A gênese da imoralidade pública está na imoralidade privada.

01/07/2015 às 09:12
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Em tempos em que se clama contra a imoralidade pública, é preciso buscar a sua gênese. A imoralidade pública nasce da imoralidade privada.

A gênese da imoralidade pública está na imoralidade privada.

 

José Ernesto Manzi[1]

 

Em um momento em que as notícias acerca da corrupção em licitações e mesmo em eleições dominam o noticiário e sem adentrar especificamente nelas, considero pertinente meditarmos sobre a gênese privada da imoralidade pública e sobre algumas políticas jurídicas que devem ser repensadas.

Ouvir políticos e empresários presos afirmarem que a corrupção tornou-se uma praxe inafastável ou que não são tão corruptos quanto outros acusados, por conta de valores etc., torna-se a preocupante constatação de que os valores morais tanto na vida pública, quanto na vida privada, estão degradados.

Na antiga Siracusa, governada por Dionísio (412 a 323 aC), viviam dois filósofos: Aristupos e Diógenes. 

Dionísio, como todo bom tirano,  cobria de atenções e bens os que colaboravam com ele e perseguia e reduzia à miséria, os que ousassem dele discordar.

Em um primeiro momento, Diógenes, assim como Aristupos, permaneceuram ao lado do ditador; porém, assim que Diógenes percebeu sua índole, dele se afastou e, sem o seu beneplácito, teve que viver, em estado de mendicância, na periferia de Siracusa, em um casebre paupérrimo. Certo dia, Aristupos visita Diógenes e vendo seu estado lamentável, sua magreza, sua fome satisfeita com um ralo prato de lentilhas ao invés das carnes gordas do palácio, lhe diz:

_ se você aprendesse a gostar de Dionísio, não precisaria gostar de lentilhas.

Diógenes lhe responde:

 _ se você aprendesse a comer lentilhas, não precisaria gostar de Dionísio.

Esta história ilustra bem a questão da moralidade pública.

Não são poucos os que trocam seus ideais, sua aprovação e seu voto em governantes tiranos ou corruptos, por lentilhas, dependendo da quantidade.  As lentilhas se sofisticaram com o tempo, em uma sociedade em que, mesmo o homem pobre, tem muito mais conforto do que muitos reis da antigüidade[2] e em que se tem pressa, não se quer perder os lançamentos de novas tecnologias e se quer ser o primeiro da rua a adquirir determinado veículo, a aderir a determinada moda etc. 

Trazendo esta questão para o Brasil, se poderia perguntar, em um primeiro momento: Os brasileiros são honestos ?

Bem, não podemos nunca nos esquecer que os governantes, os servidores públicos, os policiais etc. são oriundos do povo. O mais corrupto dos políticos não aterrisou de um planeta distante e sim do povo que o elegeu.

Emm termos morais, não é possível dizer que haja dois mundos, um dos homens públicos -, absolutamente corrompido -,  e outro dos homens comuns, absolutamente imaculado.

Em verdade, com exceções generosas, quando ouve falar de um escândalo o homem comum se arrepia e se indigna, em um primeiro momento, mas não são poucos os que se perguntam: o que fariam com tanto dinheiro ou se aborrecem por nunca ter tido tal idéia, porque não tiveram a mesma idéia antes, ou o que fariam com tanto dinheiro (desviado), , chegando até a sonharndo com os bens de consumo que conseguiriam obter, os parentes que conseguiriam empregar, as casas em que morariam, as viagens que fariam etc.

Será que nosso famoso jeitinho, criando atalhos para solucionar problemas, em alguma medida, não afeta nosso agir público e privado? Os atalhos que encontramos não podem traduzir, em algum momento, uma ética do atalho, do queimar etapas, do reduzir esforços, do sonegar, do cumprir apenas em parte com nossas obrigações, do se achar “esperto” diante de uma comunidade “menos esperta” e assim por diante?

O que é mais admirado no Brasil:, o esforço, ou a sorte?, Oo jogo de cintura, o aproveitar as oportunidades (encher a pança até passar mal, na churrascaria rodízio), a malandragem etc.  Quantas vezes falamos de um filho “é um malandrão” como se estivéssemos contando vantagem ?

Infelizmente, nestas paragens, sempre com exceções, o esforço e abnegação, a luta honesta, o sacrifício, o empenho, o afinco, não eram e não são valorizados na medida em que deveriam.  O aluno que vence suas dificuldades com a perda das madrugadas, com o sacrifício do esporte e do lazer é visto com menos admiração, do que aquele que consegue ter boas notas, pela cola, pela alteração dos dados na internet etc. O aplicado é chamado de “tolo” e o “rei do atalho” recebido com tapinhas nas costas e expressões de consideração e espanto. Numa cultura assim, o chefe do tráfico pode esbanjar os bens que comprou com dinheiro ilícito, assim como a prostituta e, a juventude os adota como ícones, como a saída mais rápida da miséria e da necessidade.  A morte do traficante ou o mau fim da prostituta não servem como aviso de que tais anseios são vãos e perigosos, para tornar-se uma esperança de substituição, de vir a ocupar o seu lugar, algum dia.

Como chegamos a este estado de coisas? 

As instituições faliram. Nossos colonizadores não estavam preocupados com nosso desenvolvimento., Ttanto, que, proibiram nossas indústrias, trouxeram para cá os criminosos irrecuperáveis e buscaram extrair o máximo que pudessem. E, isto durante séculos[3].  Herdar era visto como mais admiração, do que o construir, sendo o trabalho próprio às pessoas incultas (quem trabalha, não tem tempo para adquirir sabedoria).

Vieram os imigrantes e mudaram um pouco este estado de coisas, porque vieram dispostos a construir e a vencer, a trabalhar de forma incessante, a vencer as dificuldades, ainda que alguns tivessem no peito o anseio de voltar à terra natal. As instituições, contudo, se mantiveram impermeáveis a esta cultura e isso fez com que, também  os imigrantes ou seus descendentes tivessem mais “adaptados” à cultura local e passassem a ‘buscar vantagem’.

As instituições perderam a autoridade. A família não quer mais educar, atribuindo esta atividade à Igreja e à Escola. Entretanto, se a Igreja ou a Escola tentam educar, a família toma a defesa do aluno, não permitindo que ele seja “constrangido”. Professor que chama a atenção de aluno, corre o risco de perder o emprego (o professor é despesa, o aluno é lucro). Há professores que pedem transferência de suas escolas, por temor de agressão ou homicídio.  Há professores que são agredidos em sala de aula. Há alunos que tornam as aulas completamente inúteis, porque dominam o ambiente e fazem de reféns os colegas e o professor.

É preciso ter em mente  que não há corrupção sem uma cultura de corrupção, de permissividade, de relaxamento moral. Não há agente passivo, sem agente ativo. Para que alguém receba propina, alguém tem que ter oferecido ou se sujeitado a pagar. O grave é que temos ouvido, ultimamente, que no Brasil, sem a propina, não é possível negociar com a Administração Pública.  A corrupção só pode prosperar se tiver o endosso de quem estiver à sua volta. Quando todos consideram legítimo, aceitável ou compreensível estar à margem da lei; ou preferimos nos omitir a denunciar e, ao votar, preferirmos nos livrar da obrigação cívica sem pesquisar a conduta do candidato (aceitando indicação de amigos ou nos encantarmos com a retórica, sem contar os que pegam o "primeiro"santinho como sugestão e nem querem saber de mais nada), não se pode, efetivamente, achar que não se tem nenhum responsabilidade pelo estado das coisas. 

Por outro lado, como são tímidas, em muitas esferas e locais, as realizações do poder público!, Ssendo necessário ainda se pagar a parte, para se ter educação, saúde, estradas etc., de qualidade, este fato leva o povo a buscar uma vantagem direta e imediata, ao invés da indireta e duvidosa que resultaria de seus impostos, de sua colaboração com o poder público.

A imoralidade que afeta a vida pública constrói ramificações que tendem a corromper as relações sociais, afetando tanto a sociedade, na mesma proporção que afeta o Estado. A inversa também é verdadeira. A imoralidade privada está na gênese da imoralidade pública. Não é possível ao poder formal corromper-se sem que as relações sociais já estejam corrompidas. A corrupção no governo torna-se um exemplo negativo para a moralidade privada.  

Não há duas sociedades; uma limpa (o povo) e outra corrupta (a política). A corrupção não poupa quem está fora do poder formal. A sociedade dita honesta, é de onde saem os que fazem o "gato" de energia elétrica ou tv à cabo, os que recebem indevidamente o seguro desemprego ou algum benefício previdenciário, os que ultrapassam pela direita ou pelo acostamento, os que pulam a roleta no transporte público.

A coisa pública ainda é vista como coisa de ninguém e isto se reflete tanto na luz acesar na repartição pública vazia, quanto no telefone público destruído, no lixo jogado no chão, no mau estado das escolas públicas, nas calçadas cheias de lixo e excremento animal. 

Falta-nos um pouco de espírito republicano, mas no sentido que lhe emprestava a Roma antiga, ou seja:, de abnegação, virtude, fidelidade a princípios e aos antepassados,  busca do bem comum, colocação do interesse comum acima do interesse privado etc.

A República hoje é só um nome,  sem qualquer ligação contra tudo que atente contra a natureza humana (que acena para a vantagem imediata, para o egoísmo, para o hedonismo, para a competição inescrupulosa).

Todos querem eleição e abominam as ditaduras, mas somente as aceitam enquanto mantiverem seus privilégios e não lhes exigirem contrapartida cívica. A cidadania passa a se resumir ao ato de colocar, eventualmente (se não houver uma viagem ou programa melhor), um voto qualquer, numa urna específica, de forma despreocupada, sem buscar conhecer os candidatos (o horário político só tem a virtude de devolver o diálogo às famílias, com o desligamento da TV).

Por isso criou-se uma cultura da relativização. Tudo é relativo, melhor, tudo deve ser relativo, porque isso ajuda manter as amizades e a “não arrumar problemas”. Não se deve mais ter religião, senão religiosidade (acreditar em alguma coisa) . Ter opinião só se justifica, se for a opinião corrente. Criou-se uma moral de ocasião, amoldável às situações e não formadora do caráter. Olvidou-se que, atributos necessários, não admitem quantificação (ou se é honesto ou não se é ...).

Alguns poderiam dizer que esta visão é muito moralista e que ou vê no homem apenas defeitos, ou considera possível que esteja absolutamente livre de defeitos de qualquer natureza, o que desconsidera a natureza humana e mais, até antipatriótica por considerar que os defeitos do Brasil decorrem da índole do brasileiro.

Não posso falar de outras terras. O brasileiro tem muitas virtudes, quiçá mais do que muitos povos estrangeiros, mas vem relutando em colocá-las à mostra, em utilizá-las em suas relações sociais e políticas.

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A virtude não está em não se ter defeitos, mas em se buscar, de forma vigorosa, dominá-los.

A natureza humana é mais afeta aos defeitos, do que as virtudes, porque os defeitos não exigem esforço e oferecem recompensa imediata. A moral nos impõe uma conduta de domínio de nossos defeitos, para nos permitir viver bem, viver em sociedade, coisa que o Direito também persegue, embora sua eficácia seja menor.  Por isso que, para muitos, a moral é a “a arte de viver bem”.

Se a natureza humana é esta, o vicejar de uma ética do atalho, corrente nestes tempos e com um pouco mais de força,  nestas paragens, traz com ela um aumento dos defeitos, com a substituição dos valores imateriais e perenes, por valores seculares, passageiros. Nossos valores primordiais sofreram uma mudança de paradigmas (ainda sofrem) e o que é pior, esta mudança de paradigmas não veio para aumentar a fraternidade, o espírito público, a vontade de fazer com que a evolução tecnológica implique em evolução do próprio homem, como tal,  e não o contrário .

A honra se esvaziou, tornando-se um valor secundário e até desconhecido. No passado, a palavra dada, a lei, os costumes, a fé, as promessas, o nome, a família, a reputação, eram os bens mais preciosos. No mundo moderno , o vil metal tomou sua dianteira. Como já dito por alguém, “hoje o que vale mais é a intenção e a intimidade. Matava-se por honra, hoje mata-se por um par de tênis usado ou por um relógio falsificado”.

Hoje, parodiando o poeta, “tudo vale a pena, se a vontade não for pequena”.  Tudo pode ser relativizado, dependendo da vantagem ou do benefício que se possa obter em troca. É uma ética egoísta, um pretenso instinto de preservação.

Este instinto de preservação, que leva cada indivíduo a buscar resguardar, principalmente, a sua individualidade, torna ainda mais complicada a tarefa dos que se dedicam a tornar possível a vida em sociedade.

Como conciliar um individualismo crescente e defendido até com hostilidade, das exigências da vida comunitária, que exige, em algum grau, o sacrifício do individual, mesmo que para preservá-lo?. Eisste um dos grandes dilemas da humanidade.

Diante de um panorama tão cinzento, se poderia-se dizer que não há solução, senão adaptar-se o homem ao seu meio e, buscar a mínima interferência do outro e também do Estado, mas, assim não é.

A melhora da vida em sociedade, o aperfeiçoamento das instituições civis e políticas, o bem comum e a paz dependem de um irresignar-se, primeiro consigo, depois com as relações sociais e políticas; dependem da manutenção da capacidade de indignar-se, inclusive com os próprios atos.

O aperfeiçoamento do “eu” implica, em grande parte, em se repensar a educação. Devolver à escola e aos professores a autoridade que lhes retiraram, mas dar-lhe meios físicos e intelectuais para fazer frente às suas atividades. Formar os professores, aperfeiçoá-los, tornar a docência uma função honrosa e não uma alternativa para os rejeitados pelo mercado de trabalho (“o que fazer com quem não aprendeu, senão obrigá-lo a ensinar”) e premiar os excelentes, para incentivar a excelência.  Em contrapartida, dar ao professor a autoridade necessária para que saiba atuar contra os vícios e de forma a   formar uma juventude virtuosa ou, pelo menos, uma juventude cônscia de que os defeitos devem ser dominados e não admirados.

Também as autoridades públicas devem atuar de forma eficiente e rigorosa (consigo e com os outros) para impor um agir conforme a lei e, ainda, conforme a moral, sem se esquecer que, a moralidade pública foi alçada ao nível constitucional e que é muito mais exigente do que a mera legalidade.

É preciso aperfeiçoar as instituições e, com isto, recuperar não apenas suaa eficiência delas, mas o respeito que precisam para poderem atuar com eficácia, a começar pelas escolas, pelo judiciário etc.

É preciso eliminar o câncer, já metastático, das práticas sociais; cortar a irrigação das cédulas cancerosas, eliminando qualquer vantagem econômica ou financeira que delas possa advir. Acabar com o clientelismo (troca de favores ilícitos), o paternalismo (que concede benesses sem contrapartida e, com isto, incentiva a inércia e não a virtude), o corporativismo ( que considera algumas categorias como superiores não apenas ao povo, como ao bem comum), o Nepotismo (que faz prevalecer o interesse privado, sobre o interesse público e se alimenta do obscurecimento, porque a transparência lhe destrói).

É preciso estabelecer padrões específicos de conduta, que contemplem as expectativas da sociedade, através da fixação de regras concretas. A sociedade quer soluções concretas, quer diretrizes inconfundíveis e inafastáveis. Não quer penas astronômicas, cumpridas em fração mínima, mas penas razoáveis, cumpridas integralmente. Quer saber como fazer, o que fazer e, principalmente, ver que todos estão fazendo e que isto está sendo bom, também para todos (e não apenas para  alguns).

Em uma palestra do Professor Marins ele explicavadizia sobre o crescimento de algumas igrejas pentecostais baseado, exatamente npor este motivo. Elas sãoeram explícitas: “não pode cortar o cabelo, não pode raspar a perna, precisa ir à igreja “x” vezes por semana etc.” O povo se cansou do abstrato, ama liberdade, mas se sente mais livre, quando sabe quais são suas obrigações e como cumpri-las, até porque, o cumprimento nos dá uma sensação única de bem-estar.

Também uma ética pública é necessária e não apenas desejável. Não apenas uma ética na política, mas uma ética que contemple todas as relações sociais e privadas,  para REVERTER o crescente nível de desconfiança da sociedade quando à conduta dos seus agentes públicos.

Para lograrmos tais objetivos é preciso que se busque ganhar eficiência também no trato da coisa pública (gerenciar de forma técnica e não meramente empírica), buscar eficácia (como tal, o resultado pretendido pela clientela), transparência (mostrar ao que veio e não ter medo de revelar seus defeitos, buscando corrigi-los, à exaustão), padrão ético -, mas um padrão que busque melhorar as virtudes e não se amoldar aos defeitos.

É preciso empenho político para combater as práticas administrativas viciadas e entranhadas no âmago da administração pública, alterando culturas impregnadas pelo vício e sustentadas pela ignorância ou pela inércia.

É preciso reduzir a confusão,  que existente no Brasil, entre o público e o privado (como dizem na piada, “muitos fazem na vida pública, o mesmo que na privada”).  Não é mais possível que o servidor considere normal usar o tempo na repartição para fazer trabalhos pessoais, navegar na internet, fazer compras etc., como se o Estado fosse responsável por sua vida privada., Aassim como, não é possível que o Estado continue desrespeitando a coisa privada e se mantendo como um dos maiores clientes do Poder Judiciário (só paga em juízo e depois que não houver mais jeito e ainda assim, se quiser cumprir os precatórios, vendo tal obrigação como uma faculdade).

Os princípios constitucionais (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e acessibilidade) não podem mais ser tratados como apenas uma boa-intenção, algo que admita interpretações tão ambíguas que permitam que a relativização torne impossível aferir o cumprimento e o respeito.

É preciso criar instrumentos que tornem impossível (ao menos difícil e pouco vantajoso) o uso indevido de cargo público.

É preciso pôor um basta na terceirização ilícita na administração pública, que permite desvios de receitas, apaniguamento, troca de favores, compra de votos etc. e que, ainda assim, é vista como a solução perfeita, diante da ineficiência da máquina administrativa (desconfia-se, inclusive, que muitas entidades públicas, v.g. hospitais, são deixados sem recursos, administração ou pessoal, na etapa que antecede a privatização, assim como as estradas são abandonadas, com a mesma finalidade).

Vinte anos após a Constituição da República ter indicado o concurso público como via única de acesso a emprego e cargo público, é preciso tanto a purificação dos quadros (reduzindo as funções comissionadas ao mínimo dos mínimos), quanto a punição exemplar de todo administrador que faça táabula rasa dos dispositivos constitucionais.

O próprio concurso público precisa ser revisto. Não é possível, por exemplo, se escolher um bom motorista, apenas com provas intelectuais; por outro lado, o concurso, quando mal fiscalizado, pode representar apenas a formalização da fraude. O concurso deve ser visto como um início, que se desenvolve no estágio probatório (efetivo, que implique no desligamento dos não-vocacionados ou não-virtuosos) e desemboca em um serviço público que não se compadece da inércia e da ineficiência dos que nele aguardam apenas a aposentadoria.  Para tudo aprimorar não só o concurso, mas também o estágio probatório e as formas de punição, impedindo a acomodação.

A possibilidade dos concursados agirem com eficiência, honestidade e padrões éticos é muito superior que para os admitidos por vias paralelas[4] e mais, se projeta sobre o agir até dos que foram admitidos por via eletiva, na medida em que com “estranhos no ninho” é mais difícil praticar o indevido. Não é possível, ademais que, em centenas de servidores concursados, não se encontrem alguns de “confiança” para receberem funções gratificadas.

É preciso desenvolver uma consciência de que a atividade pública é um atividade que envolve uma finalidade e que para isso se exige eficiência. É exatamente esta finalidade e esta eficiência -, aliadas ao caráter democrático e público -, que exigem que o ingresso se dê por concurso público e não por apadrinhamento político etc.

Também a permanência do servidor nos quadros não pode deixar de ser incondicional. A estabilidade no emprego serve mais ao interesse público, que o interesse do servidor. O servidor deve ser estável para agir com independência (inclusive para denunciar seus superiores) e não para que possa se acomodar, descumprindo qualitativa e quantitativamente suas funções.

Do mesmo modo, Assim como o sistema não pode permitir nem que a saída do serviço se dê com ofensa aos mesmos princípios que nortearam o ingresso, nem que a moralidade seja tornada secundária por corporativismo, dó (pena) etc., mantendo o servidor improbo ou inerte.

O enriquecimento ilícito no exercício de função pública deveria implicar na perda de todos os bens adquiridos após as práticas ilegais e mais, na inabilitação por vários anos, até para exercer o direito de voto, que se dirá ocupar cargo ou emprego público.

Também o patrocínio de interesse privado perante a administração pública deve ser reduzido ao que é: prejuízo à Fazenda Pública. É preciso, em contrapartida, reduzir as dificuldades e a burocracia, porque elas é que permitem que se vendam as facilidades.

Ainda para que as instituições logrem aperfeiçoar-se, é preciso que todos os agentes públicos se recordem que, como a mulher de César,  precisam não apenas serem honestos, mascomo parecerem honestos e, para tanto, conduzirem-se também em suas atividades privadas, com retidão[5].  É preciso recordar que, todo agente público (agentes políticos ou servidores públicos) - bemassim como, qualquer um do povo, porém aquele com ainda maiscom maior rigor -, possui o dever de agir dentro de princípios morais e não apenas legais[6]; e mais, conduzir seus assuntos particulares de forma e evitar conflitos[7] ou ofensa a interesses públicos. Apenas isto já afastará os não-vocacionados e os mal-intecionados.

A observância do princípio da moralidade na Administração Pública impõe uma distinção que ultrapassa o binômio bem versus mal, entre o legal e o ilegal. Deve buscar ir além da lei, observando a moralidade pública que fornece o perfeito equilíbrio entre legalidade e finalidade, tendo em vista o bem comum.

Há um hábito que vem se tornando comum:, o de mentir. Mente-se na vida privada, mente-se na vida pública, mente-se na campanha eleitoral e mente-se na própria administração da coisa pública. O agente público jamais pode omitir[8] ou falsear a verdade. É odioso ver o Príncipe ou seus representantes faltarem com a verdade, principalmente em juízo. Como não é possível manter para sempre uma mentira, ela sempre acaba por desacreditar a instituição dirigida pelo mentiroso e mais, incentiva o homem comum a cair no mesmo erro.

Esta imoralidade generalizada afeta até as relações de trabalho. Na ofensa ao princípio da moralidade, mormente no acesso ao serviço público, está a gênese de muitos outros atos de corrupção. Quando o administrador não pode escolher quem vai estar a seu lado, começa a agir de forma mais ética. Se quem está a seu lado, ingressou por mérito e se sua saída forçada do serviço público , implicar na impossibilidade de retorno, (ao menos por longo tempo), torna-se mais difícil  o ato de corrompê-lo.

Por outro lado, sem cargos para oferecer em troca de votos, será mais difícil ou caro eleger-se. O Administrador, assim, começará a se preocupar com projetos de governo, com a construção de uma imagem proba e eficiente, com a escolha de equipes competentes etc.

Na iniciativa privada, o vício moral faz com que o empregado trabalhe de forma desidiosa ou sem preocupar-se com o sucesso da empresa, que fraude atestados e cartões ponto, que deixe luzes acesas, desperdice material etc. O empregador pode achar normal fraudar cartões ponto ou recibos, exigir horas extras não anotadas etc. O que deveria ser uma relação de cooperação e parceria torna-se uma relação conflituosa e de dano recíproco.

Os prejuízos causados à sociedade constitui outro capítulo. Não se pode onerar toda a sociedade em benefício de poucos ou pela irresponsabilidade de alguns.

Tudo o que puder ser especificado e divisível, tiver condições de ser cobrado, deve sê-lo. É um absurdo um criminoso dar ao Estado um enorme gasto para investigá-lo, processá-lo, prendê-lo e mantê-lo preso, em condições muito melhores do que a população mais pobre e não ser ressarcido em nenhum centavo, embora o réu tenha gastado milhões com seus advogados.  As custas processuais são quase simbólicas, considerando-se o tempo de magistrados, promotores etc. As custas policiais são inexistentes.

Ao lado disso, ainda há a corrupção para garantir privilégios na cadeia. Não seria melhor que o próprio Estado cobrasse diárias e, evidentemente com limites que não afastasse o caráter punitivo da pena, nem estabelecesse privilégios, fixasse diárias diferenciadas para os presos que quisessem pagá-la, para que, com o valor, pudesse manter um mínimo de dignidade para os presos que não podem pagá-las. Ao fingir que isso não existe, o Estado acaba dando azo à corrupção nas cadeias, onde privilégios e mordomias acabam sendo vendidos.

Quem for flagrado causando um prejuízo ou dano a um bem público, deve ressarci-lo e repará-lo, preferivelmente, ele próprio. Pichou um monumento, que seja obrigado a limpá-lo e também outros monumentos pichados. Jogou entulhos na  via pública, que seja obrigado a retirá-los e, ainda, colaborar na limpeza pública. É preciso desincentivar as práticas danosas e, ao mesmo tempo, não permitir que a comunidade pague por alguns.

Como é possível que, para realizar um evento privado com enorme lucro (um show musical ou um evento esportivo, por exemplo), dezenas ou centenas de policiais sejam postos à disposição pelo Estado, além de viaturas, combustível etc. e que nenhum centavos seja ressarcido. O cidadão comum, ao acionar a polícia, posteriormente, poderá ouvir que ela não tem combustível para a diligência. Seria necessário estabelecer o número de policiais, viaturas e equipamentos necessários, de forma técnica, bem como, o respectivo custo e que este custo seja ressarcido pelos reais beneficiários.  A última Copa do Mundo de Futebol foi um exemplo gritante da confusão entre o público e o privado, seja na isenção tributária, seja nos enormes estádios construídos e pouco utilizados, num país sem hospitais, escolas e estradas.

As próprias benesses sociais utilizam critérios absurdos de concessão. O idoso, mesmo rico, terá isenção nos transportes públicos; esta será coberta pelo resto da população, mesmo que mais pobre do que ele.  O mesmo acontece com medicamentos para diabetes e hipertensão etc. O Estado gasta mal, aumenta os impostos para fazer frente aos gastos exagerados e, ainda por cima, não consegue cobrir as necessidades básicas efetivamente necessárias.

Precisamos de professores, juízes, promotores, policiais, pais e mães que considerem que o padrão moral de um povo é construído ou demolido pela leniência. Estamos nos tornando um país em que todos só têm direitos (alguns muito mais direitos do que outros) e que ninguém tem obrigação. Essa contabilidade improvável é absolutamente danosa.  Hoje, o professor que chama a atenção de um aluno é repreendido. Os pais querem ser amigos dos filhos, mas se esquecem da responsabilidade que possuem na respectiva formação. Quando eles demonstram não possuir educação na escola, por exemplo, os pais preferem reclamar dos professores, a repensar a educação que dão aos filhos.  As escolas, mesmo diante da inação dos pais, acabam considerando que a tarefa de dar formação moral não lhes pertence e, o resultado é que as crianças não recebem formação alguma. A indisciplina prejudica o aprendizado e torna reféns os professores, não poucos agredidos e desestimulados.

Em resumo,  é preciso que todos nós aperfeiçoemos nosso padrão moral e busquemos, em casa ou no trabalho, aperfeiçoar o padrão moral da sociedade, porque disto depende a convivência pacífica e o caráter pedagógico do direito, que deve buscar sempre o aperfeiçoamento das relações sociais. Não podemos mais nos surpreender com a honestidade e sim considerá-la sequer uma virtude, mas uma exigência mínima para se viver em sociedade. Não podemos também mais, considerar que desonestidade, a imoralidade e todos os vícios, tenham se tornado tão comuns que passemos a adjetivá-los e graduá-los (é o pequeno traficante, o pequeno ladrão, o político ligeiramente desonesto etc.).

A sociedade é feita pelos homens que a integram. Seu padrão moral será a média do padrão moral de seus integrantes. Não é possível achar que podemos melhorar a sociedade, mantendo a conduta moral e ética como algo inerente apenas à intimidade e ao querer individual.

Quando bradamos contra a desonestidade dos políticos, precisamos lembrar que eles nos representam e o fazem na mesma medida de nosso padrão moral. Embora o poder possa corromper, isto só ocorre com quem, na realidade, já havia cedido ao desmoronamento de seus princípios morais.

Aos operadores jurídicos. Querem exercer alguma atividade voluntária? Querem fazer a diferença para a elevação do nível de cidadania de nosso povo ? Então, ensinem cidadania, o direito usual, básico, nas escolas e centros comunitários, quiçá com o apoio e a criação de material didático específico pelas Associações. Isto fará uma enorme diferença, em um país onde os maus exemplos é que são notícia.

Para finalizar, uma pequena anedota, que talvez explique tanto a multiplicidade de ministérios, quanto a ineficiência dos órgãos públicos:

 Um cabo eleitoral procurou um conhecido Prefeito, de uma pequena cidade. Após lembrar-lhe sua condição e de sua atuação na eleição, pediu-lhe um especial favor: precisava de um emprego para um filho.

_ Prefeito, lembre-se que fui um de seus mais fiéis cabos eleitorais. Não estou lhe cobrando nada, até porque,  queria vê-lo eleito, por confiar na sua competência, mas preciso de um favor. Tenho um filho, já com 22 anos, que não estuda, não trabalha, acorda tarde, chega amanhecendo em casa, sempre em festas, jogos etc. Quero que arrume um emprego na Prefeitura, para ocupar o garoto.

_ Realmente, você foi uma peça chave para minha eleição. Tenho um cargo de assessor e estou disposto a dá-lo a seu filho, o salário é de R$10.000,00.

_ Senhor Prefeito, isto é demais. Se ele já é um vagabundo sem dinheiro, com dinheiro então será muito pior. Preciso de um emprego para ocupá-lo bastante, ganhando pouco.

_ Tenho um outro cargo, de chefe de setor, para ganhar R$5.000,00.

_ Ainda é muito Prefeito, preferia que ele ganhasse menos de R$ 1.000,00, por mês.

_ Ele tem 2º grau completo, informática, redação própria, digitação etc.?

_ Não, ele não tem nada disso.

_ Bem, então não será possível, porque, para ganhar um salários desses, só prestando concurso público e ele não iria passar.

Seria cômico, não fosse trágico e tão real.

 

 

 

 


[1]  José Ernesto Manzi é Desembargador do Trabalho em Santa Catarina. Especialista em Direito Administrativo (Universidade de Roma), Processos Constitucionais (Universidade de Castilla La Mancha) e Processo Civil (Unoesc – Chapecó). Mestre em Ciência Jurídica.  Doutorando em Direitos Sociais (Castilla La Mancha – España). Bacharelando em Filosofia (Universidade Federal de Santa Catarina).

[2] - pensem num ventilador, na música no rádio, na água gelada e lembrem como isto seria impossível ao mais rico dos homens, há um século atrás.

 [3] E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.  Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Carta de Pero Vaz de Caminha, pedindo o primeiro favor político. O Brasil resistiu apenas 9 dias ao rigor moral, no tratamento da coisa pública.

[4]Em detrimento dos que passam madrugadas insones e que, muitas vezes, largam tudo e passam necessidade apenas para estudar para concursos públicos.

[5]- com que moral o policial  alcoólatra poderia autuar uma infração de trânsito decorrente de embriaguez ou um juiz que não pagasse suas contas, atuar em processos de cobrança ou execução? O agir mal na função pública potencializa os efeitos negativos do exemplo, sendo, ademais, um escárnio.

[6] - em um país onde até algumas leis nasceram para proteger interesses de pessoas ou categorias influentes, mesmo com ofensa a princípios, por vezes o legal se afasta do moral e, ao homem público, impõe-se um agir probo. Entre o honesto e o desonesto (mesmo que legal), deve sempre optar pelo honesto.

[7] - ainda que tenha a obrigação de acionar o sistema legal, sempre que necessário, para que a “tolerância dos bons, não aumente a audácia dos maus.”

[8] - resguardado o dever de sigilo, quando a lei e a função o exigir, mas para cumprimento fiel de seu cargo, não para possibilitar a fraude, a ilegalidade, ou o prejuízo ao bem-comum.

 


 

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Sobre o autor
José Ernesto Manzi

Desembargador do TRT-SC. Juiz do Trabalho desde 1990, especialista em Direito Administrativo (La Sapienza – Roma), Processos Constitucionais (UCLM – Toledo – España), Processo Civil (Unoesc – Chapecó – SC – Brasil). Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI – Itajaí – SC – Brasil). Doutorando em Direitos Sociais (UCLM – Ciudad Real – España). Bacharel em Filosofia (UFSC – Florianópolis – SC – Brasil), tendo recebido o prêmio Mérito Estudantil (Primeiro da Turma)

Informações sobre o texto

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