SUMÁRIO: 1. Intróito: a tutela de urgência nos Juizados Especiais Cíveis e o problema da competência para o mandado de segurança contra ato judicial nos Juizados Especiais. - 2. Art. 101, §3º, ‘d’, da Lei Complementar n.º 35, de 14 de março de 1979 (LOMAN — Lei Orgânica da Magistratura Nacional). - 3. A competência constitucional atribuída aos tribunais de justiça e às turmas recursais. — 4. A turma recursal como órgão jurisdicional criado apenas com competência recursal, jamais originária. Legislações federal e estadual. —5. A incapacidade processual das pessoas jurídica de direito público nos Juizados Especiais Cíveis. —6. Possível ausência de capacidade processual do impetrante. —7. Inadmissibilidade de procedimento especial em sede de juizado especial cível, ele próprio um procedimento específico. —8. Peculiaridades do sistema recursal do mandado de segurança.
1.Intróito: a tutela de urgência nos Juizados Especiais Cíveis e o problema da competência para o mandado de segurança contra ato judicial nos Juizados Especiais. [1]
Predomina, sobranceira, na doutrina e jurisprudência brasileiras, a concepção de que a competência para processar e julgar mandado de segurança, interposto contra ato judicial proferido por magistrado de Juizado Especial Cível, é da Turma Recursal do respectivo órgão judiciário.
Trata-se de posição tão prevalecente, que a referência aos seus adeptos se torna despicienda. A interposição desenfreada de mandados de segurança em sede de Juizados Especiais Cíveis se deve, ao que parece, à irrecorribilidade das decisões interlocutórias proferidas neste procedimento, segundo entendem a doutrina e a jurisprudência também dominantes. [2] Como a proliferação (prodigalização) deste sucedâneo recursal jamais foi bem vista pela doutrina, e este fenômeno, neste âmbito, tem recrudescido, consideramos oportuno tecer as nossas impressões sobre o assunto.
Essa foi a circunstância que nos (des)animou a escrever este ensaio. [3] De fato, nadando contra a maré, posicionamo-nos em sentido absolutamente contrário à corrente dominante, pois julgamos que a competência para processar e julgar tais medidas será, salvo norma expressa em sentido contrário, de conjunto de órgãos fracionários ou do Pleno do Tribunal de Justiça do Estado-membro a que pertencer o magistrado tido por autoridade coatora. [4] A par disso, consideramos, também, que todos quantos abordaram o tema simplesmente não fundamentaram os seus posicionamentos, tampouco observaram os pontos que adiante serão examinados, em atitude representativa de um dogmatismo inaceitável. Afora isso, negam suas próprias premissas, levantadas em outros pontos da análise da referida lei. [5]
Pretendemos, antes de tudo, provocar a discussão sobre tema que tem sido relegado a sétimo plano, a ponto de a grande doutrina ainda não se ter apercebido das nefastas conseqüências que a adoção da corrente dominante poderá ocasionar.
A temática da tutela de urgência nos Juizados Especiais Cíveis é órfã de melhor doutrina. Não se sabe ao certo, por exemplo, como se opera a tutela cautelar no âmbito dos Juizados Especiais. Incidentalmente ao processo de conhecimento ou em processo autônomo? Obedecer-se-á a que procedimento: o dos Juizados Especiais ou o procedimento cautelar? Tem a pessoa jurídica capacidade processual para promover ações cautelares perante os Juizados Especiais, ex vi do art. 8º da LF 9.099/95? Embora não seja este o objeto do nosso trabalho, lançamos ao público nossas dúvidas, adiantando, no entanto, nossas primeiras impressões: a) muito nos afeiçoa a idéia de uma tutela cautelar determinada no bojo do processo de conhecimento nos Juizados Especiais—processo este visualizado, pois, a partir de um aspecto sincrético—, sem necessidade de ajuizamento de ação autônoma; [6] b) consideramos que as pessoas jurídicas, enquanto partes, têm legitimidade para requerer a tutela cautelar perante os Juizados Especiais, até mesmo em respeito ao princípio da igualdade. Ao debate!
Mas devemos ater-nos ao mandado de segurança, modalidade clássica de tutela de urgência. As dúvidas sobre a sua utilização nos Juizados Especiais são várias; restringiremos nossa análise ao aspecto da competência, de logo adiantando nosso posicionamento pelo cabimento do instituto nestes pequenos tribunais. [7]
O trabalho é baseado na organização judiciária baiana, bastando a adaptação do quanto se disser às peculiaridades legislativas deste ou daquele estado da federação. Os argumentos serão apresentados, um a um, cada qual correspondendo a um item.
Ei-los.
2.Art. 101, §3º, ‘d’, da Lei Complementar n.º 35, de 14 de março de 1979 (LOMAN — Lei Orgânica da Magistratura Nacional).
A Lei Orgânica da Magistratura Nacional, lei complementar que regula o assunto, ao dispor sobre a estrutura e a competência da organização judiciária brasileira, menciona, expressamente, em seu art. 101, §3º, ‘d’, pertencente ao Capítulo II (Tribunais de Justiça) do Título VIII (Organização Judiciária): "§2º. As Seções especializadas serão integradas, conforme disposto no regimento interno, pelas Turmas ou Câmaras da respectiva área de especialização. §3º A cada uma das Seções caberá processar e julgar: (...) d) os mandados de segurança contra ato de juiz de direito..."
E, de modo a evitar equívocos, estabelece, em seu art. 22, a tipologia dos magistrados brasileiros, sendo suficientemente clara ao elencar, na alínea ‘d’ do inciso II: "os juízes de direito e os juízes substitutos da Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios..." Portanto, juízes de direito são os juízes estaduais de primeira instância.
Assim, muito claro: mandado de segurança contra ato de juiz de direito será proposto, originariamente, perante o Tribunal de Justiça a que está vinculada a autoridade judicial tida por coatora, devendo ser julgado por conjunto de órgão fracionários (Seção) ou pelo Pleno, quando esta não existir.
Formulam-se as seguintes perguntas, relacionando-as com o caso concreto: a) autoridade apontada coatora, no mandado de segurança impetrado perante uma Turma Recursal, é juiz de direito? Sim, sem sombra de dúvida; b) o órgão jurisdicional a quem se endereça costumeiramente a petição é o Tribunal de Justiça do Estado? Induvidosamente, não.
Precisas as palavras do casal Nelson e Rosa Nery: "§1º: 5. Turma de recursos. É órgão do próprio juizado, conforme diz o caput. Não é tribunal e é composto por juízes de primeiro grau (CF 98 I). Daí por que suas decisões não podem ser impugnadas por REsp ao STJ (CF 105 III)." [8]
A turma recursal, órgão de segundo grau dos Juizados Especiais, não se confunde com o Tribunal de Justiça; tampouco se pode dizer que os juízes que a componham (juízes de primeiro grau), bem como os juízes de primeira instância nestes tribunais de pequenas causas, não sejam juízes de direito. Juízes estaduais de primeiro grau são juízes de direito. Mandado de segurança contra ato de juiz do Juizado, seja ele de primeira instância, seja ele da turma recursal, é da competência do Tribunal de Justiça.
Além disso, exige-se, por força da Lei Orgânica, que o julgamento do mandado de segurança contra ato judicial seja realizado por Seção (conjunto de órgãos fracionários), como já se opera no Estado da Bahia, cuja competência é das Câmaras Cíveis Reunidas. Assim, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar este dispositivo: "À luz do art. 101, da Lei Complementar n.º 35/79, o mandado de segurança contra juiz de direito deve ser processado e julgado por órgão composto por duas ou mais turmas ou câmaras isoladas. Nulidade do acórdão decretada de ofício." (2ª T., RMS 5.581-GO, rel. Min. Adhemar Maciel, j. 5.2.98, conheceram do recurso DJU 16.3.98, p. 74)
Ao próximo.
3.A competência constitucional atribuída aos tribunais de justiça e às turmas recursais.
Em absoluta consonância com os dispositivos retromencionados, encontra-se o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que estatui competência para as Câmaras Cíveis Reunidas de processar e julgar mandados de segurança contra juízes de direito —eis a transcrição in verbis: " Art. 61 – Às Câmaras Cíveis Reunidas compete: I - processar e julgar: a. ações rescisórias dos julgamentos de primeiro grau, de seus acórdãos ou de acórdãos das Câmaras Cíveis; b. embargos infringentes opostos aos acórdãos das Câmaras Cíveis; c. mandados de segurança contra atos de Secretário de Estado e de Juiz de Direito (...);"
Como não poderia deixar de ser, trata-se de dispositivo que apenas ratifica o quanto disposto na Lei Orgânica da Magistratura.
É de bom alvitre recordar-se, ainda, que a competência atribuída pela Constituição Federal (art. 96, I, ‘a’, CF/88), para a elaboração de normas que disponham sobre a competência funcional interna e outras questões procedimentais, foi cometida aos Tribunais de Justiça, e não às turmas recursais. Mesmo que, em relação a estas, exista um eventual regimento interno que disponha em sentido contrário ao quanto aqui afirmado, este regramento seria inconstitucional, pois não há autorização para a criação de normas de competência, mesmo funcional, para tais colegiados de recursos.
Veja o que afirma Athos Gusmão Carneiro, em sua obra sobre competência: "Cuidando-se de decisão de juiz estadual, somente o tribunal do respectivo Estado poderá conhecer do mandado de segurança, ainda que este tenha sido impetrado pela União Federal ou por entidade autárquica ou empresa pública federal." [9]
Além disso, também é a Constituição Federal a fonte criadora do órgão jurisdicional "Turma Recursal", a partir do texto normativo do inciso I do art. 98; ali, a Lex Legun é peremptória ao estabelecer, para este colegiado, a regra de competência eminentemente recursal (derivada). Não há previsão de competência originária para a turma recursal, competente, apenas, para apreciar e julgar recursos interpostos a partir de decisões proferidas nos Juizados Especiais.
Trata-se, portanto, de desrespeito, um, ao Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, dois, à Constituição Federal, em relação aos dispositivos já citados. [10]
Para quem admite a possibilidade de reclamação para preservação da competência (reclamação constitucional) perante tribunais de justiça, trata-se de caso típico de que pode servir de remédio. [11]
4.A turma recursal como órgão jurisdicional criado apenas com competência recursal, jamais originária. Legislações federal e estadual.
A Turma Recursal é colegiado de julgamento criado pelo art. 41, §1º, da Lei Federal 9.099/95 —a partir de mandamento constitucional (art. 98, I, CF/88). O artigo mencionado trata, apenas, da competência derivada recursal —aliás, em absoluta harmonia com o texto constitucional, conforme apontado alhures. Eis a razão do nomen iuris deste órgão colegiado —sua competência é apenas a estabelecida neste dispositivo normativo, ou seja, apreciar e julgar o recurso inominado previsto no art. 41, cabeço, do diploma legal de 1995. [12]
Nada se fala sobre competência originária, muito menos de apreciação de mandado de segurança, garantia constitucional que, quando interposta de ato judicial, tem regra de competência específica. Como, então, concluir ser uma turma recursal a competente para processar e julgar a demanda mandamental/constitucional? De onde retirar a regra de competência que a autoriza?
Não há lei que a estabeleça.
A Lei de Juizados Especiais prescreve apenas a competência recursal e, assim, não se pode criá-la por prestidigitação ou por analogia —notadamente quando há norma expressa que regula a situação. Somente a lei, em sentido material (norma geral e abstrata), é fonte de regra de competência. Confiram-se, novamente, as lições de Athos Gusmão Carneiro, quando, apesar de pontuar a pletora de fontes de regras de competência, reconhece em todas elas a característica comum de norma abstrata e geral positiva: "As normas de determinação de competência encontram-se na Constituição Federal, em constituições estaduais, no Código de Processo Civil (bem como no Código de Processo Penal), em leis federais não-codificadas, nos Códigos de organização judiciária estaduais e nos regimentos internos dos tribunais. Só por esta enumeração já é possível constatar a complexidade do tema e a variedade dos elementos e fontes a serem sucessivamente ponderados na determinação da competência." [13]
Lembra-se, por oportuno, que a competência funcional é absoluta.
E para não se dizer que a lei estadual corrobora a tese ora combatida, transcreve-se a íntegra do dispositivo da Lei Estadual 7.033, de 06 de fevereiro de 1997, que institui os Juizados Especiais na Bahia, aplicável no particular: "Art. 13. Das sentenças proferidas pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais caberá recurso para as turmas recursais, cujo número será fixado pelo Presidente do Tribunal. Parágrafo único. As turmas recursais serão compostas por juízes de primeiro grau, em número de três, designados pelo Tribunal de Justiça, segundo o critério de antigüidade e presididas pelo mais antigo na ordem." A mesma Lei, logo adiante e de modo corretíssimo, prescreve a competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar mandados de segurança interpostos contra ato de juiz de direito dos Juizados: "Art. 14. Será do Tribunal de Justiça a competência para o Habeas-Corpus e os Mandados de Segurança quando coator for o juiz, bem como para revisão criminal de decisões condenatórias do Juizado Especial Criminal." O texto é de clareza meridiana.
E mesmo se houvesse lei estadual neste sentido, hipótese para argumentar, esta seria inconstitucional, por ampliar hipóteses previstas na Lei Federal, conforme, inclusive, decidiram os Coordenadores de Juizados Especiais Cíveis, em seu IV Encontro Nacional, em novembro de 1998, no Rio de Janeiro: "Enunciado 03. A lei local não poderá ampliar a competência do Juizado Especial Cível."
Regulando a competência funcional, de que a originária (conhecer da causa primeiramente) é espécie, o art. 93 do Código de Processo Civil afirma: regem a competência dos tribunais as normas da Constituição da República e de organização judiciária —ambas, portanto, leis em sentido material.
A Lei Complementar que organiza a Magistratura Nacional regula o dispositivo constitucional e portanto a ele adere, vez que recepcionada pela hodierna ordem jurídica constitucional; as normas de organização judiciária da Bahia não prevêem competência originária para a turma recursal, apenas a derivada, como vimos. Não há, assim, lei que impute competência originária para este órgão jurisdicional, muito menos para o mandado de segurança.
5.A incapacidade processual das pessoas jurídicas de direito público nos Juizados Especiais Cíveis.
Embora ainda não se tenha acalmado a quizila doutrinária e jurisprudencial sobre a legitimidade passiva no procedimento de mandado de segurança (autoridade coatora ou pessoa jurídica de direito público) prevalece, de modo majoritário, o entendimento de que o sujeito passivo nesta demanda constitucional é o ente do qual faz parte o agente coator.
A dificuldade reside, sobretudo, na circunstância de que a lei de mandado de segurança somente prevê a participação da autoridade e do Ministério Público, não mencionando a atividade da parte ré, no caso, a pessoa jurídica de direito público a quem está vinculado o órgão impetrado. Esta é a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência. Com muito proveito, pode ser lembrado excelente e vigoroso trabalho de Sérgio Ferraz, em que são demonstradas todas as correntes a respeito do assunto (Mandado de Segurança (individual e coletivo) — Aspectos Polêmicos. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 50 e segs.). Também a propósito: Adhemar Ferreira Maciel. "Observações sobre a autoridade coatora no mandado de segurança." Em: Dimensões do Direito Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 295-326; Eduardo Arruda Alvim. Mandado de Segurança no Direito Tributário. São Paulo: RT, 1998, pp. 59-87; Carlos Augusto de Assis. Sujeito Passivo no Mandado de Segurança. São Paulo: Malheiros, 1997, passim; Eduardo Sodré. "Breves Considerações Acerca da Legitimidade Passiva na Ação Mandamental." Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. Salvador: Faculdade de Direito da UFBA, 1999, v. VI.
Elucidativas, e por isso serão transcritas, as lições do ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Adhemar Ferreira Maciel: "A autoridade coatora, na verdade, não é parte passiva, mas a ‘representante processual’ da pessoa jurídica. Como bem argumenta Celso Agrícola Barbi, a ré na ação de mandado de segurança não é ‘a autoridade coatora’, mas a pessoa jurídica, da qual ela é órgão —e não ré— que determina o juiz natural do mandado de segurança." [14]
No Anteprojeto n.º 14 de Reforma da Reforma do CPC, já convertido em PL 3475/2000 e que tramita no Congresso Nacional, a Comissão Revisora propõe alteração ao artigo 14, CPC, de modo a responsabilizar terceiros por condutas lesivas ao processo. Na exposição de motivos formulada pelo Ministro José Gregori, referem os autores da reforma, exatamente, como exemplos de terceiros, não-partes, às autoridades coatoras, aderindo, assim, à corrente dominante. [15]
A autoridade coatora não é a parte ré no processo do mandado de segurança. Em síntese, eis a sua participação no procedimento: a) é notificada (intimada) para prestar informações acerca da acusação de abusividade do ato que praticara, não praticara ou pode praticar; b) presta informações; c) completa a atividade citatória, por força do art. 3º da Lei Federal 4.348/64; d) sai do feito.
A lei fala em notificação da autoridade coatora, mas com a edição do CPC/73 os atos de comunicação processual restringem-se à intimação e à citação. A autoridade coatora não é intimada para defender-se; a defesa compete à pessoa jurídica de direito público a que está vinculada, conforme a LF 4.348/64, art. 3º abaixo transcrito: "Art. 3º. As autoridades administrativas, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas da notificação da medida liminar, remeterão ao Ministério ou ao órgão a que se acham subordinadas e ao Procurador-Geral da República ou a quem tiver a representação judicial da União, do Estado, do Município ou entidade apontada como coatora, cópia autenticada do mandado notificatório, assim como indicações e elementos outros necessários às providências a serem tomadas para a eventual suspensão da medida e defesa do ato apontado como ilegal ou abusivo de poder."
Desta circunstância já se retira a seguinte conclusão: o Estado-membro intervirá no feito como parte ré, para promover a defesa do ato, pois o magistrado, por força do art. 3º retromencionado haverá de citá-lo.
Após esta premissa, continuemos com a análise do procedimento.
O magistrado, ao receber a impetração da segurança, pode conceder, ou não, a medida liminar, determinando, em seguida, a intimação da autoridade para prestar informações, repita-se, informações sobre o ato inquinado de indevido. O fenômeno há de ser encarado pela teoria geral da prova: trata-se de colheita de prova, por escrito, feita em momento procedimental anterior ao da apresentação da defesa. Da mesma forma que se podem colher informações de uma testemunha, por meio do procedimento oral previsto no CPC, criou o legislador uma forma original e típica, embora diferente, de colheita de material probatório, em que o magistrado contenta-se com as informações por escrito. Fê-lo, sem dúvida, por essas razões: a) celeridade processual; b) característica do procedimento documental do mandado de segurança, avesso ao princípio da imediatidade da coleta de prova; c) identificar o autor do ato apontado como abusivo; d) a partir disso, fixar a competência jurisdicional.
A experiência jurídica nos mostra outras situações em que se colhem "depoimentos" por escrito: os ofícios às repartições públicas, em que se requisitam informações, inclusive previstos na Lei de Alimentos (art. 5º, §7º, LF 5.478/68), servem de exemplo. A propósito, as informações não possuem natureza de defesa, tanto que se configuram ato personalíssimo da autoridade, indelegável inclusive para advogados —estes, no máximo, podem subscrever a peça —Ferraz (1996:50). Consistem, pois, em meio de prova. Valem as palavras de Barbosa Moreira: "O primeiro problema que se põe é o dos conhecimentos que podemos obter de terceiros, isto é, de pessoas que não são parte na causa. Qual é a forma tradicional, que logo nos vem à mente, quando pensamos na hipótese de tentar obter de terceiros conhecimentos relevantes para formar a nossa convicção a respeito dos fatos necessários ao deslinde do litígio? A prova testemunhal. Normalmente, o terceiro que informa alguma coisa é inquirido na qualidade de testemunha e, quando isso acontece, não há dúvida nenhuma de que as formas consagradas na lei devem ser obedecidas, porque essas formalidades no propósito de que se preservem determinadas garantias. A forma, bem entendido: não o formalismo processual, que é algo, francamente, a esta altura, obsoleto; mas a observância de certas formas é requisito indispensável para o respeito de determinadas garantias fundamentais. Não se pode pensar num processo inteiramente informal, porque cada juiz procederia de um modo e, obviamente, não se asseguraria um mínimo de igualdade no tratamento dos vários litigantes. Voltando ao ponto que interessa: a maneira tradicional, a figura que logo nos acode ao espírito quando pensamos na necessidade de obter de terceiros informações sobre os fatos relevantes, é a prova testemunhal. Mas, todos nós, juízes, já obtivemos de terceiros informações por outras formas; tenho a certeza disso." [16]
A intimação da autoridade coatora, ainda, importa para ela o surgimento de um dever processual: é obrigada a prestar informações, como todos são obrigados a colaborar com a justiça, com a peculiaridade de esta obrigação ter sido particularizada pelo legislador, o que pode implicar punição penal por prevaricação. A apresentação de defesa jamais poderia ser vista como um dever, senão ônus, pois ninguém é obrigado a defender-se.
Além disso, o objeto litigioso, no mandamus, lhe é totalmente estranho; quem arca com as conseqüências do pedido, em caso de procedência, é a pessoa jurídica pública. Como afirma Celso Agrícola Barbi: a) o ato que a autoridade coatora pratica vincula a pessoa jurídica de direito público a cujos quadros pertence, pois o ato é do ente público, e não do funcionário; b) o julgado irá regular a situação do impetrante em relação à pessoa jurídica, e não em relação à autoridade. (ob. cit., p. 177.)
Também o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça se posicionaram sobre o assunto: "O coator é notificado para prestar informações. Não tem ele legitimidade para recorrer da decisão deferitória do mandamus. A legitimação cabe ao representante da pessoa jurídica interessada. (Ac. un, da 1ª T. do STF de 03.09.1982, no RE 97.282-0-PA, rel. Min. Pedro Soares Muñoz, publicado no DJ de 24.09.1982, p. 9.446); "Não só a pessoa jurídica, que é ré em mandado de segurança, mas também o próprio impetrado têm legitimidade recursal." (STJ, Resp. 35.219-2, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 20.11.19993, p. 25.906-7).
Em razão de tudo isso, a participação da autoridade coatora restringe-se a prestar informações e completar a citação, comunicando ao réu a existência da demanda contra ele proposta. Empós, sai do processo. No momento da prolação da sentença, por exemplo, já é pessoa totalmente estranha ao feito, fato que a qualifica como terceiro. O Estado da Bahia, por exemplo, após ser informado do processo, deverá providenciar a defesa do ato.
Assim posto, demonstremos as razões que justificam a alegação de usurpação da competência do Tribunal de Justiça.
O art. 8º, caput, da LF 9.099/95, afirma, peremptoriamente, que não podem ser partes no Juizado Especial Cível a pessoa jurídica de direito público. Trata-se de norma cogente, que visa não submeter tais entidades ao rito sumariíssimo previsto na referida lei. Assim sendo, como o Estado-membro será a parte passiva nesta ação mandamental, jamais esta poderia ter sido proposta perante a multimencionada Turma Recursal, porquanto apenas os órgãos comuns da Justiça Estadual estariam aptos a conhecer das causas que envolvam entes públicos e, no caso, como se trata de mandado de segurança contra ato de juiz de direito, apenas órgãos do Tribunal de Justiça poderiam ser competentes.