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Mutação constitucional

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01/03/2003 às 00:00
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3.MECANISMOS DE ALTERAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL

As Constituições podem ser alteradas, com a finalidade de adequar o seu texto com a realidade social em evolução, por meio de dois mecanismos, nomeados pela doutrina como sendo: formais ou informais.

Analisemos cada uma das espécies sublinhadas.

3.1.Formais [19]

Nesse tópico o embate que se leva adiante condiz com os instrumentos que propiciam a reforma do Texto Constitucional, é dizer, a possibilidade do Poder Constituinte reformador alterar formalmente disposições incrustadas na Carta Política, observando-se as limitações e requisitos impostos pelo Poder Constituinte originário.

Portanto há que se deixar claro que não se adentrará ao problemas das revoluções – implicando ruptura com a ordem jurídica anterior para, por meio de novo Poder Constituinte originário, instalar-se outro Ordenamento Fundamental (com ou sem a utilização de luta armada).

Conclui-se, desta forma, que o estudo se restringirá aos instrumentos de reforma da Constituição, assim entendido como o "processo formal de mudança das constituições rígidas, por meio de atuação de certos órgãos, mediante determinadas formalidades, estabelecidas nas próprias constituições para o exercício do poder reformador." [20]

Devidamente delimitado o assunto, analisemos, rapidamente, os institutos formais de reforma da Constituição.

3.1.1.Emenda Constitucional

"A emenda é o caminho normal que a lei maior estabelece para a introdução de novas regras ou preceitos no texto da Constituição. O estatuto supremo tem nesse instrumento do processo legislativo o meio apropriado para manter a ordem normativa superior adequada com a realidade e as exigências revisionistas que se forem manifestando." (21)

Utilizando-se de um instrumento previsto no próprio texto da Carta Política é possível alterar o conteúdo da mesma, adequando-a aos novos tempos. O instrumento Emenda Constitucional, para ser utilizado, deve observar os requisitos trazidos na própria Constituição e não transpassar as limitações que a mesma lhe impõe.

Consoante ressalta o Prof. Alexandre de Moraes: "... a emenda à constituição é produzida segundo uma forma e versando sobre conteúdo previamente limitado pelo legislador constituinte originário. Dessa maneira, se houver respeito aos preceitos fixados pelo art. 60 da Constituição Federal, a emenda constitucional ingressará no ordenamento jurídico com status constitucional, devendo ser compatibilizada com as demais normas originárias. Porém, se qualquer das limitações impostas pelo citado artigo for desrespeitada, a emenda constitucional será inconstitucional, devendo ser retirada do ordenamento jurídico através das regras de controle de constitucionalidade, por inobservarem as limitações jurídicas estabelecidas na Carta Magna." [22]

Ressalte-se, mais uma vez, o que interessa para o tema ora em desenvolvimento, ou seja, as emendas constitucionais são meios formais de alteração das Constituições, constante no corpo das próprias (com seus requisitos e limites), tendo como finalidade evitar o engessamento dos seus dispositivos.

As emendas constitucionais são normas que revogam ou alteram outras normas constitucionais por meio de uma alteração na dicção do normativo constitucional emendado.

3.1.2Revisão Constitucional

O Prof. Celso Ribeiro Bastos [23], analisando a Carta Magna brasileira de 1988, traz à tona a necessidade de se prever instrumentos que permitam uma evolução dos Textos Constitucionais, adequando-os ao futuro e, nesse contexto, alinha os principais contornos da Revisão Constitucional nos seguintes termos:

"Além disso, o novo modelo político e administrativo implementado, como todo novo projeto, precisaria de reparos e foi com essa sabedoria que o constituinte previu um processo de atualização e adaptação da constituição, ao qual deu o nome de Revisão. Tal processo implica num período de facilitação de mudanças constitucionais, no qual o Congresso Nacional se reúne em sessões unicamerais e vota em único turno os projetos de emenda à Constituição, tendo que respeitar um quorum de maioria absoluta. Isto, ao invés dos três quintos exigidos em duplo turno em cada uma das Casas para uma reforma ordinária."

Da mesma forma que as emendas constitucionais, a revisão constitucional também implica numa alteração da dicção do normativo constitucional como forma de conferir-lhe outro conteúdo.

3.2.Informais

Passaremos agora a esmiuçar o mecanismo de alteração informal da Carta Magna, que tem como principal característica conferir um novo entendimento a um normativo constitucional, fruto da evolução da sociedade, sem que para tanto seja necessária qualquer modificação no texto da Lei Maior.

3.2.1.Mutação Constitucional

O fenômeno informal de alteração do conteúdo do Texto Constitucional é denominado de "mutação constitucional". Dizemos do conteúdo do Texto porque em verdade, não há qualquer alteração formal na letra da Lei, a mudança ocorre no entendimento da mesma em virtude da dinâmica evolução social.

Com maior precisão, define Uadi Lammêgo Bulos [24] a mutação constitucional como "O fenômeno, mediante o qual os textos constitucionais são modificados sem revisões ou emendas,... ".

O mesmo autor, após indicar onde inicialmente se detectou a existência do fenômeno jurídico ora em foco [25] e percorrer as diversas impressões doutrinárias sobre o tema, conclui que as "... mutações constitucionais como uma constante na vida dos Estados, e as constituições, como organismos vivos que são, acompanham a evolução das circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que, se não alteram o texto na letra e na forma, modificam-no em substância, significado, alcance e sentido dos dispositivos."

"Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais." (26)

Finalmente, ainda nos aproveitando do entendimento do Prof. Uadi, ressalta o mestre, na direção do caminho que estamos construindo desde o Capítulo 1, que: "De fato, as mudanças informais são difusas e inorganizadas, porque nascem da necessidade de adaptação dos preceitos constitucionais aos fatos concretos, de um modo implícito, espontâneo, quase imperceptível, sem seguir formalidades legais."

"Atuam modificando o significado das normalizações depositadas na Constituição, sem vulnerar-lhes o contudo expresso; são apenas perceptíveis quando comparamos o entendimento dado às cláusulas constitucionais em momentos afastados no tempo." (27)

Desta feita é válido asseverar que a mutação constitucional constitui uma alteração no conteúdo de alguma(s) norma(s) constitucional(is), sem qualquer alteração no Texto Maior, objetivando o acompanhamento da evolução do pensamento do corpo social, mantendo intacto o entrosamento entre soberania popular e Norma Fundamental.

3.2.1.1.Hipóteses Doutrinárias

As mutações constitucionais detêm as mais diversas formulações doutrinárias sobre as espécies de modalidades nas quais podem se apresentar. Tal constatação impede que se construa uma delineação uniforme sobre o assunto ("modalidades"), ou uma congruência de entendimentos a respeito.

Desta forma, apresenta a doutrina uma variação considerável de modalidades do instituto, fruto das diferentes perspectivas captadas. As hipóteses formuladas de mutação constitucional assim o são com o fito de abarcar determinado objetivo, de desenvolver o tema com a intenção finalística de desnudar certo aspecto, ou conseqüência, ou viabilidade/legalidade do fenômeno jurídico. Estas considerações fazem surgir inúmeros critérios informadores das mais variadas acepções do tema. Confira-mo-los.

O Prof. Uadi Lammêgo Bulos salienta alguns doutrinadores estudiosos do assunto, trazendo o critério utilizado pelos mesmos para identificar a mutação constitucional: "Hsü Dau-Lin, seguido por Pablo Lucas Verdú e por Manuel García Pelayo, esboçou quatro categorias: 1ª mutação constitucional através de prática que não vulnera a Constituição; 2ª mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3ª mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Carta Maior; 4ª mutação constitucional através da interpretação." [28]

Ainda segundo o Prof. Uadi, Paolo Biscaretti Di Ruffia agrupa em dois ramos bem delineados as hipóteses de mutação constitucional: "No primeiro, encontramos as modificações operadas em decorrência de atos elaborados por órgãos estatais de caráter normativo (leis, regulamentos etc.) e de natureza jurisdicional (decisões judiciais, principalmente em matéria de controle de constitucionalidade das leis). No segundo ramos, estão as mudanças ocorridas em virtude dos fatos de caráter jurídico (como os costumes); de natureza político-social (normas convencionais ou regras sociais de conduta correta frente à Carta Suprema); ou, simplesmente, as práticas constitucionais (tais como a inatividade do legislador ordinário que, não elaborando normas de execução, logra, substancialmente, impedir a realização efetiva de disposições constitucionais)." [29]

Milton Campos [30] entendeu poder ser verificada a mutação constitucional na complementação legislativa, construção judiciária e consenso costumeiro. José Horácio Meirelles Teixeira [31], acompanhando Milton Campos no que atine à complementação legislativa, salientou a ocorrência do instituto quando da interpretação da constituição e do aparecimento dos costumes.

E prosseguindo nas variantes doutrinárias, temos que: "Para Wheare, tanto a interpretação judicial como usos e costumes podem provocar mutações constitucionais. Em sentido idêntico estão Humberto Quiroga Lavié e Hector Fix Zamudio."

"Já Anna Cândida da Cunha Ferraz examinou a interpretação constitucional, em suas várias modalidades, e os usos e costumes constitucionais, enquanto processos informais de mudança da Constituição, procurando seguir, em essência, a classificação proposta por Biscaretti Di Ruffia." (32)

Como já havíamos adiantado são utilizados na abordagem da mutação constitucional os mais diferentes critérios, restando difícil concatenar, as formulações doutrinárias existentes, numa classificação sintética.

Aliás é natural que tal aconteça, pois a Norma Fundamental não consegue agasalhar todos os casos que suplicam o seu regramento (nem é essa sua função), bem como não pode prever acontecimentos futuros que venham a necessitar de nova dicção normativa, o que viabiliza a variedade de formas, modalidades, hipóteses de mutação constitucional (consoante entendimento doutrinário majoritário).

3.2.1.2.Nosso Entendimento

É certo que, como já adiantamos no capítulo anterior, ante a própria característica da Carta Maior, de norma fundamental que não deve descer a minúcias, juntamente com a dinâmica do pensamento do corpo social, multiplicam-se as hipóteses de mutação constitucional e os critérios utilizados na tentativa de racionalizar o fenômeno.

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Entretanto, como se já não fossem suficientes as modalidades apresentadas pelos mais ilustres juristas, passamos a demonstrar qual é nosso entendimento a respeito das possíveis manifestações da mutação constitucional, apresentando uma classificação que, se bem utilizada, terá como utilidade imprimir maior discussão sobre um tema tão esquecido e de inegável importância para o estudo do direito constitucional.

Em nossa singela e despretensiosa classificação entendemos que o gênero mutação constitucional apresenta apenas duas espécies, que denominamos "puras" e "impuras". Segundo esse entendimento, esta subdivisão é suficiente para abarcar as possibilidades de alteração do conteúdo do Texto Constitucional sem a mudança formal dos seus artigos.

Sem querermos ser reducionistas, introduzindo o conteúdo num continente que lhe não comporta (o que implicaria enfocar reduzida parcela do instituto, lançando mão de um bem vindo aprofundamento do tema), entendamos a classificação supra sugerida e verifiquemos a sua abrangência e pertinência.

3.2.1.2.1.Mutações Constitucionais "Puras"

Como viemos acentuando desde o início do presente trabalho, as Constituições nada mais são (ou pelo menos devem ser) que o reflexo dos pensamentos, dos valores, do estágio de desenvolvimento existente em uma determinada sociedade num determinado momento.

Em sendo a sociedade um grande aglomerado pulsante de idéias que está sempre se desenvolvendo, evidentemente que as Cartas Fundamentais devem acompanhar tal dinamismo sob pena de não mais se identificarem com o corpo social que regram.

Para tanto, como visto, existem os instrumentos formais de alteração das Constituições (revisão e emenda) e os informais, como a mutação constitucional, fenômeno qual estamos cuidando no momento, e que se divide em duas espécies: as mutações constitucionais puras e as mutações constitucionais impuras.

No nosso entender as mutações constitucionais puras seriam aquelas que alteram o conteúdo da norma constitucional em virtude da mudança do pensamento, do entendimento, ponto de vista da sociedade, como um todo, sobre determinado tema ou assunto.

As mutações constitucionais puras nada mais são que o ajuste do perfeito reflexo que deve existir entre a sociedade (ou os valores que ela contem) e a Regra Fundamental que a regula ("Direito"), é o redirecionamento da exata similitude que deve existir entre o espírito vivente no seio da soberania popular e que igualmente deve habitar o âmago da respectiva Constituição.

Essa espécie de mutação altera o conteúdo das normas constitucionais para fazer com que elas voltem a se adequar aos novos valores da sociedade, dá novo sentido a estes dispositivos, fazendo-os entrar em sintonia com a dinâmica da evolução social, garantindo a eficácia da Constituição.

Entendido o significado e o sentido das mutações constitucionais puras, ressaltamos que as modalidades de mutação apresentadas pela doutrina findam por encontrarem-se contidas em uma das duas espécies ora apresentadas (vide sobre mutações constitucionais "impuras" no capítulo seguinte). As hipóteses de mutações constitucionais aventadas acondicionam-se quer na modalidade de mutação pura, quer na impura, delas fazendo parte integrante, e não elemento distinto.

Assim, tentando dispor do maior número de "modalidades" possíveis (mas não as exaurindo), teríamos como elementos integrantes das mutações constitucionais puras os usos e os costumes, as interpretações e as construções judiciais; por sua vez, encontraríamos nas mutações constitucionais impuras, como seus elementos, as complementações legislativas, as práticas governamentais, legislativas e judiciárias e os grupos de pressão.

Os usos e costumes nada mais são do que um caminho que conduzirá a uma mutação constitucional pura, entretanto não são modalidades de mutação, o fenômeno é um só: sintonia entre evolução social e sistema jurídico fundamental, os usos e os costumes são apenas parte integrante do fenômeno, o compõe, mas não são espécie do gênero mutação.

Da mesma forma a interpretação é um importantíssimo instrumento das mutações puras. Aliás, nosso entendimento é que os usos e costumes, bem como a construção judicial (adiante melhor explicado) podem muito bem estarem contidas no elemento interpretação, assim, teríamos esta como elemento mor das mutações constitucionais puras e contida na mesma abarcaríamos, como dito, os usos e costumes e as construções judiciais.

Entretanto, melhor é delinear separadamente cada instituto para o acertado e claro entendimento da nova classificação ora apresentada.

Prosseguindo, a interpretação, processo de entendimento do normativo analisado, como é realizada por um ser inserido no círculo social, que capta seus estímulos e novas sensações (de forma idiossincrática, é certo), propicia um alinhamento de pensamentos que finda por trazer o sentido da norma para o futuro a que pertence.

Novamente ressaltamos, a interpretação, muito embora um importante processo, é elemento das mutações constitucionais puras e não sua modalidade; aquela é instrumento que integra e ajuda no desenvolvimento desta.

Da mesma forma as construções judiciais, com a peculiaridade que caso sejam elaboradas por força de pressões de qualquer espécie, é dizer, caso não reflitam, pura e simplesmente, o refluxo de uma mudança de valores e pensamentos de todo o corpo social, devem ser consideradas mutações constitucionais impuras.

Analisemos melhor a hipótese no Capítulo seguinte.

3.2.1.2.2.Mutações Constitucionais "Impuras";

Com a apresentação do nosso entendimento a respeito do que são as mutações constitucionais impuras, restará melhor elucidado, por via oblíqua, as mutações constitucionais puras, principalmente ante o inevitável confronto entre as duas espécies de mutação.

Entendemos como sendo mutações constitucionais impuras aquelas que impõem uma alteração no conteúdo do Texto Fundamental, sem alteração do seu dispositivo (que permanece intacto), entretanto não como reflexo das alterações ocorridas nos ideários sociais, mais sim advindas de pressões efetivadas por determinados grupos (ainda que representativos de determinada parcela da sociedade), de práticas governamentais, legislativas ou judiciárias, ou ainda de complementações legislativas (dentre outros).

Note-se que para as hipóteses acima indicadas não há mudança no conteúdo do Texto Magno em virtude da alteração de conceitos sociais; a pureza existente entre a transformação do espírito vivente no seio comunitário refletindo diretamente na mudança de entendimento da Carta Fundamental inexiste, o que se tem são transformações daquela concepção jurídica desenvolvida por forte "influência" de setores da sociedade (ou então por órgãos que não a representam na sua totalidade) com suas ações.

Desenvolvendo melhor o conceito, analisemos os chamados grupos de pressão. Referidos grupos (lobbies, sindicatos, partidos políticos etc.), invariavelmente, esforçam-se por defender interesses setoriais das respectivas classes, que muito embora possam imprimir uma mudança no conteúdo normativo da Lex Legum, tal não é fruto, como insistentemente ressaltado, da alteração do pensamento social como um todo e sim, como o próprio nome diz, da "pressão" exercida por esses grupos.

O mesmo ocorre com as práticas governamentais, legislativas e judiciárias, que também podem tornar-se elemento da mutação constitucional mas não na sua pureza, não em virtude de influxos sociais.

No que diz respeito à complementação legislativa, cabe uma análise um pouco mais detida. As complementações legislativas seriam as leis complementares, leis ordinárias etc., que tem como objetivo conferir efetividade a alguma norma constitucional que de tal qualidade não é provida por amoldar-se ao grupo das normas de eficácia contida ou limitada. [33]

Como ocorre com os demais institutos mencionados neste capítulo, as complementações legislativas também podem conferir uma alteração no conteúdo normativo constitucional, não, entretanto, em decorrência de qualquer alteração do espírito dinâmico do corpo social.

É certo que à referida conclusão poder-se-ia contrapor que as complementações são efetivadas pelos legítimos representantes da sociedade (parlamentares), logo, implicariam na captação da mudança do pensamento social, estando-se frente a uma mutação constitucional legitimada pela soberania popular e, via de conseqüência, impregnada da mais lídima e cristalina "pureza".

Entretanto assim não entendemos. Inicialmente porque as complementações sofrem intensa influência de grupos de pressão e são frutos de forte confronto político de interesses, sendo certo que essas situações não necessariamente refletem qualquer alteração no pensamento político-social. [34]

Além do que entendemos que a necessidade da edição de uma lei para a alteração do entendimento dum normativo constitucional finda por contaminar o instituto da mutação, que, na sua pureza, advém da simples evolução social.

Vale frisar, no entanto, que caso a complementação legislativa venha a refletir uma mudança de valores ocorrida na sociedade, considerada-a na sua inteireza, então estaremos diante de uma mutação constitucional pura. Mas, note-se, que neste caso a complementação vem apenas "formalizar" a mutação constitucional, pois que, em verdade, a mesma já existia.

Aliás, quando o mesmo ocorrer com relação a qualquer das hipóteses supra elencadas o raciocínio será o mesmo, ou seja, deverão ser consideradas mutações constitucionais puras. Isto porque é pura a mutação constitucional que corresponda a uma evolução dos valores existentes na sociedade (e não de fragmentos desta), independentemente do elemento contido no fenômeno de mutação, utilizado para averiguar a ocorrência do mesmo (acentuamos que a recíproca é verdadeira para os elementos acentuados como integrantes das mutações constitucionais puras).

Finalmente, necessário uma menção especial às construções judiciais. Como visto, num primeiro momento, enquadramos tal elemento das mutações constitucionais nas espécies que denominamos puras. Isto porque, entendemos que as construções judiciais refletem o momento social vivido, devidamente adequada às normas atinentes a um caso concreto. Desta feita, o fruto de tal equação só pode ser uma mutação constitucional pura.

Entretanto, ocorre que, pode acontecer das construções judiciais também sofrerem pressões de grupos sociais (ou quejandos). Nesta hipótese, como já salientado, o que se verificará é uma mutação impulsionada por entendimentos advindos de setores da sociedade, logo, da espécie das mutações constitucionais impuras.

3.2.1.3.Concluindo Sobre a Classificação

A simples classificação das mutações constitucionais em apenas duas espécies, as quais chamamos puras e impuras, decorre do nosso entendimento segundo o qual as mutações ocorrem como uma forma de adequar a Carta Fundamental (dever ser), à realidade hodierna da sociedade (ser), à evolução do pensamento, dos valores do corpo social. Esse é o fenômeno.

Entretanto, referido fenômeno pode findar por alterar o conteúdo de uma norma do Texto Maior, sem imprimir qualquer modificação à letra da mesma (mutação constitucional) e não refletir a evolução do pensamento de toda a sociedade, mas sim apenas de um setor da mesma, de um grupo. Neste caso estaríamos frente a uma mutação constitucional da espécie impura, porque existe a alteração informal da Carta Magna, muito embora desprovida de pureza, é dizer, do simples e natural reflexo advindo da evolução do pensamento social como um todo, por si só, influindo naturalmente na alteração informal da Constituição.

As chamadas modalidades, ou hipóteses, ou categorias de mutação constitucional nada mais são do que elementos desse mesmo fenômeno. O que se pode fazer é analisar como esse elemento atua no fenômeno da mutação constitucional, mas não classificá-lo como categoria de mutação, ou espécies diferençadas de mutação constitucional.

A assertiva acima pode ser comprovada com o seguinte entendimento: imaginemos que hipoteticamente fosse possível visualizarmos a essência das mutações constitucionais. Veríamos, desta forma, uma alteração no comportamento social influindo diretamente no conteúdo de uma norma constitucional como forma de adequá-la ao novo tempo.

Essa é a essência da mutação constitucional. Entretanto, caso seja utilizada a interpretação, e.g., para melhor detectar o fenômeno ora em análise, será a mesma, utilizada como elemento damutação constitucional, pois não interfere na essência do instituto, logo, não pode ser alçada ao cargo de uma sua modalidade ou espécie, pois, caso assim estivéssemos procedendo, estaríamos classificando institutos distintos dentro de uma mesma categoria.

Note-se que o acima demonstrado em nada discrepa dos entendimentos doutrinários elaborados pelos mais abalizados juristas, como viemos acentuando ao longo de todo o trabalho. Para mais uma vez ratificarmos nossa posição, nos apoiamos na sábia lição de Karl Loewentein : "En la mutación constitucional, por otra lado, se produce una transformación en la realidad de la configuración del poder político, de la estructura social o del equilíbrio de intereses, sin que quede actualizada dicha transformación en el documento constitucional: el texto de la constitución permanece intacto. Este tipo de mutaciones constitucionales se da en todos los Estados dotados de una constitución escrita y son mucho más frecuentes que las reformas constitucionales formales. Su frecuencia e intensidad es de tal orden que el texto constitucional en vigor será dominado y cubierto por dichas mutaciones sufriendo un considerable alejamiento de la realidad, o puesto fuera de vigor."

Todo o desenvolvido neste trabalho, até o momento, conduz à construção da classificação ora apresentada, principalmente tendo em vista a finalidade de distinguir o instituto jurídico em análise, dos demais elementos que o integram.

Entretanto, referida classificação não equivale a qualquer verdade absoluta e, como já havíamos anotado, tem como maior objetivo ampliar o âmbito de discussão do tema. No mais, a nova taxonomia apresenta contornos sutis, de difícil distinção, mas que esperamos termos sido meticulosos o suficiente para acentuar e demonstrar com clareza as nuances e a essência do instituto.

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Sobre o autor
Ronaldo Guimarães Gallo

Procurador Federal em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLO, Ronaldo Guimarães. Mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3841. Acesso em: 19 abr. 2024.

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