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A instauração de processos administrativos disciplinares a partir de denúncias anônimas

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Como consabido, os princípios da moralidade e do interesse público, informadores da atividade da Administração Pública Federal (art. 2º, caput, Lei Federal 9.784/99), devem, reflexamente, ser primados na conduta dos agentes públicos. Com esse desiderato, o ordenamento jurídico consagrou o direito de qualquer cidadão responsável, comprometido com os sobreditos princípios éticos e com a defesa da coisa pública, formular denúncia contra servidores públicos, a ser recebida desde que com a obediência dos quesitos legais de admissibilidade. A Lei nº. 8.112/90 regulamentou a matéria: "Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade".

Por força do princípio da legalidade (art. 37, caput, Constituição Federal de 1988), a Administração Pública deverá examinar o atendimento dos critérios de admissibilidade das denúncias contra servidores públicos: peça denunciatória em forma escrita, com a identificação e o endereço do denunciante, além de devidamente confirmada em sua autenticidade. A Administração Pública direta da União não pode fazer senão aquilo que a lei autoriza. Toda a sua atividade deve pautar-se pelo respeito e plena obediência às normas legais, que devem ser aplicadas sem espaço para tolerância ou tergiversação pelo administrador. Não pode o agente público agir fora do império da lei.

Relevante acrescentar que, em particular quando invocada como ato instaurador de sindicância ou mesmo de processo administrativo disciplinar pelo ente federal, a denúncia deverá conformar-se com os ditames do art. 144 da Lei 8.112/90, sob pena de nulidade do feito ab ovo, tendo em vista a larga garantia do devido processo legal (art. 5º., LIV, Constituição Federal de 1988), cujo reflexo é de que os feitos administrativos forçosamente obedecerão, desde o seu início, aos procedimentos previstos em lei, em face da indisponibilidade nos feitos administrativos das normas de natureza procedimental. Os procedimentos estabelecidos em lei não podem ser objeto de renúncia pelos órgãos julgadores. Impede-se, conseqüentemente, a instauração do feito disciplinar, desde que fundamentado em denúncia apócrifa e que não atende os requisitos legais.

É que, conquanto não se duvide que o administrador público pode e deve apurar as denúncias porventura recebidas contra servidores, o recebimento das representações denunciatórias obedecerá aos parâmetros legais do art. 144 da Lei nº. 8.112/90. Se não respeitado o dispositivo legal pelo autor da delação, esta não poderá ser recebida nem servir de amparo ao início de feito administrativo.

O preceito do art. 144 da Lei 8.112/90 tem o escopo de preservar a dignidade do cargo público e constitui um direito subjetivo dos servidores contra denúncias vazias, infundadas, perseguições políticas, agressões à honra perpetradas por desafetos ou por pessoas de má-fé, de modo a evitar que, sob o manto do anonimato, terceiros irresponsáveis venham a vilipendiar a imagem e a distinção de cidadãos que zelam e servem a coisa pública. Não se trata de uma garantia da pessoa física do funcionário, porém de uma proteção à dignidade do posto público e ao alcance dos fins superiores da própria Administração. Sem regras, indivíduos inescrupulosos empregariam, anônima e impunemente, todo tipo de difamação e calúnia, sem ao menos a oportunidade de defesa para os ofendidos, que sofreriam o constrangimento da instauração de sindicâncias e processos administrativos disciplinares, procedimentos cujo conteúdo termina por se refletir publicamente, no âmbito da repartição pública, com irreparável gravame ao funcionário ilegalmente acusado.

O art. 144 é uma garantia dos que exercem cargo público e da dignidade que se lhes presume, que requer prova robusta e identificação, qualificação, endereço e denúncia por escrito dos delatores, sob pena de os funcionários padecerem afrontas e danos físicos e morais irreparáveis apenas porque um desconhecido - quiçá um desafeto ou mesmo pessoas mal-intencionadas - resolveu adotar o expediente apócrifo como meio de prejudicar facilmente o servidor público. É por isso que o diploma legal regedor do funcionalismo fixa regras para o recebimento de acusações contra funcionários, como observa o professor e administrativista José Armando da Costa (Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar, 2ª.ed., Brasília Jurídica, 1996, págs.133, 190/191) (1):

" Numa Administração que se preze e que zele pela economia do serviço público, confusas e frágeis notícias a respeito do cometimento de faltas disciplinares não são o bastante para que, de pronto, se instaure o custoso e desassossegador processo disciplinar (...) Não é jurídico nem democrático que o servidor público venha, sem mais nem menos, responder a processo disciplinar (...) O Direito Processual Disciplinar exige a presença desses conectivos (princípios de prova) como forma de evitar que venha o servidor público sofrer os incômodos e os aborrecimentos oriundos de um processo disciplinar precipitadamente instaurado, além de, com tal cuidado, proporcionar resguardo à dignidade do cargo público ocupado pelo acusado, o que reverte-se, por fim, em benefício da normalidade e regularidade do serviço público, escopo inarredável a que deve preordenar-se toda repressão disciplinar. (...) Pela alternativa postulatória (precisa e definida) requer o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº. 8.112/90, art. 144 e parágrafo único) que somente devem constituir objeto de apuração em processo as denúncias que: a) sejam formalizadas por escrito; b) contenham a identificação e o endereço dos denunciantes; c) tiverem a autenticidade das assinaturas dos denunciantes devidamente confirmadas (...) Pois bem, sem a existência de tais conectivos processuais, não poderá, consoante as normas e os princípios processuais atinentes, ser inaugurado o correspondente processo administrativo disciplinar. A inobservância dessa exigência de caráter legal poderá oportunizar ensejo a que o servidor prejudicado ingresse em juízo com o pedido de trancamento do processo, através do remédio heróico do mandado de segurança".

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Destarte, uma vez demonstrado que uma sindicância e um processo administrativo disciplinar foram instaurados e tiveram curso a partir da denúncia anônima (e, portanto com vilipêndio ao art. 144 da Lei nº. 8.112/90), evidencia-se vício procedimental originário que obriga a autoridade competente a, em respeito aos princípios da legalidade e do devido processo legal violados, determinar o arquivamento do feito administrativo, haja vista que a obediência às Leis da República e à própria Constituição Federal é indisponível por qualquer autoridade da Administração Pública, sobretudo quando a ilegalidade pode causar intolerável constrangimento e mesmo danos morais ao ocupante e à própria dignidade do cargo público, porquanto os agentes públicos poderiam sofrer influências nocivas ao bom desempenho de suas atribuições funcionais, desde que o servidor estaria inteiramente sujeito à ação irresponsável e leviana de denúncias anônimas, às vezes originadas a partir de interesses políticos, econômicos e, quiçá, de deliberada corrupção de particulares desejosos de afastar um bom e honesto funcionário do Estado para, com a ausência da mão proba do injustamente denunciado, poder perpetrar todo tipo de negociata, justamente contra o princípio da moralidade e do interesse público falsamente invocados como motivos das peças denunciatórias apócrifas .


NOTA

  1. Teoria e Prático do Processo Administrativo Disciplinar, 2ª.ed., Brasília Jurídica, 1996, págs.133, 190/191,
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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. A instauração de processos administrativos disciplinares a partir de denúncias anônimas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/402. Acesso em: 28 mar. 2024.

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