A judicialização do direito humano à saúde.

Uma discussão acerca da efetivação de direito essencial, por meio da prestação jurisdicional, sem prejuízos ao mínimo existencial

Leia nesta página:

Procurar-se-á analisar o direito humano à saúde e sua efetivação, identificando razões que justifiquem o fato de boa parte da população recorrer a via judicial para garantir tal direito.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES


 

Sabe-se que o direito à saúde é um direito humano, reconhecido por todas as pessoas, nações, pactos nacionais e internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH - de 1948 e do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNH3 (Decreto nº7.037 de 21 de dezembro de 2009) e principais planos e convenções que tratam dessa mencionada garantia essencial a todo ser humano. O bem jurídico maior de todo ser humano é a sua vida, portanto, sem saúde não há vida e sem vida não existem as relações em sociedade.

O princípio da dignidade da pessoa, que está consagrado como direito fundamental na Constituição Brasileira (Art. 1º, III), é o princípio máximo do Estado Democrático de Direito e tem o condão de garantir que a vida e a saúde das pessoas sejam preservadas, já que não há como ter uma vida digna sem saúde. Deste modo, o/a presente trabalho/pesquisa visa identificar e analisar um fenômeno que tem sido cada vez mais intenso no cenário brasileiro, que é o da necessidade de se recorrer à via judicial para ter um direito garantido/efetivado ou, pelo menos, ter direito ao prolongamento da vida, a tratamentos, ao acesso a medicamentos, dentre outras garantias essenciais. Assim, o problema central objeto do nosso estudo seria esboçar quais as razões que têm levado uma parte da população brasileira a recorrer à via judicial para ter o seu direito à saúde respeitado. Para tanto, traremos os aspectos mais relevantes tratados pela doutrina e jurisprudência atualmente, considerando obras, artigos e decisões publicadas, que abordam a matéria sobre a efetivação do direito à saúde. Além do que, pretende-se por meio do presente trabalho, tentar identificar porque, de fato, este fenômeno tem ocorrido, em especial com os menos favorecidos (se é que são eles os que brigam na justiça), já que é dever do estado brasileiro, previsto na Carta Magna de 1988, assegurar o direito à saúde de forma igualitária, universal e gratuita.

Para atingir tais objetivos de forma embasada, vale destacar o papel e a importância dos dispositivos constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (da qual o Brasil é signatário), adotada e proclamada no período pós Segunda Guerra Mundial, período no qual, em virtude das violações ocorridas durante o embate, os direitos humanos essenciais precisavam ser protegidos e preservados de qualquer forma. A mesma estabeleceu em seu artigo XXV:


 

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (GRIFOS NOSSOS)

 

Logo, percebe-se a necessidade, trazida pelo legislador supranacional, de se resguardarem direitos, a exemplo do direito à saúde e bem estar, como forma de garantias necessárias à preservação da vida e consequentemente da espécie humana nas mais variadas regiões do planeta. Garantir os direitos essenciais é o primeiro passo para que as demais conquistas se realizem.

Ultimamente, no Brasil, a Constituição conquistou notória força normativa e efetividade. Basta observar a quantidade de demandas que são direcionadas ao Poder Judiciário e, consequentemente, a quantidade de sentenças que são proferidas pelos magistrados brasileiros. Números recentes do Conselho Nacional de Justiça (fonte: site CNJ, 2014) comprovam que, embora os juízes tenham proferido decisões sobre 17,8 milhões de ações ao longo de 2013, a quantidade de processos que tramitaram no ano passado foi ainda maior; aproximadamente 19,4 milhões. Ainda segundo dados do CNJ, no Estado da Bahia, os magistrados do TJBA decidiram sobre 458 mil dos 623 mil processos buscados como meta. Assim, percebe-se que o chamado “foco de tensão” (se considerarmos os três poderes legalmente instituídos: executivo, legislativo e judiciário) tem se localizado sobre o poder judiciário, o qual tem sido procurado, e obrigado a atuar, para cumprir os ditames constitucionais.

As decisões dos tribunais envolvendo o direito à saúde e o fornecimento de medicamentos são um exemplo disso. As normas constitucionais atualmente possuem aplicabilidade direta e imediata por magistrados e tribunais, isso porque os preceitos estabelecidos na Carta Magna têm servido de base e sustentação para efetivar práticas que visam garantir os direitos fundamentais, dentre as quais destacamos aquelas que visam impor ao estado o cumprimento de obrigações (de fazer), explicitadas na CF, tais como: garantir o acesso à educação, à saúde, a moradia, e às mínimas condições de existência. A crescente atuação do Poder Judiciário, por meio de determinações à Administração Pública para que esta forneça gratuitamente medicamentos, busca efetivar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.

O despertar para a presente temática, surgiu, além da necessidade de se reavaliar as práticas de efetivação do direito à saúde no que tange à medicina curativa, a partir de uma distinção/indagação apresentada pelo professor Ricardo Lobo Torres (2009), em sua obra “O Direito ao Mínimo Existencial”, envolvendo o direito humano à saúde. O citado professor afirma que a Constituição Federal de 1988 distinguiu entre as prestações de saúde que constituem proteção ao mínimo existencial e as condições necessárias à existência (direitos humanos fundamentais), que deveriam ser gratuitas; e as que se classificam como direitos sociais e que poderiam ser custeadas por contribuições (medicina curativa).

A partir daí e, buscando a explicação para as situações contemporâneas envolvendo direitos humanos essenciais e a judicialização destes, considerando o princípio da reserva do possível (muitas vezes invocado pelo Estado para justificar possíveis omissões), fez-se necessário navegar pela doutrina e jurisprudência e identificar, junto a diversos autores, incluídos Vladimir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano (2010), na obra “Direitos Humanos: Conceitos, significados e funções”, quais as origens do poder jurídico e do poder ideológico, e relacionar os fundamentos utilizados pelos teóricos, que qualificam o poder como instrumento que movimenta a sociedade, com o direito à saúde, partindo da premissa que o Estado muitas vezes, em prol da escolha de um “interesse público”, vai de encontro aos demais Direitos Sociais.

Assim, para facilitar o entendimento acerca de alguns pontos que deverão ser evidenciados por meio do presente trabalho, algumas questões se fazem necessárias para direcioná-lo, quais sejam:

1. O artigo 196 e o Artigo 6º da Constituição Federal de 1988 tratam de direitos humanos diferentes, a saber direito fundamental essencial e direito social?

2. Seria o princípio da reserva do possível superior ao mínimo existencial, considerando a importância de ambos no processo de garantia dos direitos humanos?

3. Quanto à sua efetivação, o direito à saúde tem sido respeito pelo Estado Brasileiro?

4. A atuação judicial, objetivando garantir direitos humanos, fundamentais e sociais, consiste em invasão de poderes, tendo em vista a teoria da separação dos poderes adotada pela CF de 1988?

 

 

Cabe observar que, o direito à saúde é garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196, como se vê:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

 

Contudo, acredita-se que o país ainda sofre com a ausência de políticas públicas efetivas de saúde, seja na sua promoção, na proteção ou na recuperação. Vale ressaltar que o foco do presente trabalho está na medicina curativa (recuperação), momento extremamente complexo para quem vive o dilema de não ter condições de custeá-la da forma devida, sendo necessário recorrer, em alguns casos, ao Estado, por meio do Judiciário, para ver efetivado um direito constitucional garantido anteriormente, evitando, desta forma, prejuízos ao seu mínimo existencial e ao de suas famílias. É o que se pretende investigar.

 

2. CONCEITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO À SAÚDE

 

2.1. DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

 

A doutrina encontra enorme dificuldade para definir Direitos Humanos. Isso se deve ao fato alertado por Bobbio (1909, p.17) de que “direitos do homem” é uma expressão muito vaga, e a maior parte das definições são tautológicas [...]ou nos dizem algo apenas sobre o estatuto desejado ou proposto para esses direitos, e não sobre o seu conteúdo.

Além disso, Bobbio afirma que quando se acrescenta alguma referência ao conteúdo, não se pode deixar de introduzir termo avaliativos. Aí surge um problema: Segundo ele, os termos avaliativos são interpretados de modos diversos, conforme a ideologia. Por isso, o entendimento sobre os “direitos do homem” (atualmente chamados de Direitos Humanos) são tão variáveis no tempo e no espaço. Talvez este fato ilustre um pouco, guardadas as proporções, da diferença que alguns autores tentam estabelecer entre direitos humanos fundamentais e direitos sociais.

Em uma definição tautológica, o termo “direitos humanos” quer caracterizar aqueles direitos que correspondem ao homem, apenas pelo fato de ser humano. Numa definição formal, pode-se dizer que, os direitos humanos são aqueles que pertencem a todas as pessoas, sem distinção, sendo impossível a privação deles em decorrência do seu caráter indisponível. Na prática, contudo, cada vez mais frequentes são as violações dos direitos humanos, sendo essas a regra quando deveriam ser exceção.

Não se pode deixar de mencionar a definição teleológica, baseada na finalidade dos direitos humanos, isto é, conceituando-os como aqueles direitos essenciais para o desenvolvimento digno de todo e qualquer ser humano.

Em linhas gerais, pode-se dizer que DH são compreendidos como aqueles direitos reconhecidos por todos como sendo de todos, e que estão protegidos pelo caráter da universalidade, inalienabilidade, inviolabilidade, irrenunciabilidade e imprescritibilidade.

Deste modo, os direitos humanos compreendem todas as prerrogativas e instituições que conferem a todos, universalmente, o poder da existência digna, livre e igual (JR. CUNHA, 2014, P. 440), ou seja, são aqueles dotados de caráter universal e que dizem respeito à dignidade da pessoa, sendo, portanto, direitos compostos pelo atributo da validade e executoriedade imediata, quanto à sua garantia por parte do Estado.

Entende-se que os direitos fundamentais são aqueles direitos humanos que estão positivados no texto constitucional (JR. CUNHA, 2014, P. 441). São direitos que incluiriam os direitos humanos já positivados, tanto no plano interno como no plano internacional, à exemplo do que ocorre com o direito à saúde, a moradia, à vida, à alimentação, dentre outros.

O que interessa, para efeito do nosso estudo, considerando os conceitos acima expostos, é que os direitos humanos fundamentais, a exemplo do direito à saúde (nas suas mais diversas concepções: preventiva, de tratamento ou curativa), têm que ser garantidos pelo Estado, primeiro porque isso está explicitado na norma constitucional, segundo, porque a violação destes ocasiona a quebra do pacto social estabelecido, e terceiro porque a segurança gerada em virtude da quebra do pacto sinalizaria para uma desordem social, evidenciando uma possível regressão do modelo atual de gestão social, fato que nenhum estado/governo espera que ocorra.


 

2.2. DIREITOS INDIVIDUAIS, COLETIVOS E SOCIAIS

 

Outro ponto a se destacar, no que tange aos aspectos conceituais relacionados à questão dos direitos e garantias fundamentais, especialmente, no que diz respeito à garantia da saúde e fornecimento de medicamentos, é o quanto colocado pelo Professor Boaventura de Sousa Santos, em sua obra “Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos” (SANTOS, 2013, p. 23/24), onde afirma que:

 

sendo que os direitos humanos coletivos não fazem parte do cânon original dos direitos humanos, a tensão entre os direitos individuais e coletivos resulta da luta histórica dos grupos sociais que, sendo excluídos ou discriminados enquanto grupo, não podem ser adequadamente protegidos pelos direitos humanos individuais. As lutas das mulheres, dos povos indígenas, afrodescendentes, vítimas do racismo, gays, lésbicas e minorias religiosas marcam os últimos cinqüenta anos de reconhecimento de direitos coletivos, um reconhecimento sempre amplamente contestado e em constante risco de reversão.

 

No caso da presente temática, entende-se que o direito humano à saúde é direito individual, pois, visa garantir o direito de cada pessoa, considerada de forma isolada, sendo inviolável, imprescritível, inalienável e indivisível, contendo características inerentes ao que, hoje, já é reconhecido como DH. Contudo, é também um direito coletivo, pois possui características agregadoras que buscam atingir a toda coletividade de modo igualitário, pelo menos no plano ideal, propiciando o bem estar comum das pessoas.

Vale mencionar que os direitos coletivos constituem direitos transindividuais de pessoas ligadas por uma relação jurídica entre si ou com a parte contrária, sendo seus sujeitos indeterminados, porém determináveis. Há também a indivisibilidade do direito, pois não é possível conceber tratamento diferenciado aos diversos interessados coletivamente, desde que ligados pela mesma relação jurídica. São entendidos ainda como aqueles indivisíveis de que são titulares pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato(difusos) ou grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (coletivo em sentido estrito), ou ainda os provenientes de origem comum (individuais homogéneos, tidos como formalmente coletivos) (ARAÚJO, 2006, p.114).

Assim, os direitos individuais homogéneos (direitos formalmente coletivos) são aqueles que dizem respeito a pessoas que, ainda que indeterminadas num primeiro momento, poderão ser determinadas no futuro, e cujos direitos são ligados por um evento de origem comum. Tais direitos podem ser tutelados coletivamente muito mais por uma opção de política do que pela natureza de seus direitos, que são individuais, unidos os seus sujeitos pela homogeneidade de tais direitos num dado caso. Seriam as cláusulas constitutivas destinadas à limitação do Estado. Sua finalidade é atribuir ao indivíduo direitos de liberdade, fruíveis e reivindicáveis individualmente (ARAÚJO, 2006, p. 114).

Os Direitos sociais, por sua vez são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal. (MORAES, 2003, p. 202)

Outrossim, asseveram Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano que os direitos sociais são aqueles que reclamam do Estado um papel prestacional, de minoração das desigualdades sociais. (ARAÚJO, 2006, p. 218)

Os direitos sociais, portanto, na opinião dos citados autores, são direitos fundamentais de segunda geração, assim como os direitos econômicos e culturais. Podem ser entendidos como direitos fundamentais a prestações (obrigações de fazer), os quais procuram obter do Estado as condições jurídicas e materiais indispensáveis para o seu exercício.

Deste modo, os direitos sociais prestacionais, manifestam-se como barreiras defensivas do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos. Fica visível, desta forma, a força determinante que têm os poderes econômico e político (incluído o jurídico), os quais trataremos em tópico específico a seguir.


 

2.3. DIREITO À SAÚDE E MEDICINA CURATIVA


 

Essencial se faz mencionar o artigo 6º da Carta Magna de 1988, o qual inovou por trazer, à luz dos direitos humanos, os chamados direitos SOCIAIS, dentre os quais destacam-se a educação, a saúde, o trabalho, a alimentação, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. O artigo 196, já mencionado nas considerações preliminares da presente pesquisa, também reforça a importância dada pelo legislador constitucional à garantia efetiva do direito à saúde.

Essa necessidade se deve ao fato de valorizar o regime democrático de governo, de modo a propiciar a garantia dos direitos sociais e coletivos na sua forma mais ampla e geral.

Ademais, no artigo 5º, caput, que trata dos direitos e garantias individuais e coletivas, está preservado o direito à vida, o qual não pode ser garantido se não houver a saúde como grande corolário.

Para Ricardo Lobo Torres (2009, p. 245):


 

as atividades preventivas geram o direito ao atendimento integral e gratuito: as campanhas de vacinação, a erradicação das doenças endêmicas e o combate as epidemias são obrigações básicas do Estado, deles se beneficiando ricos e pobres independentemente de qualquer pagamento. A medicina curativa e o atendimento nos hospitais públicos, entretanto, deveriam ser remunerados pelo pagamento das contribuições ao sistema de seguridade, exceto quando se tratasse de indigentes e pobre que têm o direito ao mínimo de saúde sem qualquer contraprestação financeira, posto que se trata de direito tocado pelos interesses fundamentais (GRIFO NOSSO).


 

Contudo, a questão é tão complexa que Torres (2009, p. 246) reconhece que o grande problema do direito à saúde seria:

definir os limites nos quais se consideraria direito fundamental, gerando a obrigatoriedade da prestação estatal gratuita, ou mero direito social, fora do campo do mínimo existencial e dependente de dramáticas escolhas orçamentárias e de pagamento de contribuições.


 

Entende-se, com o devido respeito a opinião do referido autor, que o grande problema não seria de classificação: reconhecer o direito à saúde como social ou fundamental, mas sim, reconhecer que se trata de direito humano fundamental e social, já que sua garantia está diretamente vinculada à preservação da espécie humana, tendo relação direta com o bem jurídico maior de qualquer ser humano: a vida, o que faz com que esse direito tenha um valor incomensurável.

Desta forma, mesmo havendo o entendimento de que ele (direito à saúde) se distingue do direito à vida, ainda assim, ele está relacionado a outro valor de grande importância, que é a dignidade da pessoa. Logo, mesmo que o direito à saúde seja considerado um direito social, entende-se que, no mínimo, o seu “financiamento” deve ser feito em regime de coparceria ou solidariedade, cabendo, portanto, parte ao contribuinte e parte ao Estado, fato que obriga este a uma prestação, a qual muitas vezes não ocorre, daí a necessidade de judicialização das demandas ligadas aos DH.

 

2.4. PODERES: ECONÔMICO, POLÍTICO, JURÍDICO E IDEOLÓGICO


 

No que tange à influência do poder nas relações sociais estabelecidas, pode se afirmar que o capitalismo é um sistema de privilégios, porém no caso dos direitos humanos essenciais, acredita-se que o Estado tem a obrigação de colocá-los à disposição de todas as pessoas ou, pelo menos, tentar garantir o maior acesso possível a esses. Caso não ocorra, e é reconhecidamente inviável essa possibilidade devido às desigualdades geradas pelo modelo capitalista, o “pacto social” restará prejudicado e de alguma forma o Estado terá que promover políticas e ações de contrapeso para se chegar ao equilíbrio, o que muitas vezes acarreta na tomada de iniciativa pela via difusa, ou seja, um dos entes assume o papel que não seria seu originariamente, para evitar que um direito humano seja lesado. É aí que ocorre o processo de judicialização das demandas para dar efetividade a direitos.

Bobbio (apud CRICK, 1981), no seu ensaio “O significado de Política” acredita que existem, na sociedade contemporânea, três tipos de poder: a) o econômico, que se vale da posse de certos bens, necessários ou considerados necessários, numa situação de escassez, para induzir aqueles que não os possuem a um certo comportamento, que pode ser, principalmente, um certo tipo de trabalho; b) o poder ideológico, o qual baseia-se na influência que idéias formuladas de uma determinada maneira, ou emitidas em determinadas circunstâncias, por uma pessoa revestida de autoridade, e difundidas por certos meios, têm sobre o comportamento dos comandados; e o c) poder político, que se estrutura sobre a posse dos instrumentos, através dos quais se exerce a força política, isto é, através das armas de qualquer espécie e grau. Esse último, na maior parte das vezes, se estabelece e se sobrepõe aos demais, por meio da coerção. De acordo com essas definições, o poder jurídico, outro “tipo” de poder, estaria diretamente ligado ao poder político, eis que se fundamenta no poder coercitivo presente nas normas impostas.

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Portanto, se tentarmos estabelecer critérios para verificar o grau de hierarquia existente entre os três poderes, poder-se-ia dizer que a FORÇA do poder político, existente por meio da coação imposta nas medidas adotadas, se sobrepõe as demais, como meio mais durável e eficaz para condicionar comportamentos. Assim, entende-se que este é o caminho a ser percorrido pelo judiciário (utilização da força que detém para fazer cumprir o direito), em caso de risco iminente de lesão a direito, muitas vezes para garantir que direitos fundamentais (e/ou essenciais), a exemplo do direito a saúde, sejam preservados/respeitados.

Deste modo, a garantia de direitos, a exemplo do direito à saúde, tem sido condicionada a uma atuação contundente do estado, aqui entendido em sentido amplo (considerados todos os entes que o compõem), por meio de decisões judiciais que objetivam garantir direitos essenciais previstos no ordenamento jurídico.

 

 

3. POLÍTICA DE SAÚDE E MEDICAMENTOS NO BRASIL

 

A questão da saúde no Brasil passou a ser tratada como questão relevante, em especial, no ano de 1904, no Governo de Rodrigues Alves, quando, por meio de uma política de saneamento, passou a concentrar seus esforços no combate a cólera, varíola e a febre amarela. Um dos grandes destaques no período, marcado por bastante autoritarismo, foi o médico Osvaldo Cruz (KOSHIBA & PEREIRA, 1996, pág. 247), o qual, através de modelo “campanhista” (com uso da força policial e do poder autoritário) obteve importante sucesso no combate às doenças epidêmicas referidas supra. O período se caracterizou pela insatisfação do povo frente a medidas tomadas pelo poder público (Revolta da Vacina).

Durante o período em que prevaleceu este modelo (de combate campanhista), as ações públicas curativas eram praticamente restritas aos espaços privados e de caridade. Somente a partir de 1930, quando ações de cunho curativo e medicamentoso passaram a ser tomadas, é que se inicia um processo de estruturação básica do sistema público de saúde, com a criação do Ministério de Educação e Saúde Pública (Decreto nº19.402/1930). Até este momento, a saúde não era universalizada no aspecto curativo e somente os trabalhadores que contribuíam com a previdência eram contemplados com a atuação estatal nesse sentido.

Posteriormente, no período do regime militar (1966), foi criado o INPS – Instituto Nacional de Previdência Social (Decreto Lei nº 72 de 21 de novembro de 1966), no qual todo trabalhador urbano com carteira assinada era contribuinte e beneficiário do sistema, sendo-lhe garantido o direito de atendimento na rede pública de saúde. Entretanto, grande parte da população brasileira, que não integrava o mercado formal de trabalho, não foi contemplada com tal garantia, fator relevante para se entender a origem das desigualdades de tratamento relacionadas aos aspectos de acesso à saúde no país.

Com a criação do SUS – Sistema Único de Saúde, a CF/1988 passou a estabelecer que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema único” (Art. 198). Deste modo, todos os brasileiros, mesmo aqueles sem vínculo empregatício, passaram a ser titulares do direito à saúde.


 


 

 

3.1. O PAPEL DOS ENTES FEDERATIVOS EM MATÉRIA DE SAÚDE

 

No momento atual, alguns anos após a consolidação da CF/1988, tem-se discutido qual o papel de cada ente estatal no processo de garantia do direito à saúde, no caso da presente pesquisa, especialmente no que diz respeito a aspectos ligados à medicina curativa.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, a competência para legislar será CONCORRENTE quando tratar da proteção e defesa da saúde (Art. 24, XII, e Art. 30, II). À União compete o estabelecimento de normas gerais (Art. 24, §1º); aos Estados cabe suplementar a legislação federal (Art. 24, §2º); e aos Municípios cabe legislar sobre os assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber (Art.30, I e II). No que tange à competência administrativa, a CF/1988 prevê que esta será COMUM à União, Estados e aos Municípios, cabendo aos três entes formular e executar políticas de saúde (Art. 23, II, CF/88). Destarte, todos os entes são responsáveis em matéria de saúde, devendo agir com cooperação uns com os outros. Vale ainda mencionar que a responsabilidade pela direção das ações de saúde na União ficará a cargo do Ministério da Saúde; nos Estados, caberá às Secretarias Estaduais de Saúde; e nos Municípios caberá à Secretaria de Saúde Local ou órgão equivalente (Lei nº 8.080/90, Art. 9º).

Além disso, o artigo 194 da Constituição Federal de 1988, prevê que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e a assistência social, ou seja, as ações devem ser planejadas e executadas de forma integrada; coesa.

A Carta Magna de 1988 também vai além ao estabelecer no Parágrafo Único, do artigo citado, que “compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I- universalidade da cobertura e do atendimento(...)

Contudo o artigo 195, abaixo transcrito, estipula que:


 

A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais”


 

Deste modo, para alguns autores, a exemplo de Ricardo Lobo Torres, a prestação dos serviços de fornecimento de medicação deve ser feita de forma conjunta, atribuindo-se parte do “financiamento” ao Estado (União, Estados e Municípios), e outra parte à sociedade, já que este se trata de direito social, e portanto, carece da exclusividade e obrigatoriedade da prestação pelo poder estatal. A única exceção, segundo o referido autor, seriam os indigentes e os pobres (TORRES, 2009, p. 245).

Há quem entenda, é nosso caso, que a sociedade já financia o fornecimento de medicação e os serviços de saúde (hospitais, postos de saúde, etc.) por meio da alta carga tributária imposta a todos os cidadãos, não se caracterizando assim a subsidiariedade. Além disso, de acordo com o que consta atualmente na Constituição Federal, é obrigação do Estado, seja parcial ou total, garantir o direito à saúde. Cada vez mais o Estado, que detém o poder coercitivo, oriundo do Poder Político tão enunciado por Bobbio (apud BERNARD, 1981) em seu texto “O Significado de Política”, utiliza-o de modo a controlar as ações das pessoas, “condicionando-as” com fundamento no princípio basilar do direito administrativo, que é o da supremacia do interesse público sobre o privado. Desta forma, muitas vezes, violações de direitos ocorrem e, devido a situação de vulnerabilidade de alguns, a força é conduzida num único sentido, de modo que sejam mantidas certas desigualdades sociais. Daí, o reconhecimento quanto à necessidade de fazer valer o direito por meio da justiça (judicialização), para que se estabeleça a ordem e o equilíbrio nas relações sociais. Além disso, nem sempre o “interesse público” almejado é alcançado, uma vez que, os privilégios, fruto dos desníveis sociais, ocasionam distorções na forma de acessibilidade aos recursos, equipamentos e produtos disponíveis, de modo que estes não sejam acessíveis a todas as pessoas, ou pior, sejam direcionados para atender a interesses outros que não são somente públicos, mas sim de determinadas castas sociais.

Conforme já explanado supra, o direito à saúde é tão fundamental que jamais precisará de reconhecimento explícito, pois ele está intimamente ligado ao maior bem do ser humano: a vida. Por este motivo, o reconhecimento de um direito subjetivo público à saúde, constitui exigência inseparável de qualquer Estado que se preocupa com o VALOR da vida humana (CUNHA JR., 2014, P. 593).

A chamada “utopia” brasileira da gratuidade das prestações públicas na área de saúde, abordada por Lobo Torres (2009, p. 246), acontece, segundo o autor, em virtude da ineficácia de aplicabilidade da Lei nº 8.080/90, a qual criou a ilusão da possibilidade de atendimento à saúde com qualidade e sem custo para a população, o que, nas palavras do autor, acabou por gerar o desarticulamento da ação estatal e piorou consideravelmente o atendimento ao povo.

Na prática, a realidade se encarregou de demonstrar que à população pobre ficou reservado um sistema único de saúde (gratuito) de baixa qualidade, enquanto os ricos e a classe média foram impelidos à assistência prestada pela iniciativa privada, já que a CF declarou, em seu Art. 199, que “a assistência à saúde é livre a iniciativa privada”, ressalvando que “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio”(§1º).

Quanto à distribuição de medicamentos, a competência dos entes federativos (União, Estados e Municípios) não está explicitada nem na Constituição nem na lei. Os critérios para repartição de competências foram esboçados em atos administrativos (federais, estaduais e municipais), sendo que o principal deles é a Portaria nº 3.916/98 do Ministério da Saúde (Política Nacional de Medicamentos). De maneira bem simplificada, os entes federativos, em colaboração, elaboram listas de medicamentos que serão adquiridos e fornecidos à população, contudo, o que se vê na prática é a elaboração de Relações de Medicamentos, nas quais constam apenas medicamentos essenciais básicos. Em geral são medicamentos mais simples, de menor custo, organizados em uma Relação Nacional de Medicamentos (RENAME). Bem assim, a União em parceria com os Estados e o Distrito Federal ocupa-se ainda com a aquisição e distribuição de medicamentos de caráter excepcional, que são aqueles destinados ao tratamento de patologias específicas, que atingem número limitado de pacientes, e que apresentam alto custo, seja em razão do seu valor unitário, seja em virtude da utilização por período prolongado. A Portaria nº 2.577/GM de 27 de outubro de 2006, aprova o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional e apresenta a lista de medicamentos sob a responsabilidade da União. No caso dos Estados, cabe aos gestores estaduais definir o rol de medicamentos que serão adquiridos, em particular os de distribuição em caráter excepcional. Contudo, apesar deste tipo de ação estatal existir, uma demanda considerável de pessoas tem procurado o judiciário em busca de medidas que obriguem o Estado brasileiro a fornecer medicamentos e/ou itens de saúde, o que demonstra que aquilo que tem sido oferecido não é o satisfatório.

É válido mencionar também que, de acordo com a Constituição Estadual da Bahia, em seu artigo 233, “o direito à saúde é assegurado a todos sendo dever do Estado garanti-lo(...)”. Para efetivá-lo, uma das estratégias previstas na citada norma é o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde (grifo nosso)”, por meio de políticas públicas. Como se observa, o legislador estadual, alinhado com os ditames constitucionais, demonstra a relevância do direito à saúde também no viés recuperativo e de reabilitação, fato que vincula expressamente o poder público estadual, em especial, o poder executivo, a garantir a efetividade desse direito.

Em matéria de execução, com o advento da Lei n°8.080/90, ocorreu a chamada Municipalização dos serviços de saúde, já que a lei definiu o que cabe a cada um dos entes federativos, a saber: à direção nacional do SUS cabe “prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional”(art. 16, XIII), devendo “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal”(art. 16, XV); à direção estadual cabe “promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde”(Art. 17) e lhes prestar apoio financeiro e técnico; e, por fim, à direção municipal cabe planejar, organizar, controlar, gerir e executar os serviços públicos de saúde (art. 18, I e III).

Como se vê, cabe ao poder público a garantia do direito à saúde nas suas mais variadas formas, contudo, em razão das constantes buscas junto ao judiciário, para efetivação deste direito humano e fundamental, percebe-se que o ente público originário, nas três esferas, responsável pela execução das políticas, não tem tido eficácia satisfatória, o que provoca a ida do cidadão ao poder derivado (judiciário) para tentar efetivar seu direito.

4. MÍNIMO EXISTENCIAL, RESERVA DO POSSÍVEL E JUDICIALIZAÇÃO

 

O mínimo existencial diz respeito ao atendimento das necessidades vitais essenciais ou mais importantes para os indivíduos, tais como alimentação, moradia, saúde, dentre outras. Não possui dispositivo explícito assentado na Constituição Federal de 1988, contudo, em razão da sua importância e da necessidade de sua observação, por meio da interpretação sistemática, pode-se utilizar como parâmetro para sua fixação o artigo 7º, inciso IV, da Carta Magna, que preceitua o salário mínimo como sendo um direito dos trabalhadores urbanos e rurais, capaz de atender às necessidades destes e de suas famílias, in verbis:

 

Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;


 

Outrossim, a Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a Assistência Social em âmbito social, alterada pela Lei nº 12.435/2011, traz a expressão “mínimos sociais” em seu art. 1º, desenvolvendo na esfera federal a ideia de mínimo existencial e visando, através de ações integradas entre iniciativa privada e poder público, garantir o atendimento às necessidades vitais básicas. Esses institutos legais só reforçam a necessidade, trazida desde as civilizações antigas e declarações de direitos mais remotas (Francesa de 1776 e da ONU de 1948), de observância ao mínimo existencial.

O mínimo existencial é o núcleo do princípio da dignidade da pessoa, elencado na Constituição Federal de 1988 como princípio fundamental nos termos do disposto no art. 1º, III, e abrange a garantia de atendimento às necessidades vitais básicas, explicitadas, exemplificativamente no mencionado artigo 7º da Carta Magna. A saúde, cujo direito está diretamente vinculado ao mínimo existencial, é um bem que o poder público tem o dever de garantir, observar e fiscalizar, contudo, alguns autores entendem que, por se tratar de direito social, estaria condicionado à verificação de disponibilidade orçamentária estatal. Canotilho (1997) chama esse limite de reserva do possível para significar que a efetivação dos direitos sociais depende de disponibilidade de recursos econômicos.

O Princípio da Reserva do Possível ou Princípio da Reserva de Consistência trata-se de uma construção jurídica germânica que teve origem numa ação judicial que objetivava permitir a determinados estudantes cursar o ensino superior público com base na garantia da livre escolha do trabalho, ofício ou profissão. No citado episódio, ficou decidido pela Suprema Corte Alemã que, somente se pode exigir do Estado a prestação em benefício do interessado, desde que observados os limites de razoabilidade.

Os direitos sociais que exigem uma prestação de fazer estariam sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade, ou seja, justificaria a limitação do Estado em razão de suas condições socioeconômicas, conjunturais e estruturais.

Violar-se-ia, deste modo, o mínimo existencial quando da omissão na concretização de direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa (tão bem defendida na Declaração da ONU de 1948), onde não deveria existir espaço para a discricionariedade do gestor público. Torna-se essencial, pois, que se amplie, ao máximo, o núcleo essencial do direito, de modo a não reduzir o conceito de mínimo existencial à noção de mínimo vital. É valido mencionar que, se o mínimo existencial fosse apenas o mínimo necessário à sobrevivência, não seria preciso constitucionalizar o direito social, bastando reconhecer o direito à vida (maior bem do ser humano). Logo, o mínimo existencial está ligado a viver com dignidade; ter condições dignas de viver.

Nota-se, diante de possíveis limitações financeiras estatais, que vários autores brasileiros tentam se valer da doutrina constitucional alemã para inviabilizar um maior controle das políticas sociais por parte dos tribunais. Entende-se que essa posição é discutível e, na verdade, não corresponde às exigências de um Direito Constitucional Comparado eficaz e cientificamente coerente.

O Princípio da Reserva do Possível consiste em uma falácia decorrente de um Direito Constitucional Comparado (e equivocado), na medida em que, situações de países de níveis diferentes de desenvolvimento econômico e social não podem ser comparadas (exemplo do Brasil versus países-membros da União Europeia). Vale ressaltar que os integrantes do sistema jurídico alemão, defensores da reserva do possível, não desenvolveram seus posicionamentos “a favor” dos direitos sociais num Estado de permanente crise social com milhões de cidadãos socialmente excluídos, com um grande contingente de pessoas que não acham vaga nos hospitais da rede pública, crianças e jovens fora da escola, deficiência alimentar, dentre outras situações de precariedade.

O Juiz Federal Dirley Cunha Junior (2014, p. 602), mesmo reconhecendo a importância da doutrina alemã e do direito comparado, afirma que:

é extremamente discutível e de duvidosa pertinência o traslado de teorias jurídicas desenvolvidas em países de bases cultural, econômica, social, e histórica próprias, para outros países cujos modelos jurídicos estão sujeitos a condicionamentos socioeconômicos e políticos completamente diferentes. Os institutos jurídico-constitucionais devem ser compreendidos a partir da história e das condições socioeconômicas do país em que se desenvolveram, de modo que é impossível transportar-se um instituto jurídico de uma sociedade para outra, sem se levar em conta os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos.

 

O princípio da reserva do possível representaria, pois, um limitador à efetividade dos direitos fundamentais e sociais. Na verdade:

 

num estado em que o povo carece de um padrão mínimo de prestações sociais para sobreviver, onde pululam cada vez mais cidadãos socialmente excluídos e onde quase meio milhão de crianças são expostas ao trabalho escravo, enquanto seus pais sequer encontram trabalho e permanecem escravos de um sistema que não lhes garante a mínima dignidade, os direitos sociais não podem ficar reféns de condicionamentos do tipo da reserva do possível. Não se trata de desconsiderar que o Direito não tem a capacidade de gerar recursos materiais para sua efetivação. Tampouco negar que apenas se pode buscar algo onde este algo existe. Não é este o caso, pois aquele “algo” existe e sempre existirá, só que não se encontra – este sim, é o caso – devidamente distribuído! Cuida-se, aqui, de se permitir ao Poder Judiciário, na atividade de controle das omissões do poder Público, determinar uma redistribuição dos recursos públicos existentes, retirando-os de outras áreas (fomento econômico a empresas concessionárias ou permissionárias mal administradas; serviço da dívida; mordomias no tratamento de certas autoridades políticas, como jatinhos, palácios residenciais, festas pomposas, seguranças desnecessários, carros de luxo blindados, comitivas desnecessárias em viagens internacionais, pagamento de diárias excessivas, manutenção de mordomias a ex-Presidentes da República; gastos em publicidade, etc.) para destiná-los ao atendimento das necessidades vitais do homem, dotando-o das condições mínimas de existência. Os problemas de “caixa” não podem ser guindados a obstáculos à efetivação dos direitos fundamentais sociais, pois imaginar que a realização desses direitos depende de “caixas cheios” do Estado significa reduzir a sua eficácia a zero, o que representaria uma violenta frustração da vontade constituinte e uma desmedida contradição do modelo do Estado do Bem Estar Social. (CUNHA JR., 2014, P. 604) (GRIFOS NOSSOS)


 

Nesse sentido, entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196) ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entende-se – uma vez configurado esse dilema – que razões de ética jurídica impõem ao julgador uma só opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e saúde humanas.

É indiscutível a controvérsia sobre a aplicação do Princípio da Reserva do Possível pelo Estado com o objetivo de legalizar sua omissão na implementação das políticas públicas cuja função seria buscar o interesse público primário. Por outro lado, não haveria óbice à utilização desse mesmo princípio, por analogia, para servir de amparo legal aos prestadores de serviços de saúde que, muitas vezes, e em decorrência da própria inércia do Poder Público, veem-se em presença de condições fáticas desfavoráveis que os impossibilitam de adotar as melhores medidas que seriam necessárias e indispensáveis para viabilizar/concretizar o direito à vida e/ou à saúde. Essas condições, esse contexto, a deficiência estrutural, a escassez material e de meios, podem limitar a ação dos médicos e, sobremaneira, a implementação desses direitos que se tornam dependentes da existência das condições materiais para a sua atendibilidade, a sua exequibilidade, o que se torna muito mais grave no campo da saúde, onde uma ação ou omissão pode redundar em grande sofrimento para os cidadãos e suas famílias, ou mesmo, na morte destes.

Em suma, o princípio da Reserva do Possível pode e deve ser utilizado, não como justificativa de ineficácia pública, mas como meio de defesa legal e de luta dos profissionais de saúde pela garantia do mínimo existencial per si e como única forma de garantia da dignidade da pessoa. E, enquanto o atendimento à saúde no aspecto curativo não for satisfatório, a presença do judiciário, com uso do seu poder jurídico (e político) de fazer valer o direito, no nosso entendimento, é o que dará um pouco de segurança à sociedade quanto a garantia dos seus direitos. Por este motivo é que a judicialização não pode ser entendida como violação ao primado da separação dos poderes, mas sim como uma forma encontrada pelo poder público para preservar a segurança nacional quanto aos direitos fundamentais, pactuada socialmente por meio da Constituição Federal de 1988. A judicialização não seria necessária se o poder público cumprisse a sua obrigação prevista no regramento constitucional, o que não acontece, especialmente, no que tange à efetivação dos direitos fundamentais e humanos.

É evidente que, não atendido o “padrão mínimo” (CUNHA JR, 2014, P. 605), o qual objetiva assegurar as condições materiais indispensáveis a uma existência digna, seja pela omissão total ou parcial do legislador e/ou do poder executivo, o Poder Judiciário está legitimado a interferir, para garantir o mínimo existencial, uma vez que ele tem a obrigação de agir onde os outros poderes não cumprem as exigências básicas presentes na CF/1988.

5. VALIDADE FORMAL, SOCIAL E ÉTICA DO DIREITO À SAÚDE


 

Extraindo importantes contribuições de conceitos jurídicos que, através de análise e interpretação de forma sistêmica, poderão agregar valor, consideravelmente, ao objeto de estudo da presente pesquisa, notório ressaltar que, não basta que uma regra jurídica se estruture instrumentalmente apenas, é indispensável que ela satisfaça a requisitos de validade para que seja obrigatória, tenha aplicabilidade e que sua finalidade seja atingida.

Deste modo existiriam três tipos/espécies de validades (REALE, 1993, p. 105): a validade formal, que diz respeito à vigência das normas – trata da executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração; a validade social, que se refere à eficácia ou efetividade – trata do cumprimento efetivo do direito por parte de uma sociedade; diz respeito ao reconhecimento do direito pela comunidade, no plano social; e a validade ética, que tem relação com o fundamento (finalidade) – é o valor ou fim objetivado pela regra/norma.

Tomando por base esses conceitos, no que tange à garantia do direito à saúde, diante do quanto exposto acima, pode–se dizer que, no que diz respeito à VALIDADE FORMAL (TECNICO-JURÍDICA), a legislação brasileira caminha em passos largos, já que existem diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam da garantia do direito à saúde. Quanto à VALIDADE SOCIAL, percebe-se que as ações de estado no que diz respeito a políticas públicas de acesso à saúde, precisam aumentar e ter mais qualidade, pois, apesar de já serem notórios os avanços no âmbito da regulamentação de práticas inclusivas de acesso à saúde, a exemplo daquelas dispostas na Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, a população menos favorecida ainda carece bastante desse tipo de política. No que se refere à VALIDADE ÉTICA, que diz respeito à finalidade da norma (fundamento), nota-se que o legislador, ao acrescentar o direito à saúde em diversos dispositivos constitucionais, e até mesmo em pactos internacionais, buscou proteger esse direito considerando a sua importância. O grande problema é conseguir fazer com que o objetivo do legislador, ao criar a norma, seja efetivado por meio de políticas públicas e ações eficazes e inclusivas. Deste modo, a efetivação do direito social à saúde depende de diversos fatores, dentre os quais destacaríamos as ações de cunho preventivo e educacional e o fornecimento gratuito de medicamentos/remédios, os quais ainda padecem de iniciativas eficazes pelo poder público. Assim, na ausência ou insuficiência dessa prestação material, ou seja, na omissão ou carência do poder estatal (executivo) no cumprimento de dever prestacional, constitucionalmente previsto, “cabe indiscutivelmente a efetivação judicial desse direito originário à prestação (CUNHA JR., 2014, P. 594).

6. AUSÊNCIA DE EFETIVIDADE ESTATAL: LIMITES E POSSIBILIDADES


 

As ações de saúde são consideradas pelo legislador constitucional como de relevância pública (Art. 197, CF). Trata-se de direito de todos e dever do Estado.

Os direitos sociais previstos constitucionalmente são normas de ordem pública, com a característica de imperativas; invioláveis, portanto, pela vontade das partes contraentes.

As normas da Constituição Federal são dotadas do atributo da imperatividade, contudo, na maior parte das vezes, dispositivos da CF são frequentemente violados, seja por ação ou omissão, o que acarreta graves danos sociais e insegurança jurídica. Quando a violação ocorre, o sistema constitucional e, por via de consequência, o infraconstitucional, devem prover condições para a tutela do direito ou bem jurídico ofertados para a restauração da ordem jurídica. Neste momento, entra o Poder Judiciário com papel decisório e efetivador.

Por todo o exposto supra, percebe-se que é reconhecida a importância do direito à saúde na vida das pessoas e para que a paz e a ordem social sejam mantidas. Os direitos sociais, segundo Dirley Cunha, “representam uma garantia constitucional das condições mínimas e indispensáveis para uma existência digna”. Seu maior fundamento está no princípio da dignidade da pessoa, o qual busca garantir as condições essenciais das pessoas para que vivam numa sociedade.

Fatores educacionais e culturais interferem diretamente nas práticas sociais e na busca pela efetivação de direitos. A população que está informada, que tem orientação, sabedora de seus direitos, buscará, pelos meios legais, efetivá-los. Assim, o poder público deve estar atento às demandas da população, ainda mais se se tratar de direitos fundamentais, a exemplo do direito à saúde. O Poder Judiciário e o Ministério Público (enquanto fiscal da lei) devem estar também atentos à possíveis violações de direitos e agir quando houver necessidade e quando forem requisitados.

Deste modo, não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito - como o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

Ademais, as decisões sobre prioridades na aplicação e distribuição de recursos públicos nesta seara não podem passar pela via de discricionariedade política, pois passam a ser uma questão de “observância de direitos fundamentais” (CUNHA JR., 2014, p. 605).

Atualmente, os Tribunais continuam com o entendimento de que o dever de garantir o direito à saúde é do Estado e por isso tem determinado, por meio das suas decisões, que medidas sejam cumpridas como forma de efetivação do direito, vejamos:

 

EXPEDIENTE DO DIA 16 DE DEZEMBRO DE 2013

Processo:0047369-67.2013.4.01.3300

201333000176016

Procedimento Comum Cível / Outros / Jef

... Isso posto, ante as razões acima catalogadas, CONCEDO A MEDIDA LIMINAR vindicada nestes autos, para determinar que o Município de Salvador, o Estado da Bahia e a União (esta por meio do Ministério da Saúde) adotem, de imediato, as medidas administrativas necessárias à aquisição (se necessário, com a importação) dos medicamentos/produtos: Bomba de Insulina Accucheck Spirit Combo + Smart Control, Aplicador Accu-checkLink Assist, além de: Cateter FLEXLINK FUSION SET CANULA 8mm X 60cm (08 por mês); Cateter FLEXLINK FUSION SET (12 por mês); Reservatórios (08 por mês); Insulina Novarapid (1000U/mês, sendo 30U/dia); Tiras teste Accu-check Performa (250 por mês) e Lancetas Accu-check (06 Tambores/mês), fornecendo-os ao demandante, no prazo de 05 (cinco) dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), até ulterior decisão deste juízo.


 

Nessa mesma linha, segue entendimento do Supremo Tribunal Federal, o qual também tem sido bastante enfático e contundente diante dos pleitos ligados ao direito à Saúde, em especial, no que tange a medicamento e materiais de saúde:


 

RE 626382 AgR / RS - RIO GRANDE DO SUL
AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Julgamento: 27/08/2013 EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE FRALDAS DESCARTÁVEIS. IMPRESCINDIBILIDADE. DECISÃO EM SENTIDO DIVERSO DEPENDENTE DA REELABORAÇÃO DA MOLDURA FÁTICA DELINEADA NO ACÓRDÃO REGIONAL. AS RAZÕES DO AGRAVO REGIMENTAL NÃO SÃO APTAS A INFIRMAR OS FUNDAMENTOS QUE LASTREARAM A DECISÃO AGRAVADA. PRECEDENTES. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 21.01.2010. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido da responsabilidade solidária dos entes federativos quanto ao fornecimento de medicamentos pelo Estado, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um delesUnião, Estados, Distrito Federal ou Municípios. As razões do agravo regimental não são aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada, mormente no que se refere à reelaboração da moldura fática constante do acórdão recorrido, a inviabilizar o trânsito do recurso extraordinário. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido.


 

O que ocorre é que, em virtude da omissão administrativa (poder executivo) e legislativa (poder legislativo) o Judiciário passou a assegurar o direito à medicação em situações individuais, o que constitui, sem dúvida, “grande avanço na defesa do mínimo existencial” (TORRES, 2009, p. 256).

Em regra, diante do quadro apresentado, nos resta a comprovação de que a efetividade dos direitos fundamentais ainda depende de muita luta, e tem sido nos casos concretos que muitas vezes os indivíduos têm conquistado o reconhecimento destes. A legislação pode estar avançada, porém o olhar do poder público sobre as questões ligadas aos direitos humanos ainda não é uniforme, perpassa por um jogo de interesses políticos, que muitas vezes deixa de olhar os “humanos” em sua generalidade.

 

7. CONCLUSÕES

 

O direito humano à saúde tem que ser garantido; efetivado. Um Estado nacional que não protege esse direito, atenta contra o seu povo. Os documentos balizadores das ações e políticas públicas não devem servir de óbice à implementação de ações que visem preservar a vida e a saúde das pessoas. Com a devida vênia, respeitando as opiniões dos doutrinadores acima citados, entende-se que, mais importante do que o enquadramento que se dá ao direito à saúde, se direito fundamental e/ou se direito social, o fato de se reconhecer tal direito como essencial e de tê-lo positivado na CF/1988, já obriga o Estado a cumprir o dever legal de proteger violações contra tal direito. No nosso entendimento, trata-se de direito social e fundamental, já que está diretamente ligado ao direito à vida. A “distinção” feita na CF/1988 ao elencá-lo como direito social, não retira o seu caráter de fundamental.

Além disso, os direitos sociais previstos constitucionalmente são normas de ordem pública, com a característica de imperativas, invioláveis, portanto, pela vontade das partes contraentes.

O direito a saúde não pode ser fruto de uma escolha do Estado sobre “o que” e “quem” preservar, ele é universal e inalienável, não devendo e não podendo ser objeto de decisões meramente administrativas. Não há que se falar em um direito a saúde versus o outro direito à saúde ou o direito de um (cidadão) em detrimento do direito do outro (“OU um OU outro direito”), como alguns autores chegam a afirmar – que em caso de decisões individuais podem acarretar gastos muitos altos ao Estado e, com isso, outras políticas públicas – coletivas - seriam deixadas de lado pelos seus executores. Concretamente, quem está prestes a ter seu direito violado não pode ficar a mercê de escolhas que passam por decisões de cunho orçamentário ou político (estratégico). Uma vez que isso ocorra, a Carta Magna estará sendo violada e a segurança jurídica (e social) estará comprometida, eis que o pacto nacional se tornara ineficaz. Se há equívocos, se o Estado atual compreende que não tem condições de atender às necessidades da sociedade, a não ser de forma subsidiária, que seja alterado o pacto social; que seja alterada a Constituição.

A luta pela preservação da saúde, aqui dispensada a diferenciação em direitos individuais e direitos coletivos, não pode esperar e os juízes têm sido categóricos e objetivos ao proferir as decisões no sentido de garantir esse direito.

No Brasil, teóricos do direito e estudiosos da ciência econômica, utilizam a expressão “escassez de recursos” para justificar, em favor do Estado, a escolha feita pelos governantes e gestores da máquina administrativa, em privilegiar determinadas áreas em detrimento de outras, como método de uma administração que busca a eficiência. Contudo, como falar em escassez de recursos públicos no Brasil se o estado brasileiro ocupa o primeiro lugar em cobrança de impostos?

Falar em “limitação” de recursos é admissível, até porque, as receitas têm que ser objetivamente definidas e limitadas, de acordo com o montante arrecadado, porém, dizer que há “escassez” (falta), é ser controverso com os fatos que se apresentam; é agir com descaso diante da constante situação de desigualdade social, como também da necessidade de que os direitos humanos sejam garantidos. Percebe-se que o problema está na distribuição dos recursos e não na ausência deles.

Além disso, justificar a “escassez” de recursos invocando o princípio da reserva do possível, como sendo a causa do conflito existente entre o direito a vida (e à saúde) de uma pessoa versus o direito à vida de outra pessoa, chega a ser leviano, quando observamos o privilegiamento de interesses, pelos gestores e poder público, os quais voltam-se para outras áreas que não são tão essenciais. Como exemplo, podemos citar os altos investimentos em esporte e lazer, bem como o pagamento de enormes salários e verbas de gabinete a chefes do poder executivo, justificadas em razão dos serviços prestados nas “casas do povo”, assuntos que despertam o interesse, de forma especial, e até mesmo exagerada, dos que gerem o poder público. Em contrapartida, questões de relevante interesse nacional, são deixadas de lado, porque não “dão voto”, a exemplo das questões ligadas à saúde e educação. Por esta razão, entende-se que o grau de importância que é reservado a determinados assuntos precisa ser repensado, quando se colocam em pauta os direitos humanos e fundamentais. O exagero de alguns salários e as regalias, que muitas vezes os representantes do povo têm, destoam da realidade de milhões de brasileiros e fazem com que a reflexão sobre a disponibilidade orçamentária para questões cruciais seja re-analisada, Quando boa parte dos hospitais e das escolas encontram-se em situação de descaso absoluto, reflexões sobre a gestão dos recursos devem ser feitas. Talvez, o poder público esteja priorizando o que não é tão prioritário. Portanto, a reserva do possível não deve (e não pode) servir como justificativa para uma ausência de efetividade por parte do Estado.

Percebe-se que, por mais que políticas públicas tenham sido direcionadas à área da saúde nos últimos anos, no caso da medicina curativa e da garantia da preservação da saúde por meio da utilização dos medicamentos, o Brasil precisa avançar muito, já que, diante do que fora exposto acima, identificam-se lacunas por parte do Estado, as quais, muitas vezes, estão sendo preenchidas pelo próprio Estado (de modo compulsório), por meio das decisões judiciais, o que ocasiona um verdadeiro inchaço de demandas para efetivação de direitos humanos juntos ao Poder Judiciário.

Talvez, ocorra uma má alocação dos recursos ou uma distribuição não tão eficaz destes, já que as prioridades na destinação dos mesmos se dá, quando não há uma determinação na lei, de forma discricionária pelos governantes/gestores do Estado, a exemplo do que acontece com os recursos provenientes da cobrança de ICMS pelos estados. Os recursos, nesse caso, podem ser direcionados para as mais diversas áreas, sem que haja vinculação que traduza especificação do destino da receita. Aí está a chamada “brecha” para alguns gestores públicos “desviarem”/realocarem o recurso da sua destinação original, p que afeta o oferecimento, e até mesmo a qualidade, de alguns serviços essenciais, a exemplo da saúde.

Diante dos argumentos expostos ao longo da pesquisa, nota-se que, se existissem políticas públicas efetivas de saúde não haveria necessidade de se recorrer ao Judiciário para garantia deste direito. Logo, enquanto houver a necessidade de se recorrer ao judiciário para resolver questões ligadas aos direitos fundamentais, alguma omissão estatal ocorreu.

Além disso, em virtude da intervenção do judiciário nas questões ligadas aos direitos humanos, desde que seja para evitar violações de direitos, não há que se falar em quebra do princípio da separação de poderes. Os poderes são independentes e harmônicos e cabe a todos eles zelar pela observância dos ditames constitucionais. Se algum deles for omisso, cabe ao outro fazer com que o pacto constitucional seja respeitado. É isso que tem sido feito pelo judiciário em muitos casos, em especial no que tange ao direito à saúde e ao fornecimento de medicamentos, quando comprovada a indisponibilidade de recursos do indivíduo, respeitando-se, obviamente, o mínimo existencial.

Deixar de efetivar o direito à saúde no Brasil, representa não só um afronte à Constituição, mas sim um afronte a toda sociedade brasileira que merece uma saúde digna, afinal, a carga tributária brasileira é uma das maiores do mundo.

Com isso nos resta refletir, e reavaliar as políticas e ações até então efetivadas, no sentido de entender se a celeuma repousa sob o mau uso da verba pública, sob a “escassez” orçamentária, sob a legislação infraconstitucional, que regulamenta de forma não eficaz tal princípio constitucional, ou sob outros fatores ainda obscuros. É válido salientar que parte desse processo está diretamente vinculada ao Poder Executivo, responsável imediato pela execução das políticas e ações em defesa dos direitos humanos.

Destarte, a pesquisa não almejou em momento algum encerrar as discussões acerca do tema, pelo contrário, buscou-se ensejar maiores reflexões e discussões, para que o poder público e, e consequentemente os seus gestores, possam repensar as suas práticas, com vistas a desenvolver estudos e estratégias para que, ao longo do tempo, possam ser encontradas as melhores e mais adequadas soluções para efetivarmos, de fato, o direito fundamental à saúde, sem a necessidade de utilização da via judicial.

 

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TORRES, Ricardo Lobo; O direito ao mínimo existencial –2ª Tiragem –Outubro de 2009 –Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

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Sobre os autores
Carlos Alberto Cardoso Cerqueira Júnior

Advogado, Consultor e Assessor Jurídico. Mestrando em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB. Pós-graduado em Gestão em Direitos Humanos pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB (2013). Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto JUSPODIVM (2011). Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL (2007). Técnico em Administração pelo Colégio Estadual Senhor do Bonfim. Tem experiência na área de Direito Público (Administrativo e Tributário), Direito Privado (Cível e Trabalhista), Gestão de Direitos Humanos e Prevenção e Enfrentamento ao uso abusivo de Substâncias Psicoativas.

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti

Pós-doutorado em Humanidades pela Universidad de Salamanca, Espanha (2011, CAPES e 2008, CNPq). Doutorado em História - Universidad de Leon (2003). Mestrado em História Social pela PUC/SP. Bolsista de atividades e seminários da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales - FLACSO e Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM (2005). Na área acadêmica, é professora e pesquisadora da Universidade Católica do Salvador no Doutorado e Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea (Interdisciplinar, CAPES 5). Foi professora visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Desenvolvimento Regional e Gestão do Conhecimento da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) entre os anos de 2007 e 2010. Integrante da ANPUH (Associação Nacional de História), ABEP (Associação Brasileira de Estudos Populacionais) e membro de comissão setorial da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) 2004/2006. Professora visitante do Centro de Estudios Brasileños da Universidad de Salamanca, Espanha (2007/2008) pelo CNPq. Nos últimos anos, participa de Congressos da CEISAL (Comitê Europeu de Investigação Social sobre América Latina e Caribe), FIEALC (Federación Internacional de Estudios de América Latina y el Caribe) e ICA (International Congress of Americanists), bem como de eventos vinculados à área de Direitos Humanos, História e Gênero, Políticas Publicas, Migrações. Integrante e líder do Núcleo de pesquisa e estudos sobre juventudes, identidades, cidadania e cultura (NPEJI/UCSAL) e integrante do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade - NEHSC - PUC/SP e do Núcleo de Pesquisa em Governação e Instituições (UCSAL - Políticas Sociais e Cidadania). Ao nível internacional integra a Associação Portuguesa de Antropologia APA; a Associação de Professores de História APH, Portugal; Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas AMONET/ Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Coordenadora do Grupo de Criação e Difusão do conhecimento sobre Movimentos sociais, migrações e políticas públicas do CEB/USAL. Em 2011, integra a ARBRE - Association pour la Recherche sur le Brésil en Europe. Participação em eventos e projetos de organizações governamentais e não-governamentais para temas relacionados a Género, Mulheres e Direitos Humanos. Em 2013, integrou o Instituto Jurídico Portucalense, Universidade Portucalense (Porto). Áreas de pesquisa e atuação: Direitos Humanos - História Contemporânea e do Tempo Presente - Gêneros - Gerações - Famílias - Políticas Públicas - Migrações e Violências, Teoria e Historiografia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado ao Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias da UNEB, Campus XIX, no curso de Pós-Graduação em Gestão em Direitos Humanos, sob orientação da Prof.ª Dra. Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti.

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