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A inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos à execução fiscal

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3.  INCONSTITUCIONALIDADE DA EXGÊNCIA DE GARANTIA DO DÉBITO COMO CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL

A Lei 6.830/1980, em seu art. 16, §1º dispõe que: “não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução”. A exigência de garantia do débito para exercício do direito de ação e  defesa afronta a Constituição Federal de 1988.

A Constituição Federal de 1988 garante o livre acesso ao judiciário, prevendo em seu art. 5º, inc. XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se do denominado Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, também chamado de Princípio do Livre Acesso ao Judiciário ou direito de ação ou defesa.

Segundo este princípio, todo aquele que tiver sofrido ou for ameaçado de sofrer lesão a seu direito, tem a garantia de socorrer-se ao Poder Judiciário. Nada poderá impedir intervenção do Poder Judiciário, bem como limitar-se ou condicionar-se o seu acesso.

Entretanto, o acesso ao Judiciário não se restringe ao direito de ação, mas implica também na garantia do direito de defesa. José Afonso da Silva assevera que[4]:

O art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo. Não se assegura aí apenas o direito de agir, o direito de ação. Invocar a jurisdição para a tutela de direito é também direito daquele contra quem se age, contra quem se propõe a ação. Garante-se a plenitude de defesa, agora mais incisivamente assegurada no inc. LV do mesmo artigo.

Segundo Liebman, em seu Mannuale di diritto processuale civille[5]:

 O poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica, italianos (brasileiros) e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade e pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos.

Intrinsicamente ligada a inafastabilidade da Jurisdição estão as garantias do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Proclama a Constituição Federal, art. 5º, inc. LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e inc. LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Os princípios declinados asseguram que somente teremos nossa esfera individual invadida mediante instauração de um processo formal, o qual observará o ordenamento jurídico e garantirá o exercício do direito de defesa.

Dirley da Cunha Junior define devido processo legal como “a exigência da abertura de regular processo como condição para restrição de direitos”, contraditório como “garantia que assegura a pessoa sobre a qual pesa uma acusação o direito de ser ouvida antes de qualquer decisão a respeito”, e ampla defesa como “garantia que proporciona a pessoa contra quem se imputa uma acusação a possibilidade de defender-se e provar o contrário”.[6] Assim, somente pode se falar em respeito a estes princípios quando as partes tiverem asseguradas a possibilidade de influenciaram na decisão judicial, tomando ciência do processo, sendo ouvidas e produzindo provas, mediante regras pré-estabelecidas e em igualdade de condições.

Por sua vez, Celso Ribeiro Bastos lecionando sobre o devido processo legal, diz[7]:

Por ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se, portanto, a aplicação da lei. O princípio se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passaram a se beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado.

Resta claro que os princípios da inafastabilidade da jurisdição, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, estão a garantir ao indivíduo o livre acesso ao Judiciário, sem condições ou limites, para o exercício dos seus direitos. Desta forma, condicionar o ingresso dos embargos à execução fiscal, à prévia garantia do débito, ofende a Constituição Federal.

Destarte, os embargos à Execução fiscal são o meio de defesa do executado, ação em que se poderá alegar qualquer matéria de defesa, uma vez que na execução fiscal em si, somente é cabível exceção de pré-executividade, instrumento que não admite dilação probatória e em que somente se alega matérias conhecíveis de ofício pelo juiz.

Neste contexto, podemos observar que o Supremo Tribunal Federal, já reconheceu a inconstitucionalidade de se exigir à garantia do débito como condição para ingresso de recurso administrativo, editando a Súmula Vinculante nº 21: “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévio de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.

Se na esfera administrativa não pode haver limitação ao direito de defesa, condicionando-o a garantia do débito, com mais razão não poderá havê-lo como limite ao exercício do direito de defesa em juízo, uma vez que cabe ao Judiciário a solução final da lide, inclusive fazendo controle dos atos administrativos.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal também já reconheceu a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio como condição para ações judiciais de natureza tributária. Dispõe a Súmula Vinculante nº 28: “é inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário”.

A súmula teve como precedente a Adin 1074-3, em que se declarou a inconstitucionalidade do art. 19 caput da Lei 8.870/1994, que exige depósito prévio para ações judiciais que discutem débito com o INSS, por ofensa ao art. 5º, incs. XXXV e  LV da Constituição Federal.

O Ministro relator Eros Grau em seu voto destacou que[8]:

Por outro lado, ao dispor de forma genérica que “as ações judiciais, inclusive cautelares, que tenham por objeto a discussão de débito para com o INSS serão, obrigatoriamente, precedidas do depósito preparatório”, o artigo 19 da Lei 8.870/94, consubstancia barreira ao acesso ao Poder Judiciário. A mera leitura do texto normativo impugnado dá conta da imposição de condição à propositura das ações cujo objeto seja a discussão de créditos tributários, ainda que não esteja em fase de execução.

O Relator ainda citou parte do voto do Ministro Francisco Resek em medida cautelar na referida Adin[9]:

O que o dispositivo impugnado institui importa cerceamento do direito à tutela jurisdicional. O artigo determina que a admissão de ‘ações judiciais’ que tenham por objeto a discussão de débito para com o INSS se condiciona – obrigatoriamente – ao depósito preparatório do valor do débito cuja legalidade será discutida. Esta claro que o (sic) a norma cria séria restrição à garantia de acesso aos tribunais (art. 5º - XXXV da CF).

O que se pretende, à primeira vista, é assegurar a eventual execução. Nesta trilha, a norma não representaria grande novidade em nosso ordenamento jurídico. Entretanto, o que a singulariza é a restrição vestibular e ponderável do acesso ao Poder Judiciário. A necessidade do depósito, tal como aqui lançada, limitará o próprio acesso a primeira instância.

Da garantia de proteção judiciária decorrem  diversos princípios tutelares do processo – o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição, entre outros – e o depósito aqui exigido poderá em muitos casos inviabilizar o direito de ação.

A procedência da Adin 1074 demonstra a inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito para ingresso dos embargos à execução fiscal.  Os fundamentos expostos pelo STF aplicam-se ao caso em análise. Exigir-se garantia da dívida implica em violação aos princípios expostos.

Aliás, a súmula vinculante 28 deve ser utilizada como fundamento para a inexigibilidade da garantia do débito. Referida súmula refere-se as ações judiciais nas quais se pretenda discutir exigibilidade do crédito tributário e os embargos à execução fiscal tem esta natureza. Os Embargos à Execução Fiscal tem natureza de ação de conhecimento e se discute o crédito tributário.

Outrossim, o extinto Tribunal Federal de Recursos já havia decido a inexigibilidade de depósitos como condição para admissibilidade da ação judicial, editando a súmula 247: “Não constitui pressuposto da ação anulatória do débito fiscal o depósito de que cuida o art. 38 da Lei 6.830/80”.

Podemos ainda asseverar, que a exigência de garantia do débito  ofende ao princípio da igualdade.

O art. 5º, caput da Constituição Federal proclama que todos são iguais perante a lei.  Todavia, a moderna doutrina nos ensina que não basta a isonomia meramente formal, mas deve-se buscar a igualdade material das partes. Por igualdade material entende-se tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, no limite de suas desigualdades, para alcançar-se a isonomia. Pedro Lenza ensina que[10]:

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Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, uma vez que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isto porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei.

Desta forma, exigir de todos a garantia do débito, sem levar-se em consideração a diversidade da situação econômica dos indivíduos, é privilegiar aqueles que possuem melhor condição financeira. A exigência de garantia acaba por possibilitar o exercício do direito de defesa somente aos que possuem dinheiro para depósito bancário ou fiança, ou bens para oferecer a penhora.

Cumpre observar ainda, que nosso Poder Legislativo já deu o primeiro passo para garantia do direito de defesa dos executados, embora apenas naquelas execuções regidas pelo Código de Processo Civil. A Lei 11.382/2006, que alterou dispositivos do referido código, deixou de exigir a garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos do devedor, in verbis: “o executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos” (Art. 736).

O tratamento diferenciado dos procedimentos executivos, não se justifica face ao princípio da igualdade material, não há razões para exigir-se garantia do débito na execução fiscal e não exigi-lo na execução comum, ambos os executados devem ter a possibilidade de exercer o direito de defesa sem limitações ou condições. Ademais, não bastasse o tratamento diferenciado entre executados, também não se justifica a prerrogativa da Fazenda Pública de somente em suas execuções exigir-se a garantia do débito, mormente se considerarmos que a Fazenda Pública já conta com um procedimento mais célere na cobrança judicial, não se justificando maiores obstáculos a defesa. O tratamento diferenciado fere o princípio da isonomia.

Nosso legislador, ciente da inconstitucionalidade e falta de justificativa para o tratamento dispare, já iniciou o debate para alteração desta realidade. Os Projetos de Lei 2412/2007 e 5080/09, que visam a alteração da disciplina da execução fiscal, não exigem a garantia do débito como condição de admissibilidade dos Embargos. A exposição de motivos do Projeto de Lei 5080/09, expressamente corrobora nosso posicionamento[11]:

18. Para a defesa do executado adota-se o mesmo regime proposto na execução comum de título extrajudicial, onde os embargos podem ser deduzidos independentemente de garantia do juízo, não suspendendo, como regra geral, a execução.

 19. Prestigia-se, assim, o princípio da ampla defesa, que fica viabilizado também ao executado que não disponha de bens penhoráveis. Desaparece, por conseguinte, a disciplina da prévia garantia do juízo como requisito indispensável à oposição da ação incidental. 

Os projetos de leis evidenciam que a exigência de garantia de débito, não corresponde ao anseio da sociedade e nem se amoldam a Constituição Federal de 1988.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80) exige a garantia do débito como condição de admissibilidade dos Embargos à Execução Fiscal. Entretanto, tal exigência ofende a Constituição Federal de 1988, devendo ser declarada não recepcionada.

Com efeito, os princípios da inafastabilidade da jurisdição, contraditório e ampla defesa e igualdade, garantem o livre e incondicionado acesso ao Poder Judiciário para o exercício do direito subjetivo de ação ou defesa.

 O Supremo Tribunal Federal, embora ainda não tenha decidido especificamente sobre o tema, já demonstrou a inconstitucionalidade destas exigências, editando as Súmulas Vinculantes números 21 e 28, bem como o Poder Legislativo já evoluiu deixando de exigir a garantia do débito nos embargos do devedor (art. 736 CPC) e debate alterações na Lei de Execução Fiscal.

Desta forma, enquanto não haja alteração legislativa ou manifestação específica da Suprema Corte sobre o tema, devemos afastar a exigência da garantia com a aplicação da Súmula Vinculante nº 28, uma vez que  os embargos à execução fiscal têm natureza de ação de conhecimento e objetiva a discussão do crédito tributário, amoldando-se à descrição da súmula.


BIBLIOGRAFIA

[1] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2014.

[2] FARIA, Carolina Lemos. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/34801/o-fim-da-competencia-delegada-em-execucao-fiscal-promovida-pela-uniao-autarquias-e-fundacoes-publicas-federais>. Acesso em 10.02.2015.

[3] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2014.

[4] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2000.

[5] Apud Silva, José Afonso, op. cit.

[6] JUNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2009.

[7] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

[8] Supremo Tribunal Federal. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 10.02.2015.

[9] Supremo Tribunal Federal. Op. cit.

[10] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2012.

[11] Câmara dos Deputados. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 15.02.2015

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Sobre o autor
Rodrigo Fernandes Lobo da Silva

Analista judiciário da Justiça Federal de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté - Unitau . Pós Graduado lato sensu em Direito Tributário pela Anhanguera Uniderp. Pós Graduado lato sensu em Direito do Estado pela Anhanguera Uniderp. Pós Graduado Lato Sensu em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Cataria - Unisul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Fernandes Lobo. A inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos à execução fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5294, 29 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38771. Acesso em: 4 mai. 2024.

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