por conseguinte, à denunciação de Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão (integrantes da banda Gurizada Fandangueira) e Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffman (sócios-proprietários da Casa Noturna Kiss ) pelo delito de homicídio qualificado, na modalidade dolosa (dolo eventual), secundando, por via de consequência, o relatório conclusivo levado a efeito nos autos do inquérito policial distribuído sob o n.º 94/2013/150501, da 1ª Delegacia de Polícia de Santa Maria/RS.

Logo, a questão de aferição da modalidade do crime (se dolo ou culposo) esteve e está consubstanciada em circunstâncias fáticas objetivas, à revelia de aspectos subjetivos da conduta dos agentes, conforme lançou mão o Ministério Público, à linha de argumentação, ao oferecer a denúncia, assentando que:

Segundo o Supremo Tribunal Federal, ‘faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente’ (HC 97.252). Merecem destaque, em relação às circunstâncias do caso concreto, as condições extremas de insegurança da Boate Kiss, associadas ao emprego de fogo de artifício destinado a uso externo, o que torna o risco de uma tragédia algo mais do que previsível. Assim, a acusação por homicídios dolosos, consumados e tentados, centra-se num dos elementos estruturais do dolo, qual seja, a previsão do resultado. Ante as condições da boate e o uso de fogos de artifício, os denunciados tinham conhecimento da possibilidade de matar pessoas. Assim, fica afastada, de plano, a figura da culpa comum, que pressupõe a ausência de previsão do que é previsível. Com efeito, a culpa comum fundamenta-se na previsibilidade. Havendo previsão efetiva, adentra-se no terreno da culpa consciente e do dolo eventual. Uma vez que houve previsão das mortes, cumpre também afastar a hipótese de culpa consciente, porque esta pressupõe a adoção de cautelas que permitam confiar, ainda que levianamente, no controle do risco criado […]. (grifo nosso)

 

Dessa forma, à guisa de avaliar a conduta praticada pelos envolvidos e, com isso, definir e/ou confirmar a tipificação delitiva, analisemos, pois, os institutos do dolo eventual e culpa consciente, traçando distinções entre eles.

4 DOLO EVENTUAL

Antes de adentrar a conceituação da modalidade intitulada, relembremos que, independentemente da bifurcação pedagógica das modalidades de dolo, o eventual é modalidade intencional da vontade do agente; noutras palavras, o dolo é gênero do qual o eventual é espécie, diferenciando-se, tão somente, no momento da aceitação do evento criminoso: se antes (dolo direito) ou depois, com a sujeição do agente ao resultado (dolo eventual), aquiescendo ao final.

Desta forma, para que se reconheça o dolo eventual, não basta, tão só, assumir o risco no sentido de saber que ele pode ocorrer; é preciso aceitá-lo, de forma consciente e voluntária, transigindo no resultado.

A propósito, o dolo eventual não se limita à consciência de possibilidade de perfectibilização do resultado; consubstancia-se na decisão voluntária e consciente do agente contra determinado bem jurídico.

Como bem afirma Noronha (1995, p. 135), e utilizando-se suas lições para o caso prático em estudo,

o dolo não é apenas representação, vontade e consciência da ilicitude do resultado. É também anuência a este. Ele não olvida da teoria do consentimento. Age dolosamente não apenas o que quer livre e conscientemente um resultado, mas também quem, embora não o querendo de modo principal, aceita-o ou a ele anui. Na primeira hipótese, diz-se direto o dolo; na segunda, eventual.

Nas definições de Coelho (2002, p. 124-5), o dolo eventual “ocorre quando o agente não busca produzir diretamente o resultado, mas antevê a possibilidade de causá-lo e, mesmo assim, realiza sua conduta”. E complementa: “No dolo eventual, o indivíduo demonstra indiferença quanto ao possível resultado ocorrer ou não. […] Ao ser indiferente quanto à possibilidade de que o resultado ocorra, consente na sua produção.

Gomes (2007, p. 378), ao tratar da questão, afirma que há dolo eventual “quando o agente representa o resultado como possível, assume o risco de produzir esse resultado e ainda atua com total indiferença frente ao bem jurídico (representação + aceitação + indiferença)”.

Capez (2000, p. 155; 2008; p. 203), por sua vez, diferenciando-se à nomenclatura (dolo indireto), afirma que “o agente não quer diretamente o resultado, mas aceita a possibilidade de produzi-lo”. Adiante, citando obra de Magalhães Noronha, quanto ao dolo, diz-se

indireto quando, apesar de querer o resultado, a vontade não se manifesta de modo único e seguro em direção a ele, ao contrário do que sucede com o dolo direto. […] No dolo eventual, conforme já dissemos, o sujeito prevê o resultado e, embora não o queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência (NORONHA apud CAPEZ, 2000, p. 156).

Nas lições de Greco (2004, p. 207), há dolo eventual “quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito”.  Citando obra de Jeschek (apud GRECO, 2004, p. 207), afirma que “dolo eventual significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e se conforma com ela”.

E mais, nas palavras de Conde (apud GRECO, 2004, p. 207), cita que:

No dolo eventual, o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas conta com ele, admite sua produção, assume o risco, etc.

Estefam (2010, p. 198; 1995, p. 135), como Noronha, afirmam que no dolo eventual, “o agente não quer produzir o resultado, mas, com sua conduta, assume o risco de fazê-lo”.

Em contraposição, Delmanto (2007, p. 78) sustenta que haverá dolo eventual “quando o agente, conscientemente, admite e aceita o risco de produzir o resultado”.

Sob o magistério de Costa Jr. (1997, p. 85), no dolo eventual,

o agente assume o risco da realização do evento. Ao representar mentalmente o evento, o autor aquiesce, tendo uma antevisão duvidosa de sua realização. Ao prever como possível a realização do evento, não se detém. Age, mesmo à custa de produzir o evento previsto como possível. Assume o risco, que é algo mais do que ter consciência de correr risco: é consentir previamente no resultado, caso este venha a ocorrer.

Nas mais brilhantes definições, Bitencourt (2003, p. 215-6) afirma que

haverá dolo eventual quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas a aceitar como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado (art. 18, I, in fine, do CP). No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo. (grifo do autor)

Destaca, ainda, que para a configuração do dolo eventual, não basta

a mera ciência da probabilidade do resultado ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado […]. É indispensável uma determinada relação de vontade entre o resultado e o agente e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa. (BITENCOURT, 2003, p. 216). (grifo nosso)

Bastos (2008), em artigo sobre o tema, delimita que

o dolo eventual implica uma vontade firme e resoluta em termos de consentimento ou aceitação do risco de produzir o resultado. O agente, embora não querendo o resultado diretamente, não reluta em incorporá-lo desde logo à sua vontade, caso ele venha a ocorrer. O sujeito age apesar ou a despeito de um resultado que assume de modo eventual, pelo desdobramento lógico de uma conduta livre e comprometida desde o seu nascedouro.

Como se vê, no geral, ressalvadas periféricas tergiversações conceituais, na modalidade do dolo eventual, o agente pretere, no resultado, aquiescendo subjetivamente; ou, no momento, visualiza possível resultado, aceita-o, assumindo seus riscos, perfectibilizando, assim, o modus subjetivo intencional da prática delituosa. Em qualquer dos casos, não basta tão só representar no resultado, é necessário, como método aferidor do dolo, que o agente também consinta.

 

5 CULPA CONSCIENTE

 

Já a conduta culposa caracteriza-se por ser um “comportamento voluntário desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou ilícito, embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado” (NUCCI, 2010, p. 210).

Em outras palavras, “na conduta culposa, há uma ação voluntária dirigida a uma finalidade lícita, mas, pela quebra do dever de cuidado, a todos exigido, sobrevém um resultado ilícito não querido, cujo risco nem sequer foi assumido” (CAPEZ, 2003, p. 62-3; 2004, p. 63).

Apoderando-nos das lições de Costa Jr. (1997, p. 87), destacamos que

uma coisa é a morte intencional de um homem (homicídio doloso); outra é a morte por negligência, imprudência ou imperícia (homicídio culposo). Na conduta dolosa, acha-se ela impregnada do elemento finalístico e consciente. Na conduta culposa, a finalidade é diversa, já que na se pode conceber uma vontade que não busque um fim. (grifo nosso)

Portanto, a ausência de aceitação e/ou indiferença do agente, afasta, de plano, a possibilidade de perfectibilização do dolo, sobretudo da modalidade eventual, abrindo-se espaço à culpa, com consciência, eis que detectada previsibilidade no sinistro.

Assim, nas definições de Coelho (2002, p. 129), na culpa consciente “o agente prevê o resultado, mas espera efetivamente que ele não ocorra”.

Ao tratar sobre culpa, leciona Gomes (2007, p. 418):

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[...] ocorre quando o agente prevê o resultado ofensivo (representa o resultado como possível), porém, tendo em conta seu conhecimento e/ou sua habilidade, confia sinceramente que não vai acontecer. Confia em sua habilidade (ou seu conhecimento) para evitar o resultado ou conta com sincera confiança de que nada vai ocorrer em razão das circunstâncias concretas do fato. Na culpa consciente o sujeito prevê o resultado mas não o deseja, não o aceita, não quer realizá-lo, nem sequer assume o risco de produzi-lo. O agente atua com a confiança certa de que o resultado não vai ocorrer. (grifo nosso)

Em brilhante explanação, assimilando-se aos conceitos trazidos por Capez (2008, p. 211) e Estefam (2010, p. 202), Bitencourt (2003, p. 232-3) afirma que

há culpa consciente, também chamada de culpa com previsão, quando o agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, previsível, mas confia convictamente que ele não ocorra. Quando o agente, embora prevendo o resultado, espera sinceramente que este não se verifique, estar-se-ia diante de culpa consciente. (grifo do autor)

Nas definições de Noronha, na culpa consciente, “o agente, conquanto preveja o resultado, não o quer, esperando insensatamente que não se verifique” (1995, p. 136). Nesse mesmo sentido são as definições de Delmanto (2007, p. 80), ao afirmar que “o sujeito prevê o resultado, mas espera que este não aconteça”.

Greco (2004, p.223), por seu turno, aborda a temática ressaltando que a

culpa consciente é aquela em que o agente, embora prevendo o resultado, não deixa de praticar a conduta acreditando, sinceramente, que este resultado não venha a ocorrer. O resultado, embora previsto, não é assumido ou aceito pelo agente, que confia na sua não-ocorrência.

Costa Jr., por sua vez, afirma que: “Na culpa consciente (com previsão), o agente prevê o resultado sem desejá-lo, agindo com confiança de que o resultado previsto como possível não irá realizar-se” (1997, p. 87).

6 DISTINÇÃO ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE

 

Há muito vem se discutindo a respeito da distinção entre as modalidades do dolo eventual e culpa consciente. A propósito, as diferenças e/ou distinções entre os institutos está longe de ser alcançada, pelo menos à unanimidade.  E isto se dá, substancialmente, porque ambas as modalidades estão intimamente ligadas, inclusive no que se refere aos seus conceitos, diferenciando-se, apenas, quanto ao aspecto subjetivo da conduta do agente, ou seja, à vontade livre, consciente e finalista de seu ato.

Para o caso Kiss, imprescindível diferenciarmos, à saciedade, as modalidades intitulares e, sobremaneira, adequarmos a sua aplicação, fixada em parâmetros justos e situacionais.

A partir dos conceitos individuados do dolo eventual e da culpa consciente, Coelho (2002, p. 129-130), de forma sintetizada, aborda que “o aspecto distintivo entre as duas figuras jurídicas seria que na culpa consciente o indivíduo não quer nem admite a possibilidade do resultado, enquanto que no dolo eventual ele não quer, mas admite a possibilidade do resultado”.

Gomes (2007, p. 378), ao distinguir as modalidades, afirma que o dolo eventual conta com três requisitos, quais sejam: representação do resultado, aceitação desse resultado e indiferença. Na culpa consciente, por outro lado, há apenas dois, a saber: “o agente representa o resultado como possível, mas confia que não vai acontecer (confia na sua habilidade para evitá-lo)”; do contrário, se “o agente representasse como certo o resultado não prosseguiria (não atuaria, porque não lhe é indiferente o bem jurídico)”.

Bitencourt (2003, p. 234-5), antes de distinguir os institutos, afirma que entre eles há um traço comum, qual seja:

a previsão do resultado proibido. Mas, enquanto no dolo eventual o agente anui ao advento desse resultado, assumindo o risco de produzi-lo, em vez de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, repele a hipótese de superveniência do resultado, na esperança convicta de que este não ocorrerá.

Na hipótese de dolo eventual, a importância negativa da previsão do resultado é, para o agente, menos importante do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, entre desistir da ação ou praticá-la, mesmo correndo o risco da produção do resultado, opta pela segunda alternativa. Já, na culpa consciente, o valor negativo do resultado possível é, para o agente, mais forte do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, se estivesse convencido de que o resultado poderia ocorrer, sem dúvida, desistiria da ação. Não estando convencido dessa possibilidade, calcula mal e age. (grifo do autor)

Ao final, em criterioso e acautelado magistério, ressalva: “Persistindo a dúvida entre um e outro, dever-se-á concluir pela solução menos grave: pela culpa consciente” (BITENCOURT, 2003, p. 235).

Nas lições de Costa Jr. (1997, p. 86),

aproxima-se o dolo eventual da culpa consciente (ou com previsão). Em ambos há a previsão do resultado antijurídico. Só que, enquanto no primeiro o agente empresta anuência à realização do evento (consentimento hipotético), preferindo prosseguir na ação, embora arriscando-se a produzir o resultado, na culpa consciente o agente não aceita a realização do evento; repele mentalmente  resultado previsto, agindo na esperança ou na persuasão de que o evento não irá verificar-se.

[…]

Na culpa consciente há um erro de cálculo; no dolo eventual, uma dúvida. Contudo, é a vontade e não a representação a essência do dolo eventual. A decisão de agir, mesmo com a possibilidade de realização do evento, configura uma situação psicológica impregnada de volição; uma decisão de vontade diante do evento previsto como possível, ainda que indiferente ou até incômodo. (grifo nosso)

7 HIPÓTESES EFETIVAS DE TIPIFICAÇÃO PARA O CASO KISS

 

Então, passada a análise das circunstâncias consideradas pelo Ministério Público, com relação ao caso Kiss, e conceituados os institutos do dolo eventual e culpa consciente, inclusive suas distinções, vejamos as modalidades delitivas aplicáveis à espécie.

 

7.1 Homicídio doloso qualificado

A conduta típica de matar alguém consiste em eliminar a vida de outrem. A ação de matar é aquela dirigida à antecipação temporal do lapso de vida alheia” (BITENCOURT, 2004, p. 35).

O elemento subjetivo que compõe a conduta é o dolo, no caso, eventual, que, segundo o Código Penal, dá-se no momento em que o agente assume o risco de produzir o resultado morte, ou seja, animus necandi.

Dessa forma, conforme se verifica da denúncia oferecida pelo Ministério Público, os envolvidos foram denunciados como incursos nas condutas descritas no art. 121, § 2º, I e III, na forma do art. 70, primeira parte, ambos do Código Penal.

Segundo entendimento do órgão Ministerial, os integrantes da banda, bem como os proprietários da Casa Noturna Kiss, praticaram duzentos e quarenta e um crimes de homicídio doloso (dolo eventual) e qualificado (motivo torpe e meio cruel, fogo e asfixia), além das seiscentas e trinta e seis tentativas de homicídio (art. 121, § 2º, I e III, na forma dos arts. 14, II, 29, caput, e 70, primeira parte, todos do Código Penal).

Nesse caso, está-se diante da conduta de destruir ou eliminar centenas de vidas humanas, cuja prática se deu imiscuída de qualificadoras de ordem subjetiva, quais sejam: “motivo moralmente reprovável, abjeto, desprezível, vil”, demonstrador da “depravação espiritual do sujeito, suscita a aversão ou repugnância geral” (CAPEZ, 2003; 2004, p. 44), considerando a ganância, caracterizadora do motivo torpe, tendo em vista que os denunciados economizaram com o emprego de espuma inadequada de revestimento acústico; preteriram quanto à utilização de equipamentos de segurança contra o fogo; lucraram com a superlotação do evento; e, por fim, adquiriram fogos de artifício destinados ao uso externo, posto que mais econômicos com relação aos indicados para ambientes fechados.

Ademais, encontram-se, também, presentes, as qualificadoras objetivas, que dizem respeito aos modos de execução do crime, no caso, meios cruéis perversos como fogo e asfixia, conquanto o fogo proveniente do equipamento pirotécnico utilizado, ao tocar no teto, em contato com a espuma que o revestia, desencadeou a produção de gazes tóxicos, que levou à morte das vítimas, por asfixia.

Há, ainda, nesta concepção criminológica, a qualificadora descrita no inciso IV do indigitado artigo, que se refere aos modos de execução, no caso, o recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa das vítimas, consistente na instalação dos guardas-corpos e na disposição de apenas uma saída, o que dificultou a evacuação do local – advirta-se: circunstância esta desconsiderada na denúncia.

Nesta hipótese, trata-se de delito hediondo (art. 1º, I, da Lei n.º 8.072/90), punível com reclusão de doze a trinta anos, cuja competência recai ao Tribunal do Júri. 

7.2 Homicídio culposo qualificado

Ainda se tratando das hipóteses de crime contra a vida, tem-se a possibilidade de tipificação pelo delito previsto no art. 121, §3º, na forma do art. 70, primeira parte, todos do Código Penal. Neste caso, diz-se homicídio culposo (culpa consciente), incidindo sobre ele a causa de aumento decorrente do concurso formal. 

No ponto, “o agente, com manifesta imprudência, negligência ou imperícia, deixa de empregar atenção ou diligência de que era capaz, provocando, com sua conduta, o resultado lesivo (morte), previsto (culpa consciente) […], porém jamais aceito ou querido” (CUNHA, 2009, p. 26).

Nessa possibilidade, estar-se-ia diante de delito punível com pena de detenção de um a três anos. No mais, considerando-se que somente serão submetidos a julgamento perante o Tribunal do Júri os delitos dolosos contra a vida, nesta hipótese, a competência para processar e julgar é do juízo singular, sendo passível, inclusive, dos benefícios previstos pela Lei n.º 9.099/95.

                       

7.3 Incêndio doloso qualificado

Dentre as hipóteses cabíveis ao caso em análise, tem-se o incêndio doloso (dolo eventual), qualificado pelo resultado morte, majorado devido ao local destinado ao uso público, previsto no art. 250, §1º, II, “b”, c/c art. 258, primeira parte, todos do Código Penal.

Trata-se de crime comum, de perigo concreto e coletivo, consubstanciado na causação de incêndio, “de forma que sua propagação exponha a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de um número indeterminado de pessoas” (CAPEZ, 2004; 2005, p. 165). O elemento subjetivo caracterizador do delito é o dolo, consistente na vontade consciente de causar incêndio e, com isso, expor perigo a um número indeterminado de pessoas, ou seja, dolo duplo: dolo de dano e dolo de perigo (CUNHA, 2009, p. 284).

Nesse caso, a pena cominada ao delito varia de três a seis anos, incidindo sobre ele a majorante de um terço, prevista na alínea b do inciso II do §1º do art. 250, que se refere à destinação do local em que se deu o sinistro, conquanto a Kiss, embora particular, se destinava ao uso do público, em que pese condicionado.

Aumenta-se, ainda, em dobro a pena, face à qualificadora prevista na primeira parte do art. 258 do Código Penal. Há, aqui, espécie preterdolosa da conduta, consubstanciada no dolo de causar incêndio e expor perigo e culpa quanto aos resultados fatais nas vítimas, o que totaliza numa pena variável entre oito a dezesseis anos de reclusão, sem prejuízo da multa.

Por se tratar de crime coletivo, não há se falar em concurso formal.

No ponto, tratando-se de delito previsto no capítulo dos crimes contra a incolumidade pública, malgrado o resultado morte, dar-se-á o seu processamento e julgamento pelo juízo singular.

 

7.4 Incêndio culposo qualificado

Por fim, tem-se o crime de incêndio culposo (culpa consciente), previsto no art. 250, §2º do Código Penal, que se dá em razão de imprudência, negligência ou imperícia do sujeito.

Nessa modalidade delitiva, “A conduta culposa decorre da inobservância, pelo agente, do cuidado objetivo necessário, exigido pelas circunstâncias, com a consequente produção de um estado de perigo coletivo” (BITENCOURT, 2004, p. 170).

O delito será qualificado pelo resultado ex vi do art. 258, segunda parte, do Código Penal, relativamente à morte provocada “pelo atuar culposo do sujeito ativo do delito de perigo comum” (BITENCOURT, 2004, p. 196). Tem-se, pois, culpa dupla: antecedente e consequente.

Nesta hipótese, a pena cominada ao delito é a de detenção de seis meses a dois anos. Ante a qualificadora do resultado morte, comina-se ao delito as penas relativas ao homicídio culposo, qual seja: um a três anos, aumentadas de um terço.

Da mesma forma, quanto ao incêndio doloso, na modalidade culposa, descabe incidência do art. 70 do Código Penal (concurso formal). Ainda, nesta hipótese, considerando o atuar culposo do agente, não se aplica as majorantes previstas no §1º do art. 250 do Código Penal, eis que incompatível.

Ademais, por se tratar de delito previsto no capítulo dos crimes contra a incolumidade pública, em que pese o resultado morte, dar-se-á o seu processamento e julgamento perante o juízo singular.

 

8 CASO COMPARADO

 

No Brasil, não se tem notícias de casos semelhantes ao ocorrido em Santa Maria/RS, excetuados outros sinistros envolvendo o emprego de fogo, todo eles se deram de forma bastante diferente da dos moldes experimentados na Kiss.

No entanto, em nível internacional, em similar magnitude e dimensão, está o episódio ocorrido na Argentina, mais especificamente na Boate República Cromañón.

As circundantes situações do caso guardam estreita sintonia com a catástrofe de Santa Maria/RS. Na ocasião, os inúmeros fatores que contribuíram para a tragédia, que, aliás, são quase os mesmos apontados no caso Kiss, resultaram na morte de cento e noventa e três pessoas, além de mil quatrocentas e trinta e duas vítimas feridas.

A legislação penal portenha (Ley n.º 11.179), como a brasileira, prevê, além do crime de homicídio (articulo 79), também o de incêndio (articulo 186). No entanto, a tipificação do delito de incêndio abrange tão somente perigo a bens materiais; o perigo à integridade física ou à vida constituem espécie de “agravamiento de la figura” (previstos nos incisos IV e V do indigitado diploma).

Com efeito, diferentemente das correntes adotadas pela Justiça brasileira, no caso Cromañón, os envolvidos diretamente no sinistro foram condenados às penas do incêndio culposo (articulo 186), agravado pelos resultados morte e perigo de morte.

Conforme assentado na sentença argentina, ao analisar o caso, desde o início, apontaram os julgadores do Tribunal Oral Criminal nº 24 de Buenos Aires, que o caso Crimañón não se amoldava às elementares do crime de homicídio, já que,

por las características del manejo de las condiciones de seguridad en que se llevó a cabo el recital del día 30 de diciembre del año 2004 existió una clara representación del peligro para la vida de los asistentes. Las medidas de protección o de “evitación” (en la terminología usada por su defensor) se mostraron claramente inútiles e irracionales para impedir que se produjera el incendio, cuando por todo el manejo de la situación (disvalor de acción) se la condujo hasta su producción (el disvalor de resultado en el delito de peligro). Sin embargo existió una confianza racional y objetivada en cuanto a que el desarrollo del foco ígneo no se concretaría en la muerte y/o lesión de los concurrentes, lo que permite descartar la figura del homicidio doloso, cometido con dolo eventual.

Para eles, o implemento, ainda que contraproducente, de equipamentos de segurança e demais artefatos destinados à preservação da integridade física dos frequentadores da República Cromañón contribuíram para afastar o crime de homicídio, já que tais estruturas confiavam segurança aos agentes, mercê de qualquer risco.

Desta forma, em primeira instância, entendeu o judiciário argentino em condenar os envolvidos às penas previstas no crime de incêndio doloso, qualificado pelo resultado (morte). Contudo, em fase recursal, a sentença de primeira instância foi reformada, aos efeitos de reconhecer a ocorrência de modalidade culposa da conduta.

Segundo entendimento da egrégia Cámara Federal de Casación Penal, para a solução do caso, o Tribunal Oral supervalorizou, diga-se, equivocadamente, os resultados qualificadores (no caso, morte), refletindo, por via de consequência, modalidade dolosa do crime de incêndio.

Conforme se extrai do acórdão n.º 473/11,

Ello así, dado que se tratan de argumentos que no toman en cuenta los fundamentos del fallo del Tribunal Oral, en cuanto ha indicado claramente que estamos ante un delito de peligro y que la estructura subjetiva del tipo debe atender a ese punto básico.

Insistimos que el tribunal de juicio ha sido claro en señalar que la actitud subjetiva del imputado sólo abarcaba los elementos objetivos del delito de peligro, y no así el resultado lesivo, toda vez que éste no forma parte del tipo objetivo.

Dessa forma, considerando tratar o incêndio, na espécie, de crimes de perigo comum, implicou ressaltar, à evidência, as condutas subjetivas penalmente relevantes, gize-se, específicas do delito, pois, afinal,

el incendio agravado por resultado muerte, se trata de un delito preterintencional o, mejor dicho, cualificado por el resultado, donde la consecuencia lesiva más gravosa no debe estar comprendida en el dolo del autor, en tanto se atribuye de manera culposa.

Assim, ao avaliarem o comportamento dos agentes, levou-se em consideração a manifesta e inequívoca postura dos envolvidos que previam, sinceramente, que o resultado não ocorreria, ou, na remota hipótese de sua ocorrência, que seriam capazes de evitá-lo.

Para eles, em que pesem as inúmeras irregularidades apontadas, nenhuma delas constituiu as elementares previstas para o incêndio, senão infrações de ordem administrativa, irrelevantes, pois, aos efeitos penais.

Nesta linha de argumentação, da mesma forma em que considerado pelo Tribunal Oral, a despeito de afastar o crime de homicídio, a Cámara Federal de Casación Penal entendeu que o emprego de meios, ainda que falhos, de equipamentos de segurança na boate, contribuíram para afastar o caráter doloso da conduta praticada, porquanto acreditavam que tais instrumentos seriam suficientes para evitar o resultado lesivo dos frequentadores de Cromañón.

A propósito, por esse motivo é que sustentaram que o indivíduo que valorar erroneamente sua capacidade de impedir o resultado típico obrará com culpa consciente.

E, nessa ordem de considerações, assentaram:

Ahora bien, yendo al análisis de los comportamientos de los acusados, entiendo que este lamentable hecho, es atribuible, en primer término, a la negligencia e imprudencia de los organizadores del espectáculo, es decir a Omar Chabán, a los integrantes del grupo musical “Callejeros”, incluido su manager Diego Argañaraz y a Villarreal, quienes violaron el deber de cuidado que debían observar en el marco de la realización de un espectáculo de asistencia masiva, lo que contribuyó de manera decisiva a la configuración del supuesto de hecho que hoy toca juzgar.

E, assim, concluíram:

Consustanciada con esa culpa evidenciada en su actuar estaba la previsibilidad del resultado, con lo cual se satisface ese elemento subjetivo del tipo.

Siguiendo entonces con el razonamiento inherente a la adecuación legal, no cabe duda que el delito bajo examen responde al previsto en el artículo 189 2° párrafo del Código Penal, incendio cometido por imprudencia, negligencia, e inobservancia de los reglamentos y ordenanzas calificado por haber puesto en peligro la vida de unos cuatro millares de personas y haber causado la muerte de casi dos centenas más.

9 CONCLUSÃO

 

Reconhece-se a gravidade e grandiosidade do sinistro ocorrido na Casa Noturna Kiss, contudo, tal fato, conforme dito anteriormente e, temendo-se pela repetição, não passou de mero episódio, catastrófico e isolado. Verdadeira fatalidade.

Em sendo assim, se demonstra recomendável que a análise do (f)ato  seja vista com base em critérios subjetivistas, como reclama o caso em estudo, e não somente por fatores objetivos, como está sendo operacionalizado.

Afinal, para a caracterização da modalidade delitiva, hão de estar presentes dois requisitos fundamentais, a saber: o aspecto intelectual (saber do risco) e o volitivo (querer a produção do resultado). Dessa forma, não basta que o resultado seja previsível aos agentes (objetividade), ele deve ser querido e aceito (subjetividade).

E, segundo se verificou da denúncia, as condições da boate e o uso de fogos de artifício foram os fatores que motivaram a denunciação pelo crime de homicídio na modalidade dolosa, a despeito de que os denunciados tinham conhecimento da possibilidade de ocorrência do sinistro e, mesmo assim, continuaram na conduta.

Pois bem, a tão acentuada previsibilidade não deve ser confundida com aceitação, quiçá vontade de produzir determinado resultado. A elementar da previsibilidade também está presente na culpa consciente, daí o porquê do seu nome. Com isso, tal circunstância, per se, não significa necessariamente que a conduta praticada pelos envolvidos tenha sido imiscuída da vontade intencional de matar, elemento caracterizador do dolo, seja ele direto ou eventual.

Nessa linha de argumentação, salienta-se que a simples conduta do agente, em continuar atuando, embora saiba das possibilidades/probabilidades de produção de resultado lesivo (antijurídico), não basta à caracterização da modalidade dolosa (já que tanto a continuidade da ação/omissão e a previsibilidade são também verificadas nas modalidades de culpa). É necessário algo mais, que aceite o resultado, havendo entre eles (atuação e resultado) elementos psicológico-cognitivos, ou seja, vontade livre e consciente de produzir aquele específico resultado.

Essa preocupação se justifica, substancialmente, em decorrência dos efeitos provenientes da (in)correta tipificação legal do delito, já que guardam estreita relação ao tipo de processo a ser enfrentado, isto é, dar ao fato o caráter homicida (como está) significa dizer que os denunciados serão submetidos à ritualística do Tribunal do Júri. E, nessa hipótese, em vista do princípio imperativo nos casos de crimes contra a vida, indubio pro societatis, considerando que a sociedade está predisposta à responsabilização e, com isso, vingar a morte das vítimas da tragédia, a condenação dos agentes é, s.m.j., certa.

Todavia, até a fase da pronúncia, impera o constitucional e balizar princípio do in dúbio pro reo, e é nele que o caso merece indubitável observância.

Dissuadir o juízo pré-existente referente ao caso Kiss, notadamente quanto à capitulação legal do sinistro, está longe de violar a regra processo-penal de crimes contra a vida, mas garantir, de acordo com a legalidade e fora do alcance emocional da população, os direitos dos envolvidos, sem prejudicar, jamais, a aplicação justa e correta da lei.  

Aí estão, se não são, os motivos pelos quais sustentamos que o caso merece outra modulação.

A importância de se detectar a modalidade do crime, se dolosa ou culposa, está direta e intimamente ligada à capitulação legal a ser operacionalizada, conquanto a sua observância refletirá, automaticamente, no afastamento dos crimes menos prováveis ao enquadramento do (f)ato-ilícito.

Com efeito, a dúvida a respeito da necessidade de emprego de elementos e equipamentos de segurança necessários ao funcionamento da casa noturna não eximem os agentes da responsabilidade pelo sinistro.

Contudo, e aqui a grande questão, o fato centra na aceitação, ou não, do resultado, e, mais, na confiança dos agentes de que o resultado não ocorreria ou, na mais remota hipótese de sua ocorrência, seriam capazes de evitá-lo.

Quanto à aceitação (ou não) do resultado, conferir à conduta dos envolvidos no caso os nuances de um crime doloso contra a vida é imputar-lhes, também, perfil psicopatológico, já que visaram ao extermínio disseminado de centenas de vidas.  

Quanto à confiança dos envolvidos a respeito da não ocorrência do resultado, a exemplo do que se deu no caso Cromañón, caracteriza-se pelo erro sobre a evitabilidade do resultado.

Em outras palavras, os envolvidos no caso Kiss sabiam, e isso é inegável, que os equipamentos instalados na boate eram clarividentemente contrários às regras de segurança. Contudo, a não aceitação do resultado morte (elementar para o afastamento da modalidade dolosa), aliada à confiança de que o resultado efetivamente não ocorreria, e de que os equipamentos instalados, embora desconformes, seriam capazes de conter/evitar eventual resultado, são aspectos que socorrem em favor dos acusados, que confiavam, sinceramente, que o resultado não ocorreria ou que poderiam evitá-lo.

Dessa forma, se se permite a hipótese de que os agentes agiram ilicitamente, mas de maneira não intencional a (tentar) matar essas centenas de pessoas, abre-se precedente à caracterização dos delitos previstos no capítulo dos crimes contra a incolumidade pública.

Nessa mesma esteira, ressurge a possibilidade do crime de incêndio. Todavia, considerando estar afastada a intenção de morte, e com isso, pôr em risco a vida, a integridade física e o patrimônio de um número indeterminado de pessoas, resta, apenas, a modalidade culposa (consciente), pois, do contrário, estar-se-ia diante de crime de homicídio qualificado pelo emprego de fogo.

A culpa consciente limita o dolo (eventual ou não). Partindo-se desta concepção, o enquadramento desta modalidade, por conseguinte, limitará, também, a incidência de um ou outro delito.

No dolo eventual, independe o fato de os agentes saberem ou não das necessidades dos equipamentos para o funcionamento da boate, pois, ou queriam (dolo direto) ou assumiram o risco (dolo eventual) de produzir o sinistro. Por outro lado, quanto à culpa consciente, sabem eles, efetivamente, da necessidade das cautelas (caracterizando, assim, a consciência), contudo, não querem o resultado, nem assumem, indiferentemente, o risco de produzi-lo, confiando, imprudente ou negligentemente, de que nada ocorrerá fora da normalidade habitual.

E isso, se diga, conquanto era (efetivamente foi e é) comum a utilização de artifícios pirotécnicos incandescente em festas. A propósito, uma das atrações e marca registrada da banda Gurizada Fandangueira era, justamente, a utilização de fogos de artifício durante seus shows, uma vez que nunca houvera registro de episódio similar.

Este fato não pode servir, agora, como base a justificar a intenção de matar.

Já, com relação aos sócios-proprietários, o emprego, ainda que leviano (ou não regular), de espumas (em que pese inflamáveis), a contratação de seguranças, a instalação de guarda-corpos (similares às grades de contenção de estádios) e a disposição de extintores (falhos), incorporados à boate, são indiciários de que os envolvidos adotaram medidas cautelares visando, justamente, à não exposição a perigo dos frequentadores da boate.

Dessa forma, em que pesem contraproducentes, os equipamentos são indicativos de que os responsáveis pelo evento confiavam que seriam suficientes ou, no mínimo, “evitadores” de qualquer resultado.

Ademais, não se pode admitir, em juízo de abstração, que a omissão dos responsáveis pelo evento Kiss, em deixar de preencher os requisitos necessários à segurança do empreendimento, mitigue a tipificação de caráter subjetivo de vontade de matar. Ao contrário, e conforme verificado no caso Cromañón, a inobservância dessas regras deve ser vista como infração de ordem administrativa, irrelevante, pois, aos efeitos penais.

E, nesta conjectura, considerando-se que a distinção entre os institutos está focada no aspecto volitivo-subjetivo dos envolvidos, revela-se perfeitamente cabível, senão adequado, o delito de incêndio culposo, qualificado pelo resultado.

É certo que, pelo clamor social, as penas cominadas, seguindo a possibilidade do incêndio culposo, serão irrisórias comparadas à extensão do dano psicológico às famílias e ao número de vítimas mortas, mas, segundo nossa legislação pátria, e renomada doutrina, o evento Kiss não passou disso.

Dessa forma, tudo isso somado conduz, desenganadamente, que o fato envolvendo a Kiss não passou de um comportamento descuidado dos agentes, e, por isso, o fato por eles provocado deve receber o enquadramento concernente ao delito de incêndio, na modalidade culposa (culpa consciente), qualificado pelo resultado.

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RIO GRANDE DO SUL, Secretaria de Segurança Pública. 1ª Delegacia de Polícia Civil de Santa Maria/RS. Inquérito Policial nº. 94/2013/150501. Relatório final do expediente administrativo instaurado para apurar as causas do incêndio ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013, por volta das 3 horas, nas dependências da Boate Kiss, situada na Rua dos Andradas, nº. 1925, bairro Centro, em Santa Maria/RS, que resultou, até o presente momento, em 241 (duzentas e quarenta e uma) pessoas mortas e centenas de feridos. Santa Maria: 22 de março de 2013.

RIO GRANDE DO SUL, Ministério Público do Estado. Promotoria de Justiça da 1º Vara Criminal de Santa Maria/RS. Denúncia acerca dos fatos ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria/RS, na Boate Kiss. Santa Maria: 02 de abril de 2013.

SANTOS, Marcelo de Jesus dos. Vocalista da banda Gurizada Fandangueira, acusado de provocar incêndio em Santa Maria/RS, fala pela primeira vez na imprensa nacional. Presídio Estadual de Santa Maria, Fantástico, 19 mai. 2013. Entrevista concedida a César Menezes.

TÃO JOVENS, TÃO RÁPIDO, TÃO ABSURDO. São Paulo: Época, n. 767, p. 26-71, fev 2013.

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Sobre o autor
Rodrigo Machado

Advogado. Gaúcho. Colorado. Graduado pela Universidade da Região da Campanha (URCAMP) e pós-graduando, lato sensu, pela Faculdade Damásio de Jesus. Outorgado pela Egrégia Congregação e Conselho Superior do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade da Região da Campanha o título Pontes de Miranda.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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