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Infiltrações: do direito à diferença ao direito à diversidade.

Construindo uma nova teoria da constituição para o novo constitucionalismo democrático

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III. Considerações finais: Para onde ir, afinal?

Essa variação temporal entre a “modernidade e o que viria a seguir”, é fruto de muito estudo e produção científica. Ao que se refere às concepções de “Pós-Modernidade”, Guacira Lopes Louro nos explica que existem 3 definições, em suas concepções: 1) a primeira remete a uma época que viria após a modernidade; 2) a segunda define uma tendência estética que promove uma ruptura com o modelo clássico e com as formas modernas; 3) e a terceira, finalmente, se refere a um determinado modo de estar no mundo e de dar sentido ao mundo (LOURO, 2005). Tendo como análise essas três possibilidades, Guacira conclui:

“Não dá pra esquecer que o prefixo ‘pós’ pressupõe o que vem a seguir. Daí que, obviamente não poderia existir pós modernidade sem modernidade (...) mas parece lógico supor que aquilo que se denomina pós-modernidade implica, ao mesmo tempo, um rompimento, uma transformação em relação à modernidade.” (LOURO, 2005)

Já Dussel, na dificuldade de se estabelecer um termo para o tempo que é vivido hoje, esse emaranhado hegemônico moderno com experiências alternativas à esse projeto, se utiliza do termo “Transmodernidade”. Segundo o autor, a razão moderna é então transcendida, não como negação da razão enquanto tal, e sim em negação à razão eurocêntrica, violenta, desenvolvimentista e hegemônica; Transmodernidade então seria um projeto mundial de libertação em que a alteridade possa se realizar (DUSSEL, 2005). O projeto transmoderno então seria uma co-realização daquilo que é inviável para a concepção moderna: a co-realização de solidariedade, tal como centro/periferia; oriente/ocidente; diversidade sexual e de gênero; diversidade étnica, entre outros. Isso, não por negação, mas sim por complementação, partindo da alteridade (DUSSEL, 2005).

A explicação de Dussel se segue em um sentido em que: não se trata de um projeto antimoderno de grupos conservadores, nem um projeto pré moderno por afirmação folclórica e saudosista do passado, e nem um pós moderno como pura negação da modernidade, o que seria um irracionalismo niilista (DUSSEL, 2005). Se a modernidade surgiu através de um projeto homogeneizador, é pela desconstrução desse projeto que a modernidade se esvai. Entretanto, as experiências nos mostram que não é singelo esse processo de mudança.

Um exemplo recente dessa dificuldade de ruptura com a modernidade está numa tentativa de que o filme “También La Lluvia[45]” nos traz. O filme, através de uma metalinguagem, apresenta a direção de outro filme histórico, produzido por espanhóis, sobre o processo de colonização na América Latina e as iniciais resistências, tal como o processo de construção argumentativa ideológica de Las Casas. Durante o processo de filmagem, se desencadeou na Bolívia[46] uma série de protestos contra a absurda privatização da água da chuva feita pelo governo boliviano. Uma série de elementos fizeram com que os membros da equipe espanhola entrassem em contradição entre a narrativa que eles estavam filmando, e a que estava acontecendo concretamente além das gravações. Entretanto, o clímax do filme está no fato de que, ao final da história, uma índia boliviana pede a ajuda de um dos diretores espanhóis – homem, branco, proprietário - pois “só ele poderia ser ouvido, só ele poderia a ajudar”.

A necessidade em “se render” ao projeto hegemônico demonstra não só as dificuldades em se estabelecer um novo paradigma histórico, como também a outra visão, que é o “não querer mudar”. Entretanto podemos sugerir algumas experiências que, de alguma maneira, buscam romper com elementos modernos, que são, por exemplo, o Movimento Zapatista em Chiapas no México, o Estado Plurinacional na Bolívia e no Equador, os Quilmes na Argentina, e o Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil.

Não pretendemos com esse artigo definir quais são, só e exclusivamente, as possibilidades de mudança. Pretendemos apenas traçar um panorama histórico/contemporâneo da modernidade tanto quanto apresentar algumas possibilidades de ruptura. Temos ciência de que essas mudanças significariam uma reconstrução da Teoria do Estado, da Teoria da Constituição e das Teorias Modernas do Direito, por exemplo. O antro dessas transformações está em um espaço de diversidade cultural, de gênero, de raça, de justiça, ou seja: na proteção constitucional ao direito à diversidade como direito individual e coletivo. É por isso que o direito à diversidade não se confunde com o direito à diferença, como mencionamos anteriormente. No direito à diferença – individual ou coletivo – o estado e o sistema jurídico moderno continuam atuando no sentido de reconhecer, de incorporar aos seus padrões, ainda estabelecendo um referencial de “melhor”.

Imaginem, pois, um conflito entre um latifundiário e um indígena. Na impossibilidade de se resolver esse conflito, a solução para o latifundiário é simples: levar aquele impasse à justiça convencional, que é uma justiça hegemonicamente “latifundiária”.

Assim, o direito à diversidade segue em outra lógica. Não haveria permissões nem reconhecimento, não haveria “inclusão” por que não se poderia haver “exclusão”. A nova lógica poderia ser resumida na seguinte frase: “eu existo e me apresento na minha existência; não dependo do seu registro para que eu exista”.

Quando buscamos colidir: uniformização e pluralismo; linearidade e complementariedade histórica; universalismo europeu e universalismo mundo; binário e indistinto, antropocentrismo e ecocentrismo; e conquista e permissão; tentamos apresentar um giro moderno, ou um “giro decolonial”, termo cunhado originalmente por Nelson Maldonado Torres, em 2005, que basicamente significa um movimento de resistência político, prático e epistemológico (BALLESTRIN, 2013). Quando colidimos o moderno ao que vem depois, independente do nome que se dá a isto, não nos desfazemos da modernidade, entretanto buscamos superá-la. Quando contrapomos o colonizador ao colonizado, o rico ao pobre, o opressor ao oprimido, o latifundiário ao indígena, não nos reduzimos a uma lógica binária moderna, e sim, explicitamos as coisas como elas são. Se tudo que é sólido se desmancha no ar, é tempo de desconstruir o que de mais sólido a história já apresentou.


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BURGARELLI, Ricardo. O Capital. Belo Horizonte, exposto no Centro Cultural do BDMG, 2014. (Exposição de Arte)

ESPANHA. Constituição (1492).  Decreto de Alhambra. Édito da Expulsão dos Judeus da Espanha. 31 de março de 1492. (Legislação)

TAMBIÉN LA LLUVIA. Direção de Icíar Bollaín. Produção de Juan Gordon. Roteiro: Paul Laverty. Música: Alberto Iglesias. Espanha; França; México: Morena Films; Mandarin Films; Televisión Española; Vaca Films, 2010. (103 min.), color. Legendado. (Filme)


Notas

[3]  Enrique Dussel “1492: O Encobrimento do Outro: a origem do Mito da Modernidade.” (Petrópolis, Vozes, 1993).

[4] Elio Antonio de Nebrija, 1444-1522.

[5] Édito de expulsão dos judeus da Espanha, em 1492.

[6] Explicação do termo “Transmoderno” nas considerações finais.

[7] 1474 – 1566.

[8] ? - 1545

[9] Indivíduos que agiam em nome da coroa a fim de regulamentar e regular o recolhimento de tributos e circunscrever a exploração do trabalho indígena.

[10] Bartolomé de Las Casas, Historia de las Indias (México, F.C.E., 1995). Tradução Nossa.

[11] Immanuel Wallerstein, O Universalismo Europeu: a retórica do poder. (São Paulo, Boitempo, 2007).

[12] Ricardo Burgarelli, Capital, (Exposição artística, Belo Horizonte, 2014)

[13] Academia Brasileira de Letras, Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2008) pág. 1266.

[14] Em sua maioria ainda são. No Brasil, a primeira gramática produzida por uma mulher é apenas do ano 2000. É a “Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000. 1037p.” da autora Maria Helena de Moura Neves.

[15] Marx e Engels. Lutas de Classes na Rússia. (São Paulo: Boitempo, 2013)

[16] Ibidem.

[17] Hegel, Filosofia da História. (Brasília, UNB, 1999).

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Karl Marx, Resultados Futuros da dominação Britânica da Índia. In: Marx e Engels. Obras Escolhidas. (Lisboa, 1982).

[22] Enrique Dussel, El Ultimo Marx: y la liberacion latino-americana  (México, Siglo XXI, 1990).

[23]Como em World-Systems Analysis: An Introduction e Alternatives: The U.S. Confronts the World, ambas de 2004.

[24] Ibidem.

[25] Local onde ele atua, afinal, Wallerstein é investigador sênior na Universidade de Yale.

[26] Os três momentos e suas respectivas justificativas são: 1) Século XVI/Evangelização; 2) Século XVIII/Civilização; 3) Séculos XX e XXI/Direitos Humanos e Democracia.

[27]  Jean-Claude Milner. Os Nomes Indistintos. (Rio de Janeiro Companhia de Freud, 2006)

[28]  1887-1948

[29]  Do original, “Terra Ethic”.

[30]  Aldo Leopold. A Sand County Almanac. (New York, Oxford University Press, 1949).

[31]Manifesto Ecossocialista Internacional, que pode ser encontrado disponível nesse link http://migre.me/oTATj, ou na obra: Michael Lowy. Ecologia e Socialismo. São Paulo: Cortez, 2005.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem.

[35] Bernard Edelman, La légalisation de la classe ouvrière, t. 1: L’entreprise  (Paris, Christian Bourgois, 1980), p.52

[36] Ibidem.

[37] Engels e Kautsky, Socialismo Jurídico. (São Paulo, Boitempo, 2012).

[38] A Nova Gazeta (tradução nossa).

[39] Ibidem.

[40] Ibidem.

[41] Jean-Claude Milner, La Arrogancia Del Presente. (Buenos Aires, Manantial, 2009).

[42] Ibidem. Tradução nossa.

[43] Slavoj Žižek, Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa (São Paulo, Boitempo, 2009)

[44] Jean-Claude Milner, La Arrogancia del Presente (Buenos Aires,  Manantial, 2009). Tradução nossa.

[45] Direção de Icíar Bollaín. Produção de Juan Gordon. Roteiro: Paul Laverty. Música: Alberto Iglesias. Espanha; França; México: Morena Films; Mandarin Films; Televisión Española; Vaca Films, 2010. (103 min.)

[46] O filme –dentro do filme – foi produzido na Bolívia com a justificativa de se economizar gastos.

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Sobre os autores
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Lucas Parreira Álvares

Cientista social, pesquisador.Graduando em Ciências do Estado pela UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros ; ÁLVARES, Lucas Parreira. Infiltrações: do direito à diferença ao direito à diversidade.: Construindo uma nova teoria da constituição para o novo constitucionalismo democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4410, 29 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41258. Acesso em: 6 mai. 2024.

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