O sentimento de impunidade enleado ao exercício arbitrário das próprias razões

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4. – Percepção internacional da necessidade de punição aos violadores dos Direitos Humanos

A opinião pública a partir do dia seguinte da Primeira Guerra Mundial juntamente com a exigência de justiça faz surgir à ideia de que tais crimes não poderiam ficar sem punição. Visam então à elaboração de um direito penal junto a uma organização jurisdicional supranacional com a competência de poder julgar a nível universal as violações mais graves aos direitos dos indivíduos. A ideia de criar uma Corte permanente surgiu em 1948 com o intuito de fazer-se julgar crimes de grande calamidade que estavam sendo constantes. O Tribunal de Nuremberg era composto por quatro membros, onde cada país enviava um titular e um suplente no intuito de garantir um processo mais justo utilizando-se de quatro idiomas, conferindo-os o poder de julgar os crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade. Em Tóquio os onze juízes não têm substitutos, utilizam-se de dois idiomas. Apenas os crimes contra a paz com certas incertezas e violações das leis de guerra são retidos a Tóquio, mais propriamente pessoas físicas, enquanto que Nuremberg ultrapassa-o analisando outras categorias de crime pela acusação julgando até mesmo organizações. Houve tentativas até 1953 para analisarem as medidas a serem tomadas, no entanto, devido a Guerra Fria e algumas outras dificuldades, não teve a possibilidade de sua continuação, sendo temporariamente suspensa até 1989. Nesse intervalo de tempo, como cita Jean-Paul Bazelaire em sua obra “A Justiça Penal Internacional”, “dois fenômenos andaram juntos, fazendo eco um ao outro: o fortalecimento da ideia da recusa da impunidade e a realidade das atrocidades cometidas pelo mundo e que acreditávamos reservadas ao passado.”11

A criação de uma Corte Penal Internacional com competência para julgar crimes principalmente contra Direitos Humanos se mostrou necessária na tentativa de amenizar tamanhas barbáries que aconteciam punindo os responsáveis pelos maiores crimes contra a humanidade. Foi lenta a instalação das jurisdições penais internacionais, quase meio século fora necessário para que a Resolução 260 de 9 de dezembro de 1948, a qual determina a Corte Criminal Internacional, pudesse vir a ser concretizada, logo, a elaboração de textos jurídicos com redação equilibrada que submetessem muitos países a aderirem-no deveriam ser frutos de longas negociações e debates. Reuniram-se em Roma a Conferência Diplomática de Superpotências das Nações Unidas e fora criada em julho de 1988 uma Corte Criminal Internacional, a qual passou a ter início seus trabalhos em julho de 2002 quando 60 países o aderiram. As maiores dificuldades impostas a Justiça Penal Internacional se encontram no âmbito da competência e processual, pois é uma justiça sem policia e as judiciárias que ficam encarregadas das provas são a dos próprios Estados, significando então uma grande barreira para o real devido processo legal. O Tribunal Penal Internacional possui competência para julgar quatro tipos de crimes: crimes contra a humanidade; crimes de genocídio; crimes de guerra e crimes de agressão, tendo como função, acima de tudo, a tentativa de garantir a paz mundial e uma maior tutela dos Direitos Humanos, representando desta forma um grande marco, mesmo com suas barreiras, coercitivo na tentativa de impedir atrocidades com base na real e efetiva punição dos culpados.


5. Análise do panorama atual diante da evolução da sociedade

5.1. Justiça com as próprias mãos – Um retrocesso desenfreado?

Como já exposto, na antiguidade, a vingança privada era vista como um dos principais fatores na composição de conflitos entre os povos. Como não havia um Estado centralizando o poder de punir, os próprios indivíduos exerciam a vingança não apenas contra o ofensor, mas também contra pessoas próximas do mesmo, ou seja, se tornava um problema cada vez maior, logo, qualquer briga poderia gerar uma guerra entre as famílias que as revidariam, não enfrentando, desta forma, limites. Hoje, em pleno século XXI, mesmo sabendo que o Estado é o único titular do “jus puniendi”, estamos vivenciando corriqueiros momentos de “estado de natureza” ao vermos indivíduos considerando-se com direito de julgar e punir outros com atitudes selvagens e desumanas, pois esta expressão em que Hobbes defendia ser o estágio inicial de convivência não é usada apenas “[...] nos estágios mais primitivos da História, mas, também, a situação de desordem que se verifica sempre que os homens não têm suas ações reprimidas, ou pela voz da razão ou pela presença de instituições políticas eficientes”12.

É notável esse retrocesso ao vermos sendo noticiadas matérias referentes à justiça feita com as próprias mãos e, por conseguinte, ao analisarmos opiniões de grande parcela da população defendendo tamanhas e horrendas atitudes que violam claramente os Direitos Humanos inerentes à pessoa. Até mesmo alguns noticiadores chegam a fazer certa apologia a tais atitudes ao defenderem que é compreensível a postura dos vingadores, pois o Estado é omisso e a justiça é falha, e que tais barbaridades devem ser consideradas como legitima defesa coletiva, chegando ao extremo de lançar campanha contra os defensores dos Direitos Humanos: “Faça um favor ao Brasil, adote um bandido!”. Esta atitude da mídia e de algumas pessoas de grande influência é um tamanho descaso contra o bem estar social, pois representam o sentimento da grande maioria que os assistem, fazendo com que se forme a ideia que realmente “bandido bom é bandido morto”. Se não bastasse, lançada pela mídia e espalhada pelas pessoas como sendo a única forma de se defender já que o Estado é omisso, só em a vítima gritar “pega ladrão” o sentimento de ódio no íntimo das pessoas dá causa a perseguição e início da execução afastando a ideia de estado civil e retomando o de natureza.

Ora, o uso da justiça com as próprias mãos deve ser considerado um enorme regresso, pois sabendo que a pena de morte (salvo em caso de guerra), execução, linchamento e outros, seja lá qual for o motivo, são atos ilegais no Brasil, se guiar pela ideia quem os pratica está cometendo também um crime, logo, deverá ser considerado criminoso e, pela lógica dos justiceiros, estará sendo a favor da própria morte, já que se guiam pela ideia de que, se o Estado não pune, façamos nosso juízo de valor e coloquemos o ódio das falhas estatais contra a pessoa “suspeita” de um furto qualquer o linchando e humilhando em via pública sem ter ao menos a certeza da real culpa (e mesmo que tivesse não se justifica). Isto faz com que afastemos toda essa árdua evolução descrita nos primeiros tópicos e voltemos ao estado de caos, numa guerra de todos contra todos, no qual são ignoradas as bases de existência de um Estado Democrático de Direito.

A autotutela esteve presente na ausência de um Estado, sendo então a primeira forma de composição dos conflitos de interesses, resolvendo suas lides diante da lei do mais forte. Ainda temos, em nosso atual ordenamento, possibilidades do ofendido optar por agir para repelir injusta agressão, como, por exemplo, nas hipóteses que excluem a ilicitude do fato previstas no art. 23 do Código Penal, o qual reza: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”, no entanto, no parágrafo único do mesmo deixa claro que devem ser usados meios necessários de forma moderada podendo responder o agente pelo excesso doloso ou culposo da conduta. No entanto, até mesmo os princípios limitadores do poder punitivo estatal como também toda sistemática processualística do devido processo legal, que é de direito de todos os cidadãos, são afastados e entra a conduta chamada de exercício arbitrário das próprias razões prevista no art. 345 do CP, o qual reza: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei permite: Pena – detenção, de 15 dias a 1 mês, ou multa, além da pena corresponde à violência”. Esta onda de barbárie surge em um momento de terrível insegurança e temor da população que, querendo ter uma solução imediata e não suportando mais o sentimento de impunidade, acreditam estar agindo em nome da coletividade e em reflexo a ineficiência do Estado no combate ao crime.

Diante de uma análise mais crítica, é certo que quando a sanção é aplicada pelas próprias vítimas, no abalo emocional movido pelo ódio, é impossível conseguir agir com justiça e proporcionalidade entre a pena e a ação. A pessoa que consentir ser vítima de algum crime deve recorrer ao Estado à punição adequada ao culpado para que os prejuízos possam ser ressarcidos em conformidade com a lei, respeitando assim o devido processo legal que abrange os princípios conquistados na história da humanidade, bem como os direitos humanos fundamentais, pois praticando o exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do C.P), responderá este por tal conduta, os excessos e ainda a pena corresponde à violência praticada. Isto pode ser explicado diante do princípio da vedação do retrocesso, o qual visa proibir que uma vez positivada um direito fundamental promovendo o bem estar social e uma convivência harmoniosa e pacífica, o mesmo não poderá ser restringido ou excluído em medidas legislativas posteriores. A título de exemplo podemos citar o princípio da proporcionalidade que exige penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito. Nesse sentido, Bitencourt leciona que “é indispensável que os direitos fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis (e intocáveis), afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los, deve garanti-los”13. Portanto, diante da natureza subsidiária do Direito Penal, o seu “fim geral é impedir que os indivíduos façam justiça por suas próprias mãos, ou, ainda, minimizar ou controlar a violência”14, deste modo, a justiça feita com as próprias mãos representa extremo regresso além de propriamente estar sendo a favor da própria morte ao admitir que tamanha crueldade seja feita por pessoas que não possuem competência pra punir ou julgar, o que viola terrivelmente o princípio da dignidade humana e ignora toda evolução da humanidade até o estágio atual e o que visa um Estado Democrático de Direito.

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5.2. Sentimento de impunidade e insegurança – Dificuldades enfrentadas

A questão da impunidade está no auge do debate político brasileiro pelo real aumento na violência e consequentemente do sentimento extremo de insegurança que nos rodeia. No entanto, não se pode afirmar que no Brasil não se prende, tanto é que nos últimos cinco anos a população carcerária aumentou 29%, encerrando o ano de 2013 com um total de 548 mil presos, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Dados de 2012 mostram que 49% dos presos eram de condenados e acusados por crimes contra o patrimônio enquanto que outros 25% estavam presos por tráfico de drogas. Já ao que se refere aos crimes contra a pessoa, em um país que supera a média mundial de 8,8 por 100 mil pessoas possuindo 29 a cada 100 mil habitantes apenas 11% se encontravam presos.

Diante dos dados expostos acima, partindo do pressuposto que deverá o juiz estabelecer a pena conforme seja necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime (art. 59, C.P), a pena possui também natureza ressocializadora, no entanto, alguns doutrinadores apontam que o sistema penal é em si mesmo um problema social defendendo até mesmo sua abolição. Diante disso, é notável que o direito penal mostra-se incapaz de prevenir a prática de novos delitos, e, como leciona Paulo Queiroz, “é um sistema arbitrariamente seletivo; recruta sua clientela entre os mais miseráveis. É um sistema injusto, produtor e reprodutor das desigualdades sociais”15, com tendências a privilegiar as classes dominantes isentando-os, de certa forma, da fiscalização e criminalização de condutas que representam danos muito maiores a sociedade ao sonegarem impostos, desviarem verbas da educação, da saúde etc., que resultam numa maior desigualdade social diante do monopólio capitalista e por consequência desvia classes inferiores ao cometimento de crimes, para que posteriormente sejam jogados em presídios insalubres, sem as mínimas condições de dignidade e higiene com outros tantos presos numa mesma cela. Se não bastasse, juntam sujeitos de periculosidades diferentes transformando o presídio na chamada “escola do crime”, fator que aumenta em extremo a criminalidade, tanto é que os níveis de reincidência é um dos maiores do mundo, chegando a incrível margem de 70%. Em suma, na teoria o que pretendem é a ressocialização do indivíduo para a sua reintrodução ao convívio social, entretanto, há violação dos Direitos Humanos pelo próprio sistema o qual nunca foi capaz de cumprir suas promessas ficando apenas no mundo do “dever ser”. É preocupante o que acontece de fato, pois todas essas circunstâncias e desigualdades juntamente com a seletividade do sistema fazem com que o agente além de ser punido pelo crime que cometeu, seja punido também pelo que ele é, abandonando o direito penal do ato e admitindo o direito penal do autor ao analisar elementares subjetivas incriminadoras. O certo é que o capitalismo que proporciona privilégios a mínima parcela da população é talvez o principal causador da delinquência, pois sua estrutura desigual entre os indivíduos marginaliza os menos favorecidos que serão presos e depois voltarão piores para a sociedade, já que o sistema não recupera de fato ninguém, mas acaba por deixar a situação cada vez mais delicada.

Relatando sobre os postulados garantistas como uma forma de melhoria do quadro atual, Salo de Carvalho no seu livro “Aplicação da Pena e Garantismo” mostra a teoria de Ferrajoli, na qual o poder punitivo do Estado deve ser diminuído, limitado ao máximo, enquanto que a liberdade do indivíduo deve ser ampliada, devendo ser afastado o direito penal do autor. O garantismo é, então, um modelo político criminal minimalista que afasta teses radicais, como o abolicionismo, a partir de preceitos que fazem prevalecer os direitos e garantias das pessoas frente à redução ao máximo do poder estatal arbitrário e ilimitado. Diante de todo impasse e dificuldades enfrentadas, defende que a precária situação do imputado deve ser considerada uma atenuante obrigatória na cominação da pena, pois há uma co-culpabilidade do Estado e da própria sociedade ao não favorecer oportunidades para o indivíduo deixando-o vulnerável. Com bastante propriedade e precisão, leciona que se não bastasse todas as dificuldades enfrentadas por essa parcela da população

[...] Acaba-se, então, punindo a pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que ela fez (quia prohibitum), abandonando as necessárias amarras impostas pelos princípios da secularização e da legalidade (mala prohibita) no que tange ao aumento da pena, substituindo-os por valorações potestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de autor rotulado como intrinsecamente perverso16.

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Sobre o autor
José Lucas Rodrigues de Oliveira

Graduando em Direito pela UniAges.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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