Resenha sobre o documentário “Nas Terras do Bem Virá”

21/04/2015 às 16:15
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O documentário “Nas Terras do Bem Virá” faz um reflexo claro da realidade dos menos favorecidos no Brasil. O descaso do governo e a exploração perpetuada pelos grandes latifundiários é retratada no documentário e nos auxilia a compreender nosso desenvolvimento atual.

Logo após as Guerras Mundiais, houve uma mobilização muito grande para que a igualdade fosse alcançada por todos, bem como a observância dos direitos e deveres de todos e por todos, seja nação, instituições e indivíduos e o estabelecimento de princípios morais, éticos e legais para que, através destes, os Direitos Humanos fossem buscados, alcançados e zelados por todos.

No entanto, diante desses preceitos, depara-se novamente com a questão inicial, ou seja, quem elabora as leis é a própria classe que subjuga, domina e oprime. Esta classe não tem interesse que a igualdade seja alcançada por todos de forma indiscriminada. Assim, chega-se ao século XXI, com inúmeras ocorrências de desrespeito aos Direitos Humanos.

No Brasil, apesar da Constituição de 1988, observa-se que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que se chegue próximo aos ideais defendidos por alguns pensadores, como por exemplo, Rousseau, Montesquieu, Diderot e Voltaire que eram a favor de um governo democrático, com ampla participação popular, fim de privilégios de classe e ideais de liberdade e igualdade como direitos fundamentais do homem. Pois, existem no país vários problemas relacionados com as questões indígenas, a reforma agrária, posse e uso da terra, concentração da renda nacional, desigualdades e exclusão social, desemprego, miséria, analfabetismo, saneamento básico, infra-estrutura habitacional etc.

O documentário “Nas Terras do Bem Virá” é um reflexo claro de uma das formas existentes no país de humilhação, exploração, subumanidade, pelas quais passam os menos favorecidos e do descaso do governo e dos grandes latifundiários com a preservação do meio ambiente. Isso se pode observar tanto na forma como os “poderosos” tratam os seus funcionários, subjugando-os às condições deploráveis de trabalho e de vida quanto na proteção dispensada ao que eles acham que é o seu patrimônio, tendo este como bem mais importante, até mesmo em comparação com a vida humana.

Este filme, dirigido por Alexandre Rampazzo, tendo como produtora Tatiana Polastri, foi produzido com imagens de emissoras de televisão locais e com a colheita de depoimentos de migrantes, familiares destes, representantes religiosos, agentes do governo, fazendeiros e outras pessoas. Para isso, foram percorridas 29 cidades das regiões Norte e Nordeste. Este longa foi ganhador de vários prêmios nacionais e internacionais, como It’s All True – Festival Internacional de Documentários, menção honrosa, Mostra Etnográfica da Amazônia, ambos no Brasil; Festival dos Três Continentes, na Venezuela, prêmio de melhor filme; e Mostra Contra o Silêncio de Todas as Vozes, no México, obtendo menção Honrosa também.

No documentário, é exposto conflitos por terras na Amazônia e como os grandes latifundiários se aproveitam do descaso do Estado em fiscalizar a ocorrência do trabalho escravo e outras formas degradantes de exploração humana, bem como da impunidade e do auxílio estatal, direta ou indiretamente, em acobertar e defender com o seu aparato, utilizando-se até mesmo da polícia, os interesses dos mais favorecidos, não importando se estes estão agindo legalmente ou não. Quando acontece a punição, esta é tão inexpressiva que é preferível correr o risco de ser alcançado pelas normas, pois, o trabalho escravo e a exploração já deram mais lucros que o prejuízo proporcionado pela pena.

O Brasil viveu na década de 70, no período ditatorial, tendo como presidente o General Emílio Garrastazu Médici, uma grande efervescência econômica, pelo menos teoricamente. Dentre outros aspectos, houve um grande investimento no Norte com a interminável construção da Rodovia Transamazônica e grande incentivo para os nordestinos saírem da sua região para aquele destino. Contudo, não houve uma preocupação estatal em organizar essa saída nem a recepção, orientação e suporte às pessoas menos esclarecidas e favorecidas que chegavam à desconhecida região. Por outro lado, o governo incentivou e patrocinou a vinda de grandes agropecuários, vários empresários, grandes latifundiários, comerciantes provenientes de várias partes do Brasil para proporcionar o desenvolvimento daquela região.

É evidente que esse desenvolvimento era predatório, já que ninguém se preocupava até a época (e até hoje muitos não estão dando importância nenhuma quando se fala em ganhar dinheiro, ser bem sucedido, progresso) com a sustentabilidade. O governo, através da SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, patrocinou a devastação da Amazônia, o trabalho escravo e o enriquecimento dos poderosos com o seu projeto de desenvolvimento sem o compromisso com os menos favorecidos e com o meio ambiente.

Este “progresso” gerou mais desigualdade social ainda, pois, aqueles que já eram ricos obtiveram auxílios para a posse e exploração das novas terras, já os pobres ganharam o descaso estatal mais uma vez. Estas pessoas, na maior parte homens, eram expulsas de sua região por causa da seca e da cerca, como relatado no filme pelo bispo Dom Pedro Casaldáliga que lhes causavam segregação e sofrimentos, pela necessidade e pelo sonho de poder dar às suas famílias uma vida digna e passam por uma decepção maior ainda, a de chegar em lugar cheios de sonhos e de esperanças, alimentadas muitas vezes pelo governo, o que supostamente dá uma garantia maior, e serem obrigados ao trabalho escravo e terem os seus direitos de ir e vir, de serem tratados como seres humanos etc. cerceados, como bem ressalta o advogado Masson na sua comparação entre trabalho escravo e o sequestro. Onde ele diz que a diferença se encontra em que no trabalho escravo os filhos da elite sequestram os filhos da favela e estes sequestram aqueles na modalidade sequestro, propriamente dita. Por isso, esta modalidade é mais punida que a outra.

Tudo isso, causou muita instabilidade naquele lugar, gerando uma verdadeira guerra pela posse da terra. Cada um lutava da forma que podia para garantir o seu pedaço. Desta forma, novamente prevaleceu aquele que detêm o poder, subjugando os menos favorecidos, ou na pior das hipóteses, causando inúmeras mortes.

É válido ressaltar a tamanha insanidade e irracionalidade por parte do governo, o qual vê como solução mais plausível o fato de preferir tirar pessoas da sua região de origem para outra desconhecida a investir no Nordeste, talvez até menos, para proporcionar uma vida melhor àqueles indivíduos.

O governo repete o modelo de exclusão, no qual ele destina uns para escravos e prostitutas, revoltados e bandidos e outros para “heróis”, conforme a sua conveniência. Por isso é importante que haja esclarecimento ao povo e que este lute. Dentro deste contexto surge o MST com o seu projeto de ocupação pública, contra a falta de responsabilidade e de compromisso por parte dos políticos com relação à reforma agrária e à causa dos povos indígenas. Isso também é evidenciado no filme, bem como a forma como o Estado reage diante dessas manifestações, buscando o controle social, sempre em prol dos grandes proprietários de terra em detrimento daqueles que realmente precisam do apoio do governo, os pobres, utilizando-se para isso, conforme as exigências do grande capital, da sua máquina repressora, a polícia.

A polícia, por sua vez, ou a maioria das instituições públicas, subsiste de forma precária. O governo não a estrutura para que ela tenha condições reais de existência e atuação, apenas exige o cumprimento das determinações. Assim, essa instituição fica a mercê de suportes de fazendeiros, comerciantes, banqueiros, industriários, por exemplo, a Companhia Vale do Rio Doce, ou seja, fica tendenciosa aos interesses do grande capital. Desta forma, quando é preciso agir, ela decide parcialmente, tomando o problema social (diga-se: o problema dos grandes proprietários) como se seu fosse. Por isso, além de ser a máquina repressora do Estado, beneficia com suas ações aos detentores do poder em detrimento dos menos favorecidos. O episódio trágico do dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás deixa claro isso. Ali, segundo informações oficiais, 19 pessoas foram mortas numa operação desastrosa da corporação estatal de policiamento militar. Número este que para os acampados foi bem maior.

Assim, é notório que no modelo estatal de desenvolvimento não há lugar para os pobres. As grandes empresas e os grandes fazendeiros conseguem o documento da terra com negociatas com os cartórios e com o Estado. Há o “corporativismo” entre os fazendeiros, mesmo aquele que, porventura, anda dentro da lei não denuncia o que comete atos ilegais. Até porque a própria imprensa, a polícia e o Estado trabalham a serviço do poder, de forma tendenciosa, aberta ou dissimuladamente, em prol do grande capital. A certeza da impunidade é a licença para o cometimento de qualquer crime, até mesmo para matar. Nesta convicção, os grandes latifundiários passam por cima de tudo e de todos que aparecem pela frente. Como exemplo disso, pode-se citar o caso da freira estadunidense Dorothy Stang, morta em 12 de fevereiro de 2005, pelos pistoleiros Rayfran e Clodoaldo, a mando dos fazendeiros e comerciantes Vitalmiro o “Bida” e Regivaldo o “Taradão” por intermédio de “Tato”. Fato este exposto no filme.

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Este é o valor, a recompensa e o cuidado disponibilizado pelo Estado para aqueles que defendem os pobres, o pequeno produtor e vão contra o sistema, o Estado e os grandes latifundiários. Essas pessoas pagam um preço alto, pagam com a vida.

Com isso, observa-se que continua, se não for maior hoje, a necessidade gritante e urgente de luta constante, mas, não por parte de um ou poucos, e sim de todos aqueles que sofrem por subjugações, pois, conforme é relatado no documentário: “de 1985 a 2005 foram cometidos 1426 homicídios ligados a conflitos agrários no Brasil. Apenas 76 casos foram levados a julgamento, 16 mandantes foram condenados. Nenhum deles está preso. Mais de 90% desses casos nunca chegaram à justiça.”

“Atualmente, só no Estado do Pará, cerca de 100 lideranças estão ameaçadas de morte. Entre elas 10 dos entrevistados.”

“Em 11 anos de criação do Grupo Móvel de Fiscalização, foram registrados cerca de 21 mil trabalhadores em regime análogo à escravidão. Estima-se que 25 mil trabalhadores são escravizados anualmente na Amazônia.”

É interessante observar ainda neste contexto, o argumento mesquinho dos grandes latifundiários, colocando em controvérsia o próprio sentido de propriedade, alegando que as terras devolutas não têm dono e que eles estão fazendo um favor em cuidá-las, bem como em dar uma oportunidade de trabalho àqueles povos que viviam nas favelas, bebendo água da lama, sem ter o que comer, nas secas do Nordeste etc.. Eles se aproveitam inclusive da inércia do Estado e de argumentos estatais, dos pequenos proprietários de terra e dos trabalhadores para legitimar suas ações. Por exemplo, há trechos no filme onde alguns entrevistados dizem que Deus não deixou nenhum dono de terra, esta não tem dono, a própria ministra Marina, em sua fala, ressalta essa situação. Isso, somado ao descaso estatal, leva a uma interpretação muito perigosa e que corrobora com o argumento dos opressores, pois, se a terra não tem dono, passa a ter a posse aquele que sabe protegê-la melhor, utilizando-se para isso os mais diversos meios. Assim, o trabalhador e o pequeno agricultor sempre saem em desvantagem. Deste modo, o Brasil chega ao século XXI sem conseguir se livrar desse carma.

Por isso, é importante, por um lado, a intervenção, a organização e a administração estatal e que este assuma sua responsabilidade e tenha compromisso com os menos favorecidos também, por outro, que estes perseverem nas lutas para que o Brasil não se perpetue como terra de ninguém, ou pior, daqueles que sabem matar mais, e para que alcance o tão almejado, pregado e defendido (em muitos casos apenas teoricamente) Direitos Humanos. Só assim será possível pensar em um Brasil mais solidário e igualitário e daí, buscar dar fim ou, pelo menos, minimizar todas as questões sociais expostas no documentário, já supracitadas, e outras que não foram citadas neste trabalho.

REFERÊNCIAS

CAMARGO, Beatriz. Documentário aborda trabalho escravo e conflitos de terra no Pará. Disponível em <http://reporterbrasil.org.br/2007/03/documentario-aborda-trabalho-escravo-e-conflitos-de-terra-no-para/> Acesso em 15 de jul de 2013.

Ciclo de Debates sobre Conflitos Agrários apresenta: Nas Terras do Bem-Virá Disponível em <http://www.ufrgs.br/pgdr/temas/eventos/ciclo_debates_nasTerrasDoBemVira.pdf> Acesso em 15 de jul de 2013.

Nas Terras do Bem Virá. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=VibNE-8dN7o> Acesso em 15 de jul de 2013.

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Sobre o autor
Alexandre Dias Carneiro

licenciado em letras com língua espanhola e bacharel em direito pela UEFS; bacharelando em teologia pelo CETAD; e especializando em direito processual penal pela Candido Mendes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

avaliação do 8º semestre do curso de direito da UEFS.

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