Reflexões sobre a aplicação da súmula 54 do STJ em caso de responsabilidade civil extracontratual

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15/06/2015 às 12:09
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Análise do descabimento da aplicação da Súmula 54 do STJ em casos de indenização por danos morais.

           

I.             Introdução

O presente trabalho tem por origem a constatação, na prática da advocacia pública exercida perante a Advocacia-Geral da União, de que, em muitos casos, a aplicação da Súmula nº 54 do Superior Tribunal de Justiça acaba por propiciar indenizações em patamares excessivamente elevados, desproporcionais ao dano efetivamente sofrido.

A partir de tal constatação é que se propõe uma análise acerca dos parâmetros utilizados para fixação de indenizações, bem como sobre a possibilidade de aplicação, aos juros, do entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça quanto à correção monetária (enunciado sumular nº 362/STJ).

II. Reflexões

A questão atinente ao termo inicial do cômputo dos juros moratórios incidentes em casos de responsabilidade civil extrapatrimonial (dano moral puro) assume enorme relevo ao se analisar processos judiciais nos quais são pleiteadas indenizações referentes a períodos longínquos, tais como as referentes aos danos sofridos por vítimas do período da ditadura militar.

A fim de bem ilustrar a situação em análise, faz-se referência ao processo nº 2009.71.10.004529-3, oriundo da 1ª Vara Federal de Pelotas, RS, no qual foi fixada, em sentença, prolatada em 2011 (cerca de dois anos após o ajuizamento da ação, ocorrido em 2009), indenização por danos morais no valor de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), corrigidos monetariamente desde a data da sentença e fazendo incidir juros de mora desde a data do evento danoso, em aplicação literal do enunciado da Súmula nº 54 do Superior Tribunal de Justiça.

Ocorre que o evento danoso, no caso, ocorreu no ano de 1964, enquanto que a ação judicial somente teve início em 2009, por opção da parte autora, de modo que, no momento da prolação da sentença fixando o montante indenizatório, já haviam decorrido mais de 45 (quarenta) anos, período durante o qual haverá incidência de juros moratórios.

Realizando cálculo superficial é possível constatar que a indenização, fixada que fora em R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), passou a perfazer, já na data da sentença, montante superior a R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais), quantia correspondente ao triplo da cifra arbitrada na sentença e, dessa forma, dissociada da apreciação realizada pelo magistrado prolator do decisum no momento da fixação do valor indenizatório.

Vê-se, assim, que a aplicação indistinta da Súmula nº 54 do Superior Tribunal de Justiça tem o condão de elevar o valor indenizatório a patamares exorbitantes, ferindo, portanto, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Com efeito, o verbete em referência prevê que “os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”. Referido verbete foi publicado em 01/10/1992, sob a vigência do Código Civil de 1916 e teve por base julgados nos quais ainda se discutia a possibilidade de cumulação de danos materiais com danos morais[1], hipótese há muito tempo superada. Referidos julgados tratavam, em sua maioria, da responsabilidade civil decorrente de acidente em linhas férreas, hipótese, portanto, de responsabilidade contratual.

            Ocorre que, em caso de “dano moral puro”, a retroação dos juros de mora à data do evento danoso implica em remunerar o capital que, no momento da fixação do valor da condenação, já está remunerado pelo tempo de espera. Isso porque, para a fixação do valor da condenação, o Magistrado, em observância aos princípios da razoabilidade, leva em consideração diversos elementos, dentre eles o tempo transcorrido entre o ato ilícito e a prolação da decisão judicial que fixou a indenização.

Não se pode perder de vista, também, que não é incomum que as vítimas de atos ilícitos potencialmente ensejadores de responsabilização civil extracontratual aguardem, pelos mais diversos motivos, até próximo do final do prazo prescricional para ajuizar suas demandas, o que faz com que, ao se aplicar o enunciado da Súmula 54 do STJ e permitir o cômputo dos juros moratórios desde a data do evento danoso, “ganhe” o autor da ação, de antemão, praticamente todo o prazo prescricional em juros moratórios, tornando a espera potencialmente lucrativa e, no caso de responsabilidade civil do Estado, causando indevido prejuízo ao erário.

A Súmula 54 do STJ foi concebida a partir de casos concretos ligados à composição de danos materiais diversos (Corte Especial, julgado em 24/09/1992, DJ 01/10/1992, p. 16801), de modo que vem sendo incorretamente aplicada aos casos de quantificação de indenização por dano moral puro (responsabilidade civil extracontratual).

Observe-se que a fluência de juros moratórios desde o evento danoso faz cair por terra inclusive a “parametrização” nos valores das condenações por danos morais, o que costuma ser praxe nos Tribunais pátrios e que consiste em fixar, em situações fáticas semelhantes, indenizações em patamares similares[2].

De fato, a depender de quanto tempo a parte demorou para ajuizar sua ação e, também, a depender do quão célere for o trâmite da sua ação judicial, indenizações fixadas de forma idêntica acabarão por resultar em valores totalmente distintos.

Atenta a tais circunstâncias, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial nº 903.258/RS (julgado em 21.06.2011) inaugurou divergência sobre a matéria em foco, sendo de se destacar parte do voto da Relatora, Ministra Maria Isabel Gallotti, ocasião em que reviu seu posicionamento anterior. Veja-se:

“(...)

Com efeito, a questão do termo inicial dos juros de mora no tocante ao pagamento de indenização por dano moral, seja o seu fundamento contratual ou extracontratual, merece ser reexaminada, tendo em vista as peculiaridades deste tipo de indenização. E o presente caso presta-se como uma luva para o reexame da questão, sem que a mudança de jurisprudência seja prejudicial aos interessados, pois há recurso especial de ambas as partes, o autor pretendendo o aumento da indenização e o réu a sua diminuição, de forma que o exame da própria base de cálculo da condenação foi devolvido ao STJ e não apenas o termo inicial dos juros de mora e da correção monetária.

Considero que, em se tratando de dano moral (prejuízo, por definição, extrapatrimonial) só passa a ter expressão em dinheiro a partir da decisão judicial que a arbitrou, não há como incidir, antes desta data, juros de mora sobre quantia que ainda não fora estabelecida em juízo.

Dessa forma, no caso de pagamento de indenização em dinheiro por dano moral puro, entendo que não há como considerar em mora o devedor, se ele não tinha como satisfazer a obrigação pecuniária não fixada por sentença judicial, arbitramento ou acordo entre as partes. Incide, na espécie, o art. 1064 do Código Civil de 1916, segundo o qual os juros de mora serão contados “assim às dívidas de dinheiro, como às prestações de outra natureza, desde que lhes seja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes”. No mesmo sentido, o art. 407 do atual Código Civil[3].

Observo que, a rigor, a literalidade do citado art. 1064 conduziria à conclusão de que, sendo a obrigação ilíquida, e, portanto, não podendo o devedor precisar o valor da sua dívida, não lhe poderiam ser imputados os ônus da mora – é o princípio in liquidis non fit mora, consoante ressaltado pelo Ministro Orozimbo Nonato em seu voto no julgamento do Recurso 111, cujo acórdão foi publicado na Revista Forense, de junho de 1942, p. 145.

Mas, conforme assinalou o eminente Ministro, no mesmo julgamento, tal entendimento tornaria sem sentido a regra do §2º do art. 1.536, do Código de 1916, segundo o qual “contam-se os juros de mora, nas obrigações ilíquidas, desde a citação inicial”.

A jurisprudência e a doutrina, em interpretação harmonizadora da aparente antinomia entre os dois dispositivos, reduziu o alcance do princípio do art. 1.064, para consagrar o entendimento de que “se a obrigação é ilíquida os juros se contam desde a petição inicial, mas sobre a importância determinada pela sentença judicial (na ação), pelo arbitramento, ou pelo acordo das partes”. (cf. voto citado).

Observo que a tese de que os juros de mora fluem desde data anterior ao conhecimento, pelo próprio devedor, do valor pecuniário de sua obrigação, decorre de uma mora ficta imposta pelos arts. 962 e 1.536, §2º, do Código de 1916.

Esta ficção – de que desde o ato ilícito (art. 962) ou desde a citação (1.536, §2º, aplicável aos casos de inadimplemento contratual) o devedor está em mora e poderia, querendo, reparar plenamente o dano, a despeito de ilíquida a obrigação – é razoável nos casos de indenização por dano material (danos emergentes e lucros cessantes).

Com efeito, considera-se em mora o devedor desde a data do evento danoso, porque o procedimento correto, que dele se espera, é o reconhecimento de que causou o dano e sua inciativa espontânea de repará-lo, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, prestando socorro à vítima, pagando-lhe o tratamento necessário, provento o sustento de seus dependentes, indenizando-a dos prejuízos materiais sofridos, prejuízo este apurável com base em dados concretos, objetivos, materialmente existentes e calculáveis desde a data do evento. Se assim não age, ou se não repara espontaneamente a integralidade dos danos, no entender da vítima, caberá a esta ajuizar a ação, considerando-se o devedor em mora não apenas desde a fixação do valor da indenização por sentença, como decorreria da interpretação isolada do art. 1.064, do Código Civil, mas desde a data do ato ilícito (no caso de responsabilidade extracontratual) ou desde a citação (no caso de responsabilidade contratual).

Em se tratando de danos morais, contudo, que somente assumem expressão patrimonial com o arbitramento de seu valor em dinheiro na sentença de mérito (até mesmo o pedido do autor é considerado pela jurisprudência do STJ mera estimativa, que não lhe acarretará ônus de sucumbência, caso o valor da indenização seja bastante inferior ao pedido, conforme a Súmula 326), a ausência de seu pagamento desde a data do ato ilícito não pode ser considerada como omissão imputável ao devedor, para o efeito de tê-lo em mora, pois, mesmo que o quisesse o devedor, não teria como satisfazer obrigação decorrente de dano moral não traduzida em dinheiro nem por sentença judicial, nem por arbitramento e nem por acordo (CC/1916, art. 1064).

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Se a jurisprudência do STJ não atribui responsabilidade ao autor pela estimativa do valor de sua pretensão, de modo a impor-lhes os ônus da sucumbência quando o valor da condenação é muito inferior ao postulado (Súmula 326), não vejo como atribuir esta responsabilidade ao réu, para considera-lo em mora, desde a data do ilícito, no que toca à pretensão de indenização por danos morais.

Por estes motivos, alinho-me ao entendimento do acórdão recorrido que, em se tratando de indenização por dano moral, os juros moratórios devem fluir, assim como a correção monetária, a partir da data do julgamento em que foi arbitrado em definitivo o valor da indenização, tendo presente o magistrado, no momento de sua mensuração, também o período, maior ou menor, decorrido desde o fato danoso causador do sofrimento infligido ao autor e as consequências, em seu estado emocional, desta demora.

No caso em exame, o valor da indenização por dano moral, conceito este que compreendeu também a reparação pelo dano estético e psíquicos (R$ 150.000,00), foi estabelecido pela sentença e mantido pelo acórdão recorrido e pelo presente voto. A data da sentença de mérito (setembro de 2004) deve ser, pois, o termo inicial dos juros de mora. No tocante aos danos materiais, mesmo ilíquidos, devem os juros incidir a partir da citação”.

Referido julgamento do Superior Tribunal de Justiça teve por base acórdão da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul[4], no qual bem restou analisada a questão objeto deste artigo. Veja-se:

Dos juros de mora.

Correta a sentença, não merecendo reforma no tópico.

É entendimento desta colenda Câmara que os juros de mora anteriores à data da decisão monocrática e posteriores ao evento danoso, em princípio, já estão embutidos no montante arbitrado.

Nesse sentido Apelação Cível n. 70013044516, julgada neste Colegiado em 09.11.05, da Relatoria da eminente Desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi.

Trago a ementa, transcrita no que tem pertinência:

“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INSCRIÇÃO INDEVIDA. linha telefônica. dívida inexistente. art. 333, incisos i e ii, do cpc. ônus da prova. FATOS IMPEDITIVOS, MODIFICATIVOS OU EXTINTIVOS DO DIREITO NÃO COMPROVADOS. modus operandi. ÔNUS. responsabilidade civil. pressupostos comprovados. DANO MORAL. DANO IN RE IPSA. quantum. juros de mora. termo de fixação.

1. ............

2. ............

3. ............

4. ............

5. ............

6. JUROS DE MORA. TERMO DE FIXAÇÃO.

Os juros de mora anteriores à data da sentença e posteriores ao evento danoso, em princípio, já estão embutidos no montante arbitrado, devendo incidir somente a partir da decisão, razão pela qual não se está negando vigência à Súmula n.º 54, do STJ.

APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA”. (grifou-se)

            Apesar do teor dos referidos julgados, ainda vige no ordenamento jurídico a Súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça, razão pela qual, pelo menos em âmbito federal, a jurisprudência majoritária é no sentido de aplicação indistinta do enunciado sumular, até mesmo porque o artigo 557 do Código de Processo Civil prevê que “o relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”.

Reafirmando a aplicação do enunciado sumular em análise, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento à Reclamação nº 13625-SC, de Relatoria do Ministro Marco Buzzi, reformou decisão da 5ª Turma de Recursos de Santa Catarina que havia fixado o cômputo dos juros moratórios a partir da sentença, o que ensejou o próprio cancelamento do enunciado número 02 da Turma de Uniformização Estadual[5]. Referido julgado, contudo, não realizou análise pormenorizada da situação aqui retratada, limitando-se a determinar a aplicação indistinta da Súmula nº 54 do STJ.

III. Conclusões

Tendo em vista todo o exposto supra, entende-se que, restando impossibilitado, o causador do dano extrapatrimonial (dano moral puro), de realizar o pagamento de indenização ainda não fixada pelo juízo, não se pode imputar tal ausência de pagamento como omissão a ensejar o cômputo de juros moratórios desde a data do evento danoso.

Considerando-se, assim, que o dever de indenizar por danos morais só surge no momento da sua fixação, em sentença ou acórdão proferido em sede recursal, somente a partir de tal data é que passam a incidir legitimamente os juros moratórios, devendo ser aplicado o disposto no artigo 407 do Código Civil, bem como o entendimento relativo à correção monetária consubstanciado na súmula nº 362 do Superior Tribunal de Justiça.

Felizmente, a definição da questão aqui analisada se avizinha, eis que, recentemente, a matéria foi afetada à análise pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, sob o regime dos Recursos Repetitivos[6]. A partir de tal julgamento, espera-se que a Corte Superior finalmente analise com precisão a questão e estabeleça que a Súmula 54 não é aplicável aos casos de indenizações por danos extrapatrimoniais.

REFERÊNCIAS

1. DIAS, Daniel Pires Novais. O duty to mitigate the loss no direito civil brasileiro e o encargo de evitar o próprio dano. Revista de direito privado. V. 45. P. 89. Jan/11.

2. LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os juros e o novo código civil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 26. p. 67. outubro/2004.

3. STJ define valor de indenizações por danos morais. Consultor Jurídico, São Paulo, 15/09/2009. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2009-set-15/stj-estipula-parametros-indenizacoes-danos-morais>. Acesso em 20 jan. 2015.

4. TARTUCE, Flávio. A boa-fé objetiva e a mitigação do prejuízo pelo credor. Esboço do tema e primeira abordagem. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigos&totalPage=2. Acesso em: 20 jan. 2015.

           

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Sobre a autora
Brenda Rigon

Advogada da União, especialista em processo civil pela UNISUL e em direito civil e direito do estado pela UFRGS.

Informações sobre o texto

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