Grande parte dos conflitos trabalhistas que já enfrentei referiam-se a casos de “Pejotização” de empregados. A palavra, criada pela Doutrina Trabalhista e derivada da sigla “PJ” que significa “pessoa jurídica”, remete-se aos trabalhadores que são contratados por meio de pessoa jurídica interposta para exercer atividade idêntica ou semelhante às atividades exercidas pelos empregados “celetistas” da empresa contratante, mediante verdadeira relação de emprego.
A conduta, tratada pela jurisprudência como um “fenômeno”, apesar de já ser muito conhecida por empregados e empregadores, ainda traz muitas dúvidas a esses e aos profissionais do direito, razão pela qual decidi por dedicar-lhe um artigo.
Dividirei este conteúdo em duas partes. Na primeira tratarei sobre a pejotização e a relação de emprego de maneira ampla, geral. Na segunda parte farei, a convite e em conjunto com a minha parceira Amanda Bernardes, uma especificação quanto à pejotização na Área Médica.
PARTE 02 – A PEJOTIZAÇÃO NA ÁREA MÉDICA
Cientes dos conceitos acerca da pejotização e da relação de emprego, passamos à segunda parte do artigo, na qual faremos uma análise quanto à contratação de médicos e demais profissionais da saúde por meio de pessoa jurídica interposta.
Atualmente, a prática da pejotização é conduta costumeira na área da saúde. Visando a redução de despesas, os hospitais negam aos médicos e demais profissionais da saúde os seus direitos trabalhistas, contribuindo, assim, para a precarização do exercício da medicina.
Não somente na área privada, mas, também, na área pública, os empregadores vêm pautando sua atuação nestes moldes de contratação, tornando-se, do mesmo modo, agentes dessa precarização.
Em regra, a contratação de servidores é feita por meio de concurso público, conforme estabelece o artigo 37, II, da Constituição Federal. No entanto, a Lei 8.745 de 9 de dezembro de 1993 prevê a possibilidade de contratação direta, mediante contrato a termo, para atender necessidades temporárias e de excepcional interesse público, sendo, essa exceção, uma das formas de perpetrar a fraude.
Outro artifício para a redução de custos no meio público é a terceirização, por meio da interveniência de contratos com Fundações de Santa Casa, contratos com cooperativa, ou mesmo contratação por meio de pessoa jurídica interposta (pejotização).
Os profissionais contratados sob a forma de pessoa jurídica, entretanto, apontam algumas vantagens dessa forma de contratação, sendo estas a maior liberdade profissional, por uma realidade que pode se aproximar, de fato, ao contrato autônomo; a possibilidade da formação de mais relações de trabalho; e a tributação inferior àquela qual estão submetidos os empregados “celetistas”.
Contudo, as desvantagens apontadas são muitas, dentre as quais podemos citar: a fragilidade do vínculo; a insegurança por ele gerada e a perda de todos os direitos trabalhistas garantidos na Consolidação das Leis do Trabalho e pelas leis previdenciárias, como: férias, 13º salário, horas extras, adicional pelo trabalho noturno e insalubre, repouso semanal remunerado, FGTS, estabilidade à gestante, aviso prévio, multa de 40% sobre o FGTS em caso de despedida arbitrária, licença maternidade e as vantagens decorrentes das normas coletivas, como assistência médica e odontológica, prêmio assiduidade, etc.
Ademais, a vantagem referente à possibilidade da formação de mais relações de trabalho, devido à contratação como pessoa jurídica, pode ser questionada, ao passo que, dependendo da carga horária contratada e das especificações da contratação, a assinatura da Carteira de Trabalho não terá o condão de impedir outros vínculos e, inclusive, o trabalho como autônomo em consultório.
Para o médico ou demais profissionais da saúde pejotizados, a busca pelos direitos sonegados somente pode ter êxito por meio de uma ação judicial trabalhista, pela qual será verificada a existência (ou não) dos elementos caracterizadores da relação de emprego: pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade, todos já analisados anteriormente.
Para descaracterizar a pessoalidade, o contratante teria que comprovar a fungibilidade entre os prestadores de serviços, ou seja, os sócios da pessoa jurídica contratada devem poder se substituir no trabalho em caso de indisponibilidade de qualquer deles. Porém, a maioria dos profissionais pejotizados não conhecem os seus sócios ou estão associados a terceiros totalmente alheios à relação de trabalho formada, logo, por eles não se podem substituir. Além disso, em um caso típico de pejotização, a contratação é feita intuito personae, ou seja, daquele profissional específico, assim, não será a empresa que realizará os serviços, mas, necessariamente, o médico ou profissional da saúde contratado, pessoa física, sob a fachada de sua respectiva pessoa jurídica.
Deve-se ressaltar que a conduta da “troca de plantões” entre profissionais de um mesmo hospital não descaracteriza, por si só, a pessoalidade da prestação de serviços, já que essa troca, normalmente, é feita nos moldes permitidos pelo empregador, e não pela ingerência da pessoa jurídica contratada, não havendo livre escolha do profissional pejotizado.
Do mesmo modo, como exemplo, podemos citar o seguinte julgado{C}[2] do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais - 3ª Região (grifou-se):
RELAÇÃO DE EMPREGO. MÉDICO. PESSOALIDADE. A pessoalidade exigida pelo artigo 3º como um dos pressupostos da relação de emprego resulta do fato de o empregado colocar à disposição do empregador sua energia psicofísica e não da infungibilidade da prestação de serviços. A organização empresarial comporta funções cujo exercício pressupõe qualificações relativamente homogêneas, o que torna normal a substituição de um empregado por outro, razão pela qual a prestação de serviços, embora intuitu personae, admite exceções temporárias, como, por exemplo, no caso de suspensão do contrato (afastamento por doença, parto, acidente, greve, etc). O simples fato de ocorrer a substituição da empregada médica por um colega do corpo clínico do hospital, em determinadas ocasiões, não evidencia a ausência da pessoalidade.
Da mesma forma, em uma contratação de pejotizado, o trabalho não é prestado de forma eventual ou esporádica, estando caracterizada a sua habitualidade, como se explicou na primeira parte deste artigo, e, também, é evidente a onerosidade da contratação, restando somente a comprovação da subordinação para caracterização do vínculo empregatício.
A subordinação remete à condição do pejotizado que deve se curvar ao poder diretivo do contratante (empregador), seja por ele próprio ou por seus prepostos (diretores, coordenadores, etc.), acatando suas disposições quanto ao tempo, modo e lugar da prestação do serviço contratado. Perceba a diferença entre o profissional pejotizado, que agirá sob os limites fixados pelo hospital que o contrata, e o profissional que aluga as dependências do hospital para realizar procedimento, por exemplo. Este último estará agindo sob sua própria ingerência, escolhendo a sua equipe e a remunerando como melhor lhe aprouver, não havendo que se falar em vínculo empregatício do médico com o hospital locador.
Destaca-se, neste ponto, uma situação em que, devido à ausência de subordinação e onerosidade na contratação, não haverá vínculo empregatício entre o médico e o hospital. Trata-se do o caso em que, como permitido pelo Código de Ética Médica, o médico aluga o espaço do hospital para atender aos seus pacientes de consultório, agindo, assim, com absoluta autonomia e afastando a caracterização do vínculo empregatício.
Outro critério que pode ser analisado de forma favorável ao profissional da saúde pejotizado, em uma ação trabalhista, é a forma de constituição da pessoa jurídica interposta ao contrato. Normalmente, esta constituição é feita por imposição do contratante para a formalização do contrato, não havendo, entre os sócios, o elemento característico da sociedade, que é a affectio societatis, ou seja, a intenção dos sócios de compartilhar lucros e perdas, de assumir as responsabilidades e os riscos do empreendimento, enfim, de partilhar a sorte da empresa.
Também deve-se levantar neste tópico a discussão acerca da terceirização de atividade-fim, até o momento[3], proibida pela determinação do inciso III, da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (grifou-se):
Súmula 331, Tribunal Superior do Trabalho.
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011.
[...]. III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio[4] do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. [...].
Ocorrendo a pejotização na área privada, nos casos em que esta for comprovada pela presença dos requisitos essenciais à relação de emprego, será aplicada a norma prevista pelo artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho e os princípios que regem o direito do trabalho, tornando nulos os atos praticados que tiveram o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos legais, sendo, por fim, condenada a contratante a pagar ao profissional pejotizado todos os direitos que lhe foram negados pela contratação fraudulenta.
Noutra vertente, porém, ocorrendo a pejotização na área pública, o prejuízo ao médico ou profissional da saúde será bem maior, na medida em que não será possível o reconhecimento do vínculo de emprego e a garantia do recebimento das verbas trabalhistas, como sumulou o Tribunal Superior do Trabalho (grifou-se):
Súmula 363, Tribunal Superior do Trabalho.
CONTRATO NULO. EFEITOS (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.
Súmula 331, Tribunal Superior do Trabalho.
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011.
[...]. II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). [...].
Contudo, para reduzir os prejuízos ao trabalhador pejotizado por ente público, seria possível, em tese, pleitear a aplicação do entendimento consubstanciado na Orientação Jurisprudencial 383 da Seção de Dissídios Individuais I do Tribunal Superior do Trabalho, a qual prevê a aplicação do salário equitativo (art. 12, A, Lei 6.019/1974), possibilitando o recebimento de todos os direitos legais e normativos, com a exceção do reconhecimento do vínculo (grifou-se):
Orientação Jurisprudencial 383, Seção de Dissídios Individuais I, Tribunal Superior do Trabalho.
TERCEIRIZAÇÃO. EMPREGADOS DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS E DA TOMADORA. ISONOMIA. ART. 12, “A”, DA LEI Nº 6.019, DE 03.01.1974. (mantida) - Res. 175/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011.
A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei nº 6.019, de 03.01.1974.
Verifica-se que a definição sobre a existência ou não do vínculo empregatício varia de acordo com cada caso, devendo-se analisar se estão presentes, no cotidiano do trabalhador, os elementos caracterizadores da relação de emprego, para, deste modo, buscar pela efetivação de seus direitos trabalhistas.
FONTES:
Consolidação das Leis do Trabalho, 1943.
Lei dos Empregados Domésticos, nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972.
Lei 6.019, de 3 de janeiro de 1974.
Lei de Execuções Penais, nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
Lei 8.745 de 9 de dezembro de 1993.
Súmula 331, Tribunal Superior do Trabalho.
Súmula 363, Tribunal Superior do Trabalho.
Orientação Jurisprudencial 383 da Seção de Dissídios Individuais I do Tribunal Superior do Trabalho.
Projeto de Lei número 4.330/2004.
TST. RR 10440520105240004. Relator: José Roberto Freire Pimenta. Data de Julgamento: 06/05/2015. 2ª Turma. Data de Publicação: DEJT 15/05/2015.
TST. RR 650-80.2010.5.03.0004. 3ª turma. Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo. Data de Julgamento: 15/02/2012. Data de Publicação: DEJT 24/02/2012.
TRT3. RO 0000090-60.2014.5.03.0017. Órgão Julgador: Sétima Turma. Relator: Marcelo Lamego Pertence. Revisor: Fernando Luiz G. Rios Neto. Data de Publicação: 24/04/2015. Disponibilização: 23/04/2015, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 195.
TRT3. Recurso Ordinário 0000096-23.2011.5.03.0001. 7ª Turma. Des. Convocada Maristela Iris S. Malheiros. Data da publicação: 05/03/2012.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12ª ed. São Paulo: LTr, 2013.
BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: Uma Abordagem Constitucional da Responsabilidade Médica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.
DELGADO, Maurício Godinho. Direitos Fundamentais na Relação de Trabalho, Revista LTr, São Paulo: LTr, v. 70, n. 06, junho de 2006.
CARVALHO, Maria Amélia Lira de. Uma reflexão sobre a pejotização dos médicos. Disponível em: <http://www.interativadesignba.com.br/III_SPSC/arquivos/sessao2/070.pdf>.
AVISO IMPORTANTE:
Este artigo é de autoria própria e está protegido pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Havendo sua utilização como citação, a fonte deverá ser exibida, da seguinte maneira:
FARACO, Marcela; BERNARDES, Amanda. A Pejotização Trabalhista e sua aplicação na Área Médica. MF – Direito e Advocacia, 10 jun. 2015. Disponível em: < jus.com.br/1061604-marcela-faraco/publicações >.
{C}[1]{C} Amanda Bernardes é proprietária do escritório de advocacia Amanda Bernardes Defesa Médica; especialista em Direito Médico pelo CEDIN/ IAED – Instituto de Altos Estudos em Direito; pós-graduada em Direito Administrativo pela UCAM- Universidade Candido Mendes; pós-graduada em Direito Médico e da Saúde pela Escola Superior Verbo Jurídico; e associada do Instituto Brasileiro de Direito dos Profissionais e Instituições de Saúde.
{C}[2]{C} TRT3. Recurso Ordinário 0000096-23.2011.5.03.0001. 7ª Turma. Des. Convocada Maristela Iris S. Malheiros. Data da publicação: 05/03/2012.
{C}[3]{C} Questão em julgamento pelo Senado Federal, levantada pelo Projeto de Lei número 4.330/2004.
{C}[4]{C} A atividade-meio é a atividade não essencial da empresa, secundária, que não é seu objeto central, nem se relaciona aos seus fins principais.