O §1º do artigo 121 do Código Penal contempla a figura do homicídio privilegiado. Ao lado do relevante valor social ou moral, o legislador previu o homicídio emocional.
Para a incidência da última figura, exige-se que o agente cometa o crime (1º) sob o domínio de violenta emoção, (2º) logo em seguida (3º) a injusta provocação da vítima. Preenchidos os três requisitos, a pena deve ser reduzida de 1/6 a 1/3.
Primeiro, a vítima deve ter provocado, injustamente, o agente. Segundo, a provocação deve ser a causa do violento choque emocional. Terceiro, a reação deve ser imediata, instantânea, sem interrupção, sine intervallo, sem lapso de tempo.
A locução adverbial de tempo logo em seguida exige atenção na análise do fato para fins de subsunção. É princípio basilar de hermenêutica jurídica aquele segundo o qual a lei não contém palavras inúteis[1]: verba cum effectu sunt accipienda. As palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia.
Contudo, parte da doutrina e da jurisprudência ignora essa locução adverbial encravada no texto legal e dispensa a exigência de imediatismo da reação.
Ora, essa posição, além de baratear o direito à vida, homenageia a impunidade. A razão da redação legal em exigir a reação súbita é uma condição lógica.
A regra é clara: a função mais básica do Direito é preservar a vida em comunidade. Com efeito, quem viola o direito à vida deve receber punição sem benesses, conforme o preceito secundário do tipo penal que normatiza o crime de homicídio. Na hipótese de o agente, após experimentar a injusta provocação e, sob o domínio de violenta emoção, ter, logo em seguida, reagido, a reprimenda penal deve ser minorada.
Importa destacar que esses requisitos não admitem flexibilização na interpretação, sob pena de desproteção da vida humana e, paradoxalmente, de indevida proteção daquele que a atacou.
Assim, para a incidência da minorante, exige-se que o agente, desorientado pela emoção violenta, cuja origem seja a provocação injustamente sofrida, tenha sua consciência neutralizada, os sentidos obliterados, em que, em verdadeiro estado de choque ou efeito paralisante, não encontre tempo suficiente para reflexão sobre a injustiça de seu ato reativo. É a violência impensada como reação.
Isso porque, ao agir sob o domínio de violenta emoção, sem ânimo refletido, o agente não tem a frieza do cálculo, nem pensa em preparar-se para a execução do crime. Esta, inclusive, deve ocorrer de forma improvisada. Por isso mesmo que a prática do crime sem hiato no tempo entre a provocação e a reação ensejará a aplicação de pena mais branda.
Noutras palavras, o agente, sob o influxo da emoção violenta, não pensa outra coisa senão reagir, imediatamente, contra o injusto sofrido. Assim, encurralado pela erupção vulcânica da emoção, ataca subitamente a vítima, às claras, sem preparação.
Bem entendido: com a perda do self control, não há espaço para qualquer tipo de reflexão. Existe, sim, um ataque às cegas. Uma execução automática do crime.
Por lógica, se a reação do agente não foi imediata porque saiu do local para armar-se e, minutos depois, atacar a vítima, é de verificar-se que sua consciência reflexiva fora recobrada, fato que afasta a incidência do privilégio.
É por tal razão que se o agente não reagiu seguidamente, mas, ao contrário, com sanha vingativa, preparou-se para o crime, conclui-se que houve tempo suficiente para a retomada do autocontrole. O que vale a dizer: essa espécie repentina de sentimento, agudamente, perturbado não admite a premeditação.
Na realidade, é necessário um resgate de parte da História do Direito Penal pátrio. O atual Código Penal, que foi editado em 1940, incorporou aquilo que no Código Penal de 1890 e na Consolidação das Leis Penais de 1932 era causa de inimputabilidade, qual seja, a completa privação ou perturbação dos sentidos e da inteligência[2]. Entretanto, cambiou sua nomenclatura para o domínio de violenta emoção e a transformou em causa de diminuição de pena nos crimes de homicídio e lesões corporais.
Nas três primeiras décadas do século XX, a perturbação dos sentidos era a tese jurídica preferida dos advogados para livrar da condenação os assassinos de mulheres. Nessa época, ocorreu a maior polêmica entorno desse engenho legal entre defensores e acusadores de “criminosos passionais”, entre os quais Evaristo de Morais e Roberto Lyra, respectivamente, como defensor e promotor.
Com o advento do Código Penal atual, houve, então, a modificação dessa causa de inimputabilidade penal em causa de diminuição de pena, com o balizamento de sua incidência, no claro objetivo de impor a responsabilidade penal e, mais que isso, arrostar qualquer tipo de banalização do privilégio, reservando-o para casos especiais, em que houver a observância estrita de seus requisitos.
Não por outra razão que o mesmo código distinguiu muito bem influência de domínio, no que concerne à violenta emoção. Aquela é atenuante (art. 65, III, “c”), ao passo que este é causa de diminuição da pena.
Na verdade, as alterações trazidas pela nova codificação representaram o triunfo da bandeira liderada por Afrânio Peixoto, Nelson Hungria e Roberto Lyra[3] contra os abusos de utilização da perturbação dos sentidos em busca de absolvição dos “matadores de mulheres”, que agiam com frieza e dissimulação nos chamados “crimes de paixão”.
Bem se vê, então, que só é possível reconhecer essa causa de diminuição de pena quando observados à risca os três requisitos trazidos no artigo de lei, sem elastérios ou jeitinhos interpretativos. Se assim não for, haverá muito assassino sendo agraciado com pena aquém da devida. E isso, numa palavra, não é outra coisa senão impunidade.
Portanto, tolerar o transcurso de tempo entre a ação da vítima e a reação do agente para fins de reconhecimento do privilégio, é homenagear a impunidade em detrimento do ordenamento jurídico e, o mais grave e inadmissível, do maior de todos os direitos da humanidade, a vida.
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[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 204.
[2] Artigo 27, §4º, do Código Penal de 1890, cuja redação foi preservada em essência pela Consolidação das Leis Penais de 1932: Não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.
[3] LYRA, Roberto. Amor e Responsabilidade Criminal. São Paulo, Saraiva, 1932.